18 setembro 2008

"Ensaio sobre a Cegueira"



Somos capazes de tudo: o apocalipse nos testa e nos revela a nós mesmos e ao mundo

GOSTO DOS romances e dos filmes apocalípticos, ou seja, das histórias em que algum tipo de fim do mundo (guerra nuclear, invasão extraterrestre, epidemia etc.) nos força a encarar uma versão laica e íntima do Juízo Final. Nessa versão, Deus não avalia nosso passado, mas, enquanto o mundo desaba, nosso desempenho mostra quem somos realmente. No desamparo, quando o tecido social se esfarela e as normas perdem força e valor, conhecemos, enfim, nosso estofo "verdadeiro". Somos capazes do melhor ou do pior: o apocalipse nos testa e nos revela.

O primeiro romance apocalíptico (de 1826) talvez tenha sido "O Último Homem" (ed. Landmark), de Mary Shelley, que é também a autora de "Frankenstein". De fato, as duas obras são animadas pelo mesmo sonho: uma criatura radicalmente nova pode ser fabricada no bricabraque de um necrotério ou nascer das cinzas da civilização. Em ambos os casos, ela será sem história, sem ascendência, sem comunidade e, portanto, penosamente livre - para o bem ou para o mal.

No romance de Mary Shelley, aliás, a causa da catástrofe é uma epidemia, como na "Peste", de Camus, e como no "Ensaio sobre a Cegueira", de Saramago, que é agora levado para o cinema por Fernando Meirelles.

A obra de Meirelles é fiel ao livro que a inspira, mas, para contar a mesma história, consegue inventar uma eloqüência própria, sutil e forte. Por exemplo, o filme banha numa luz esbranquiçada e difusa que não é apenas (como foi dito e repetido) uma evocação da cegueira branca que aflige a humanidade: é a atmosfera ordinária de nosso universo desbotado, em que a trivialidade do cotidiano desvanece os contrastes - até que as sombras e os brilhos sejam revelados na "hora do vamos ver", que acontece, paradoxalmente, porque todos (ou quase todos) perdem a visão.

Depois de assistir ao filme, li algumas das críticas que ele recebeu em Cannes. A nota de Manohla Dargis, no "New York Times" de 16 de maio, por exemplo, é paradoxal: Dargis acusa o filme de ser uma Alegoria com "A" maiúscula, em que, aos personagens, faltaria espessura. Certo, os personagens de "Ensaio sobre a Cegueira" quase não têm história prévia, assim como a cidade em que os fatos acontecem (uma mistura de São Paulo com Toronto) é uma cidade moderna qualquer, cujas particularidades não contam. Essa, justamente, é a beleza do gênero: o surgimento quase abstrato de uma situação extrema, em que se trata de escolher e agir a partir de nada. O passado, o lugar não contam: os personagens são definidos por suas escolhas aqui e agora.

Dargis também se queixa da oposição que lhe parece excessiva, no filme, entre "os bons" e "os ruins", ou seja, entre os que, na cegueira, descobrem e aprimoram sua humanidade e os que a perdem. É uma queixa curiosa, pois, em quase todas as narrativas apocalípticas, a contraposição de retidão e bestialidade é o sinal de uma liberdade quase absoluta, angustiante: o fim do mundo é um bívio sem leis, sem flechas, sem compromissos, onde qualquer um pode escolher o horror ou a esperança. A oposição caricata dos bons e dos ruins expressa a incerteza do espectador, do leitor e do autor: "Você, se, por uma misteriosa epidemia, o mundo ficar cego, se o reino da lei acabar e começar a idade da luta pela sobrevivência, de que lado estará? Do lado dos que inventarão novas formas de abusos ou dos que descobrirão novas formas de respeito e de vida comum? Uma vez perdida a visão, o que você enxergará no seu vizinho: mais uma mulher para estuprar e um otário para explorar ou um irmão, perdido que nem você?"

No "Ensaio sobre a Cegueira" (de Meirelles e de Saramago), diferente do que acontece em muitas narrativas apocalípticas, a heroína é uma mulher, e as mulheres são as depositárias da esperança; elas saem engrandecidas pelas provas da situação extrema.

São elas que, para o bem de todos, entregam-se aos estupradores, aviltando não elas mesmas mas os que as violentam, com uma coragem que salienta a covardia dos maridos ciumentos ou zelosos de sua "honra". São elas que sabem cuidar de uma criança ou matar quando é preciso. São elas que reinventam a amizade (em cenas memoráveis: a das mulheres lavando o corpo da companheira espancada à morte e a das mulheres no chuveiro).

Aviso, caso, um dia, a gente tenha que recomeçar tudo do zero: em geral, as mulheres sabem, melhor do que os homens, o que é essencial na vida.

