14 maio 2009

Valores positivos



A modernidade não é moralmente "decadente'; ela é rica em valores que merecem ser defendidos

EM 5 de maio, o jornal "The Guardian" deu uma notícia que, aqui no Brasil, passou desapercebida ou quase. O Home Office (equivalente ao Ministério da Justiça) do Reino Unido publicou uma lista de 16 pessoas que seriam barradas caso tentassem entrar no país. Oito são islamistas pregadores de ódio étnico e terrorismo -nenhuma surpresa. Mas eis que eles aparecem em companhia de:

Stephen Donald Black, cidadão dos EUA, grande sacerdote do Ku Klux Klan, fundador de "Stormfront", um fórum on-line para quem defende a supremacia da raça branca;
Eric Gliebe, cidadão dos EUA, neonazista;

Mike Guzovsky, cidadão dos EUA e de Israel, grande admirador de Baruch Goldstein (o qual, em 1994, em Hebron, matou 29 muçulmanos que estavam rezando numa mesquita);
Fred Waldron Phelps, pastor batista, e sua filha Shirlei, cidadãos dos EUA, pregadores de uma cruzada contra os homossexuais (para eles, a Aids, as guerras e as catástrofes naturais são punições divinas pela permissividade sexual de nossos tempos);

Artur Ryno e Pavel Skachevsky, cidadãos russos, skinheads, conhecidos por filmarem ataques contra minorias étnicas (imigrantes, armênios etc.) e disponibilizar os filmes na internet para o "prazer" de seus acólitos (ambos atualmente na cadeia pelo assassinato de duas dezenas de pessoas);

Michael Savage, cidadão dos EUA, radialista que passa seu tempo no ar fomentando raiva étnica, religiosa e política (Savage ficou na minha memória por defender a ideia de que autismo infantil é manha de criança que não levou todos os tabefes que merecia).

A própria ministra do Interior, Jacqui Smith, explicou a razão pela qual decidiu publicar a lista dos indesejáveis: "Se você não pode viver segundo as regras, os padrões e os valores que contam em nossa vida, nós o excluiremos de nosso país e, mais importante, tornaremos públicos os nomes dos que barramos".

Adoraria assistir a um debate entre Jacqui Smith e um juiz da Corte Suprema dos EUA; seria, no mínimo, esclarecedor.

Provavelmente, um juiz da Corte Suprema dos EUA, mesmo conservador, diria que não podemos nunca perseguir uma opinião ou uma fé. Eventualmente, podemos perseguir os atos criminosos que essa opinião estimula, mas não a opinião como tal, visto que a lei que nos governa garante a liberdade de pensar e de se expressar.

Tudo bem, mas a decisão de Jacqui Smith não é tanto jurídica quanto moral: a liberdade de pensar e de se expressar, bem antes de ser uma lei, é um valor positivo de nossa cultura, ou seja, um valor que devemos defender assim como defenderíamos nossa fé ou nossa tradição se vivêssemos numa sociedade tradicional ou religiosa.

Na hipotética posição do juiz, a modernidade ocidental poderia ser uma sociedade sem valores positivos; ela seria regida apenas por leis, que, no caso, permitem que cada um pregue o que quiser -inclusive que ele pregue contra as leis que governam nossa convivência. Na posição de Smith, contrariamente ao que afirmam os apóstolos de nossa "decadência moral", a modernidade é uma sociedade rica em valores positivos. Nela, o respeito por esses valores é condição básica para ser cidadão; e o desrespeito é a marca do inimigo -assim como, numa sociedade tradicional, é inimigo quem pensa e professa de maneira diferente da tribo.

Outra diferença entre as duas posições é que, no primeiro caso, é quase impossível reconhecer adversários; um mito de paz universal surge como corolário do princípio legal pelo qual toda diferença é permitida. Nessa posição, somos avessos a conflitos e, eventualmente, combatentes envergonhados: combater contra quem, se, por lei, todos podem ser "dos nossos"?

No segundo caso, é fácil responder a essa pergunta: trata-se de combater contra quem, de fato, não é "dos nossos", ou seja, contra quem é inimigo de nossos valores.

Como me situo? Pois é, muitos anos atrás, militei a favor da ideia de que os partidos com vocação totalitária devem ser proibidos numa democracia que eles têm o intento de abolir.

A lista de Jacqui Smith me tocou. Ela mostra que, para reconhecer valores que valem a pena defender, não é necessário se identificar com um grupo ou uma facção: nossa cultura basta e sobra.

Além disso, a leitura da lista me fez pensar em minha tia Rosalia, que sempre me dizia: "A inteligência humana tem limites; a estupidez não tem".

Um comentário:

  1. Contardo, me permita discordar de seu posicionamento nessa questão. Sim, eu ficaria do lado do juiz norte-americano. E não porque eu ou "ele" achemos legítima a manifestação desses grupos, muito menos por concordarmos com suas idéias. Não se trata aí da legalidade em sentido estrito - até porque alguns desses grupos já cometem crimes em alguns países (o caso do Brasil, por exemplo, em que a expressão do racismo por si só já é crime). Mas o que se questiona é a legitimidade do Estado - cuja vontade está sujeita à dos seus burocratas e políticos - em adentrar a esfera material de valoração desta ou daquela ideologia. Abrindo-se essa Caixa de Pandora, o que viria em seguida? A censura pode - e deve! - ser moral e socialmente concretizada em face desses grupos racistas, xenófobos, sexistas, etc. O que não podemos é nos valer do Estado - e do julgamento pessoal de seus titulares - para fixar, sob um paradigma axiológico, o que é ou não legítimo de ser dito pelos seus cidadãos.

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