26 novembro 2009

Adultos infantilizados




A infantilização do consumidor é peça chave do espírito do capitalismo atual


D URANTE O feriado, nos cinemas, só dava "Lua Nova", de Chris Weitz, "2012", de Roland Emmerich, e "Os Fantasmas de Scrooge", de Robert Zemeckis. Claro, havia outros filmes, mas meio que perdidos na programação.
 
Imaginemos que você preferisse ler um romance e consultasse a lista dos mais vendidos. Você encontraria cinco títulos de Stephenie Meyer (a autora da saga de vampiros, cujo segundo volume inspira o filme "Lua Nova"), dois volumes dos "Diários do Vampiro", de L. J. Smith, e, no fim, "O Pequeno Príncipe".

Ora, assisti a "Os Fantasmas de Scrooge" (não perderia um filme de Zemeckis, o diretor de "Forrest Gump") e achei excelente; vi de óculos, em 3D, deleitando-me com a atmosfera encantada: como disse uma menina, nevava na sala de cinema. Não vi "Lua Nova", mas gosto da saga de Meyer, sobre a qual escrevi nesta coluna, assim como escrevi sobre o primeiro filme da série, "Crepúsculo". Além disso, aposto que me divertiria com a fantasia catastrófica de "2012"; Emmerich já me divertiu com "Independence Day". Enfim, tenho uma lembrança comovida de "O Pequeno Príncipe".

Então, por que me queixaria dessa preponderância de filmes e livros obviamente infantojuvenis? Não me queixo, apenas constato: nas salas de cinema ou nas livrarias, aparentemente, os adultos devem ser uma pequena minoria, com a exceção, é claro, dos que acompanham suas crianças ou as presenteiam com livros. Estou sendo irônico: é claro que os grandes consumidores de filmes e livros infantojuvenis só podem ser os adultos.

Domingo, um amigo editor me explicava, justamente, que o filé mignon atual são os "crossovers", ou seja, as obras que "atravessam", que seduzem tanto as crianças quanto os adultos. O best-seller e o blockbuster ideais são histórias supostamente para crianças e adolescentes, mas capazes de conquistar os leitores e os espectadores adultos.

Se consultarmos a lista dos livros mais vendidos de não ficção, a conclusão é a mesma. Como assim? Os ensaios não são o domínio reservado e sisudo dos adultos? Artifício: o sucesso dos livros de autoajuda forçou os jornais a separá-los dos de não ficção, mas, de fato, os mais vendidos de não ficção são os livros de autoajuda. Ora, o texto de autoajuda se relaciona com o leitor como com alguém que precisa e prefere ser guiado, orientado, ajudado a pensar, decidir e agir, ou seja, relaciona-se com o leitor como com uma criança.

Pois bem, Benjamin Barber, no seu novo livro, "Consumido - Como o Mercado Corrompe Crianças, Infantiliza Adultos e Engole Cidadãos" (Record), apresenta a infantilização do consumidor não como um acidente cultural momentâneo, mas como a peça chave do espírito do capitalismo contemporâneo.

Barber é convincente e divertido: chegaram os "kidadults", os "criançultos". O drama do dia não é que as crianças sejam alvo do mercado, mas que o mercado esteja transformando os adultos em crianças.

Por que o mercado prefere lidar com "criançultos"? E o que nos predispõe a sermos infantilizados? Uma breve hipótese. Houve, sobretudo a partir da segunda metade do século 20, uma explosão de um tipo especial de amor dos pais pelos filhos, um amor feito de esperanças e expectativas monstruosas (as crianças serão o que quisemos e não conseguimos ser, nada lhes faltará). Esse tipo de amor parental cria consumidores ideais: por exemplo, indivíduos com pouquíssima tolerância à frustração (e alergia à própria ideia de que algo seja difícil ou, pior, impossível) e com uma imperiosa necessidade de satisfação imediata (e alergia a tudo o que posterga: preparação, estudo, reflexão, complexidade, poupança).

Alguém dirá: e daí, qual é o problema? Exemplo. João quer ser rapper na África do Sul e gasta, impulsivamente, o décimo terceiro da mãe na roupa certa para se parecer com seus ídolos. Para ser rapper na África do Sul, talvez fosse mais urgente que ele estudasse inglês seriamente. Mas essa observação poderia entristecer João. Melhor deixá-lo sonhar e confundir sua mascarada com o começo da realização de seu desejo; afinal, ele é feliz assim, não é? Pois é, suposição errada: quem cresce sem nunca se deparar com o impossível ou mesmo com o difícil, acaba, mais cedo mais tarde, vivendo no desespero. Por quê? Simples (como um filme para crianças): ele só consegue atribuir seus fracassos ao que lhe parece ser sua própria impotência.
ccalligari@uol.com.br

19 novembro 2009

"In vino veritas"




A educação dos gostos pode parir inquietante uniformidade; é o que acontece com o vinho



DUAS SEMANAS atrás, enquanto saboreávamos uma garrafa de Pomerol, um amigo me contou que, durante uma viagem recente, seus anfitriões chineses tinham insistido para que ele experimentasse um vinho da parte da Mongólia que é região autônoma da China. Meu amigo se preparou para o pior, mas, surpresa, o vinho da Mongólia era um cabernet muito parecido com um bom Bordeaux.