9 comentários:

  1. Oi, Contardo. Belo texto. Eu quero aproveitar para pedir desculpas a você por palavras rudes em correspondências passadas.
    Quando li Hello Brasil, irritei-me com a sua opinião sobre Caetano e Oswald, grandes admirações minhas. No entanto, agora compreendo que você estava tentando ajudar os brasileiros.
    Lendo Verdade Tropical, vejo que vc é uma das grandes influências do livro, assim como tb vejo o Hello Brasil muito forte em Central do Brasil.
    Sua indicação do livro do John Hemingway significou imensamente para mim. Mil perdões por qualquer grosseria que eu possa ter dito por e-mail ou em artigos e crônicas.
    Tudo de bom e sucesso para vc.

    Abraços do Lúcio Jr.

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  2. VOU VER O FILME COM CERTEZA
    E ME REFLETIR NESSE ESPELHO QUE VC DESCREVE...MESMO CEGA, HEI DE ME RECONHECER...COISA DE MULHER, VC DIRIA?
    BEIJO
    A AMIGA CARIOCA CIDA TORNEROS

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  3. Acabei de ver o filme.
    Ja tinha lido o teu texto e algumas criticas. Geralmente prefiro os livros as suas adaptações ao cinema, nao foi o caso.
    Acho que compreendi pq a critica, especialmente a americana, falou tao mal do filme. No cinema americano, nunca sofremos, so quando algo ruim acontece aos bons. Em guerra dos mundos, muito mais sangue e morte. Mas so conhecemos quem interessa: o mocinho e sua familia, e a rapidez da narrativ náo nos permite sofre.Para mim a cena mais tocante e a do cão, afinal que bicho vamos ser nesta selva....

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  4. Ainda não assisti o filme do Fernando Meirelles, mas me lembro de me perguntar porque aquela mulher não ficou cega. Me respondi assim: algumas pessoas enxergam além e não perdem a visão ou a lucidez nunca. E... se não me engano o único gesto de carinho ou palavra doce do livro todo foi o dela, logo no começo do livro. Será? Acho que sou a última romântica!!! Beijo da Paçoca

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  5. Olá Contardo Calligaris, que prazer falar com você (?). Bom, o filme me levou a várias reflexões... e várias reflexões são possíveis. Dentre elas, queria destacar o modo como o filme foi realizado. Acredito que, para aceitação norte-americana o filme foi realizado com cenas de São Paulo, em sua maioria, afinal aquela epidemia nunca aconteceria nos EUA e as pessoas do isolamento nunca seriam mal-tratatadas lá. E, para complementar, a realidade de vida e costumes são norte-americanas porque, para eles, não existe pobre no mundo e todos vivem igual a eles. Ah! Isso me enojou um pouco no filme, mas claro q a paisagem pode ser brasileira pq saramago é brasileiro, etc. De qq maneira, não consegui entender porque mostraram um cenário (São Paulo) que não correspondia a realidade de cotidiano e costumes.
    Obrigada. Simone

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  6. Olá Contardo.

    Gostei muito do seu texto e, sobre o que escreve a respeito das mulheres do filme, analiso sob duas óticas.

    A primeira é justamente o papel das mulheres na relações sociais. Não só em situações extremas como as do filme. Nas relações cotidianas reais também. São as mulheres que conduzem a vida privada e mesmo no filme, o poder é restrito a isso. Não há interferência na estrutura do problema que enfrentam e acho que se houvesse essa possibilidade, seria o Doutor que faria isso, dado que ele conduzia as "assembléias" quando precisavam decidir algo. Mesmo naquele pequeno universo o espaço "público" era de domínio masculino. Eles discutiam com todos, eles cuidavam da comida, eles determinavam as formas de convívio.

    A segunda ótica é a relativa a maneira como as mulheres são mostradas nos filmes, sobretudo nos do circuitão comercial, como este. E neste aspecto o filme é vanguardista, pois se fosse um americanóide qualquer, mesmo a paritr da história de Saramago, dariam um jeito de até fazer as mulheres gostarem da situação de estupro, como bem convém à sociedade machista em que a mulher é sempre culpada.

    Por fim, perguntaria a você o que é "essencial na vida", que as mulheres tão bem sabem?

    Abraços,
    Giselle.

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  7. Nao conhecia seu blog...acho que estava meio perdida..rs
    em mim mesma...
    prazer em conhecer...

    bjuxxx
    Vívian..

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  8. Eu nao li o livro...tbem pudera...apos ver o filme foi meio dificil durmir...
    Uma amiga já havia me falado sobre o livro...confesso que nunca li Jose Saramago...Ta aí...algo q vou colocar na minha lista de prioridades...qndo estiver pronta...nO momento ando encantada com livros e contos infantis...

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  9. Olá Contardo, espero que quiça vc se lembre de mim: certa feita lhe mandei um email sobre essa very same análise sua.
    Bem, o filme inclusive ja´saiu de cartaz, e eu estou tão encantado com essa futura obra prima do cinema brasileiro, ainda q também canadense e japonês. Pois assim Fernando Meirelles o define em seu Diário de Blindness.
    Na verdade este comentário é para lhe lembrar que estarei a usar parte de sua análise para um projeto sobre Blindness, mais textos de PESG, Jean C. Bernardet< Neusa Barbosa e do próprio Ismail Xavier que é para quem pretendo enviar o texto.
    Parabéns cabocão.
    Augusto Reis,

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