Lula se expressou numa ordem perfeita: ele é (primeiro) cristão e (segundo) católico |
NA SEMANA passada, no Recife, descobriu-se que uma menina de nove anos estava grávida de gêmeos. A mãe imaginava que a barriga crescente fosse o efeito de um parasito. Mas não era um parasito; era o padrasto, que abusava regularmente a menina e a irmã (de 14 anos, portadora de uma deficiência mental). O abuso começou quando as crianças tinham, respectivamente, seis e 11 anos.
O padrasto foi preso, e uma equipe médica, autorizada pela mãe, interrompeu a gravidez da menina, seguindo a lei brasileira, que permite a interrupção de gravidez em caso de risco de vida para a mãe e também em caso de estupro. Quem conhece alguma menina de nove anos pode facilmente imaginar o que significaria submeter aquele corpo a uma gravidez completa e a um parto duplo.
Além disso, qualquer um pode intuir que carregar na barriga, parir e "maternar" o fruto de um estupro é devastador para a mãe assim como para os eventuais rebentos dessa catástrofe. Alguém dirá: "Mas a mulher acabará esquecendo o estuprador (que foi gentil, nem a matou, não é?), e o sentimento materno prevalecerá". Esse conto de fada (machista) não se aplica no caso da menina de Recife.
Pede-se o quê? Que ela esqueça que, durante três anos, quem devia ser para ela o equivalente a um pai se serviu de seu corpo de uma maneira que ela não tinha condição de entender e num quadro em que ela não tinha a quem recorrer, é isso? No meio da semana, o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, declarou que os que estivessem envolvidos na interrupção da gravidez da menina (a mãe, os médicos, os enfermeiros) fossem excomungados. Agora, o padrasto não; pois o crime dele seria mais leve. Isso, segundo o bispo, é a "lei de Deus". O bispo se confundiu: essa não é a lei de Deus, é a lei da Igreja Católica.
E faz alguns séculos que essa igreja não tem mais (se é que um dia teve) a autoridade moral para ela mesma acreditar que seus decretos sejam expressão da vontade divina. Portanto, sua persistência em tentar convencer os fiéis de que a voz da igreja coincide com a voz de Deus se parece estranhamente com a conduta do padrasto da história (e de qualquer pedófilo): trata-se, em ambos os casos, de tirar proveito da "simplicidade" de crianças e ingênuos. Mas voltemos aos fatos. O presidente Lula, "como cristão e como católico", achou lamentável a declaração do arcebispo. Dom José não gostou e afirmou que o presidente Lula é "um católico mais ou menos".
O presidente Lula se expressou numa ordem perfeita: ele é (primeiro) cristão e (segundo) católico. Ou seja, se a igreja diz algo que contraria seu entendimento da mensagem de Cristo, tanto pior para ela. A mensagem cristã da qual se trata não tem a ver com a interrupção de gravidez. Ela é mais fundamental: trata-se da liberdade do indivíduo e da consciência em sua relação com Deus. Explico.
É trivial constatar que, na modernidade, a decisão moral é um questionamento constante e, às vezes, atormentado: cada um, levando em conta as ideias de seu grupo, seus valores mais singulares, seus sentimentos, sua fé (se ele tem uma) e os fatos (caso a caso), chega a uma decisão ou a uma opinião que acredita justa. Um pouco menos trivial é lembrar que esse aspecto da modernidade é o melhor fruto da tradição judaico-cristã e, mais especificamente, da novidade cristã, pela qual Deus pode ser o mesmo para todos porque ele não se relaciona com grupos ou pelo intermédio de grupos, mas com cada indivíduo, um a um.
Ser moderno não significa topar qualquer parada e perder-se no relativismo. Ao contrário, ser moderno (e ser cristão) significa tomar a responsabilidade de decidir no nosso foro íntimo o que nos parece certo ou errado. Claro, é mais difícil do que procurar respostas feitas e abstratas no direito canônico. Mas, contrariamente ao que deve achar dom José, ninguém nunca disse que ser cristão (e moderno) seja fácil.
Felicito o presidente Lula, que falou como cristão, ao risco de parecer "católico mais ou menos". Quanto a dom José, ele falou como católico e se revelou como um "cristão mais ou menos". O dia em que ele quiser ser cristão, ele nos dirá, com suas palavras, por que e como, em seu foro íntimo, acha o gesto de quem interrompeu a dupla gravidez de uma criança de 30 quilos muito mais grave do que a abjeção de um padrasto que, por três anos, estuprou suas enteadas.
ccalligari@uol.com.br
Será que a igreja ou o bispo em questão poderiam excomungar um pedófilo? Talvez só queiram punir aquilo que denuncia a pedofilia...Até porque,se fosse assim, muitos representantes "cristãos" e católicos teriam q ser excomungados...mas a eles... Ah!!Deus há de perdoar! Afinal...são eles quem as escrevem...
ResponderExcluirPobre de seus objetos...estes sim são a causa de seu comportamento pecaminoso!! Acredite quem quiser!
Olá, boa tarde!
ResponderExcluirMeu nome é Patrícia e represento a empresa Zymboo.com.
Gostamos muito do seu blog e gostaríamos de convidá-lo a publicar seus textos em nosso Espaço Literário.
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Quando é que o corpo feminino deixará de ser controlado pela igreja dessa maneira?
ResponderExcluirE pior ainda é a presente situação, onde não se trata de uma mulher adulta que pode dar seus gritos, determinar o próprio destino realizando um aborto e sendo para sempre estigmatizada por isso... Trata-se de uma criança, vítima de uma das piores formas de violência... que ainda não pode decidir sobre seu corpo em nenhum aspecto. É revoltante.
Contardo, parabéns pela peça de teatro, logo que possa vou assistir!
ResponderExcluirbeijo carioca!
Cida Torneros
Acho que ñ esqueceram somente da questão da consciência citada, mas também do "amarás o teu próximo como a ti mesmo" e só lembraram do "não matarás"
ResponderExcluirGostaria de registrar meu apreço pelo seu blog e pela forma tão generosa de escrever!
ResponderExcluirFiquei encantada com a sua crítica sobre "Revolutionary Road", filme de Sam Mendes. E agora também com seu texto sobre o Arcebispo.
Em alguma medida é reconfortante pode ler em seu blog essas considerações tão lúcidas acerca deste caso hediondo, depois de ler a revista Veja, onde contém uma entrevista com este senhor.
Deixo aqui novamente registrado minha imensa admiração por seu blog!
Contardo Calligaris,
ResponderExcluirGostaria de lhe pedir algum conselho sobre o tema que tenho me aproximado com assunto a ser abordado em minha monografia de conclusão de residência médica em psiquiatria. Não encontrei outro meio que nao seu blog para entrar em contato, espero que leia este comentário e, se possível, entre em contato pelo meu mail (alextolentino6@hotmail.com). Agradecimentos.
Alex R. T. Gerchon
Tomei a liberdade de citar um texto seu no meu blog na MTV, tudo bem?
ResponderExcluirhttp://mtv.uol.com.br/ninalachica/blog/cala-boca-e-obedece
Adoro seus textos! Minhas maiores fontes de estímulo e referência!
Abraço, Marina.