O novíssimo-rico acumula produtos de luxo sem acumular a cultura para apreciá-los |
SEBASTIÃO É um adolescente de 13 anos com quem converso com frequência. Gosto dele, e ele tenta gostar de mim, embora, às vezes, eu seja chato.
Por exemplo, recentemente, Sebastião me confessou que ele tinha o sonho de sacudir e explodir um magnum de champanhe -isso quando ele ganhar um Grand Prix de Fórmula 1 ou algo equivalente.
Eu comentei que, nessa ocasião, ele deveria escolher um espumante de terceira -não pelo custo, mas "por respeito". "Respeito pelo quê?", ele perguntou.
Improvisei uma dissertação sobre a "méthode champenoise". Expliquei como, numa região específica da França, as uvas chardonnay e pinot são colhidas, seu mosto é fermentado em tanques e, logo, durante seis anos ou mais, transvasado repetidamente em garrafas, retirando do gargalo, a cada vez, o sedimento e as levuras. Evoquei a vida do viticultor, entre a espera e o cuidado da vinha. Falei da invenção do champanhe, no século 17, por um monge que se chamava Dom Pérignon, e das novidades introduzidas pela senhora Clicquot, no século 19.
Em suma, estraguei a festa imaginária de Sebastião só para lhe lembrar que o líquido que ele se propunha despejar era o resultado do trabalho paciente de artesãos obstinados e orgulhosos de sua arte.
Chatice, não é? Mas tenho uma desculpa. A conversa com Sebastião acontecia em Milão, enquanto: 1) eu estava lendo o novo livro de Richard Sennett, "The Craftsman" (previsto em março pela Record como "O Artífice"), 2) o centro da cidade, onde a gente estava, era tomado por hordas de compradores de moda e design, entre os quais a maioria absoluta era de "emergentes" de sociedades que, hoje, vivem uma rapidíssima mobilidade social (Rússia e China).
Ou seja, eu era circundado por consumidores pouco interessados na qualidade do trabalho embutido nos objetos que eles adquiriam e muito interessados no status que esses objetos e suas marcas podem conferir aos usuários.
Ao mesmo tempo, eu era encantado pelo texto de Sennett -seu comovente elogio da perícia que encontra seu maior prêmio no orgulho da obra benfeita.
Certo, se nem todo trabalho é alienação, é graças à mestria do artesão, ou seja, à alegria de quem exerce sua destreza, mas é também porque, EM TESE, o usuário do produto artesanal reconhece e admira, no objeto manufaturado, a arte de quem o fabricou.
Digo "em tese" porque, de fato, é cada vez menos assim: na extrema insegurança produzida pela rápida mobilidade social ("Será que os outros sabem que eu me enriqueci?"), o novíssimo-rico acumula produtos de luxo (supostamente artesanais) sem ter o tempo de acumular a cultura mínima para apreciá-los. Como assim, que cultura?
Quando eu era criança, o senhor Columbaro era o humilde alfaiate da família: ele sabia recortar os ternos velhos do meu pai para confeccionar calças e casacos para nós e, também, ele conseguia dar uma segunda vida a ternos puídos, reconstituindo-os depois de ter virado o tecido pelo avesso. Pois bem, uma vez, o senhor Columbaro me explicou longamente por que um terno de Seville Road cai solto ao redor do corpo (só para começar: a tela interna não é colada, mas costurada com centenas de pontos).
Comecei assim a enxergar, nos produtos manufaturados, o esforço e a habilidade de quem os fabrica. É possível que, um dia, o preço de um produto artesanal não seja decidido pela excelência do trabalho do artífice, mas seja apenas função do status que sua posse confere (inevitavelmente) numa sociedade em que o consumo aparente define as diferenças sociais.
A partir daquele dia, aos poucos, só sobrarão produtos medíocres, que não dirão nada sobre a perícia do artesão -apenas bradarão o status de seus consumidores.
Os leitores de "Gomorra", de Roberto Saviano (ed. Bertrand Brasil), assim como os espectadores do filme homônimo, sabem que já há porões em que se fabricam, ao mesmo tempo, do mesmo jeito e no mesmo molde, a suposta alta-costura e suas "cópias" destinadas a quem só quer passear com uma marca famosa gravada no peito.
Qual a relevância disso tudo? Pois é, vou parecer catastrofista, mas penso assim: no dia em que formos incapazes de reconhecer e respeitar, no produto, a excelência do artesão, quando não soubermos mais enxergar o trabalho humano nos objetos que usamos, teremos perdido todo interesse pela vida concreta -inclusive pela nossa própria.
Era isso que eu tentava dizer a Sebastião.
ccalligari@uol.com.br
Antes de chegar ao final eu já estava mesmo pensando em Gomorra, o filme, no meu caso.
ResponderExcluirTomara que o Sebastião tenha entendido alguma coisa.
Abraço
Disculpe que escriba en español, pero acabo de llegar a vivir a Sao Paulo, y todavia no manejo el portugues. Queria comentar que este texto me recordo una conversación reciente. Estaba compartiendo con asombro mi fascinacion con las ferias en la calle de Sao Paulo, especialmente la de mi barrio, Itaim, donde es posible cada martes comprar frutas y mercaderias, probar pasteles, y entablar una relacion con los vendedores. Hay un vendedor que vende dulces confeccionados por su esposa, un señor que trae bolsos hechos a mano, etc. Comento el placer de este dia en un blog de la ciudad y me dicen que tenga cuidado, que los precios son muchos mas caros que en el supermercado. Entonces pense: prefiero pagar de mas pero saber que con lo que yo compro se esta alimentando una familia, la familia de alguien a quien conosco, que enriquecer los dueños de un supermercado o lo que es peor una multinacional como Walmart. Pero la gente aun no lo ve: quizas hay que pagar mas, pero vale la pena, porque es parte de la lucha de conservar esas tradiciones, esos pequenos artesanos y trabajadores que merecen la posibilidad de ganarse la vida con lo que mejor saben hacer. Vivi 11 anos en Estados Unidos, y lo que mas disfruto en Sao Paulo es eso: la supervivencia de los pequeños negocios, de las padarias de años, de todos esos productos artesanales.
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