Melhor para meu amigo. Mas duvido que a terra da Mongólia seja igual à das colinas bordelesas. Tampouco o cultivo da vinha cabernet é uma tradição mongol.

Em compensação, numa pesquisa na internet, encontrei ao menos um viticultor da Mongólia que declara envelhecer seu vinho, durante dois anos, em barris de carvalho importados da França. Esse processo confere ao vinho gosto e buquê específicos, que, nos últimos 20 anos, tornaram-se uma espécie de padrão do vinho da região de Bordeaux. Resultado: o vinho da Mongólia está pronto para satisfazer a maioria dos consumidores americanos, europeus etc., mas nunca saberemos o que teria sido um vinho da Mongólia, se ele tivesse existido. Os viticultores da Mongólia perderam a chance de inventar uma cultura do vinho que lhes seja própria, e nós, a de apreciar um gosto novo, diferente. O mundo perdeu um pouco de sua diversidade possível.

"In vino veritas" significa que o vinho solta a língua: quem bebe revela verdades. Lendo "Gosto e Poder", de Jonathan Nossiter (Companhia das Letras; Nossiter é o diretor do filme "Mondovino", de 2004), a expressão ganha outro sentido: a evolução do vinho, nas últimas três décadas, mundo afora, diz verdades incômodas sobre os perigos da globalização, ou seja, sobre um processo que transforma não só os produtos dos quais fruímos mas também o nosso gosto.

Em 1899, Thorstein Veblen previa que, "no futuro", o consumo ostensivo de artigos de luxo não seria suficiente para confirmar o privilégio de classe. O consumidor, ele pensava, deverá se tornar um entendedor, capaz de ostentar seu saber sobre os objetos que ele consome (Veblen listava: roupa, arquitetura, drogas e, é claro, bebida).

A necessidade de cultivar a faculdade estética e de conversar sobre o gosto levará os mais ricos a abandonar a vida ociosa para se instruir um pouco -o suficiente para justificar as escolhas e as preferências.

Essa transformação prevista por Veblen tem um lado simpático: afinal, mesmo quem não dispuser dos meios para adquirir e usufruir terá acesso ao saber sobre o que seria bom consumir, e esse saber "enobrecerá" o consumidor, promovendo-o socialmente pela educação dos gostos. Problema: a "educação dos gostos" é capaz de parir uma inquietante uniformidade do gosto. A história recente do vinho, mostra Nossiter, é um exemplo disso. Três tempos:

1) O consumidor "futuro" de Veblen pode aprender tudo sobre "domaines" e safras, mas esse esforço não o dispensa de justificar suas escolhas pelo próprio prazer que seu vinho preferido lhe proporciona. Aqui, ele encontra duas dificuldades. Como descrever e transmitir esse prazer? E como se certificar de que sua preferência não seja singular e arbitrária?

2) Imaginemos que, nesta hora, surja alguém (Robert Parker?) que invente uma linguagem para descrever as qualidades gustativas e olfativas do vinho. Se for uma linguagem barroca e um tanto tola, melhor ainda: seu uso meio hermético confortará o consumidor com a impressão de pertencer a uma "confraria".

E imaginemos que o mesmo Parker proponha seu próprio gosto como critério universal de classificação de todos os vinhos.

Eis que o consumidor "futuro" dispõe das palavras que ele procurava e de um sistema classificatório que, se ele o aceitar, tornará seu gosto menos questionável e "arbitrário". Claro, são as palavras e o gosto de um outro, mas nada é perfeito, não é?

3) Imaginemos agora que um enólogo amigo de Parker (Michel Rolland?) descubra e comercialize a receita para transformar os vinhos de quase qualquer território (por que não da Mongólia?) de modo que correspondam ao gosto de Parker, que se tornou o gosto de quase todos. Em suma, a dita educação dos gostos produziu o triunfo de um gosto só (e, é claro, um excelente negócio).

A todos, boa leitura e boa meditação sobre o futuro de nosso gosto globalizado. Só uma coisa: nem tudo é ruim na globalização. Por exemplo, sou a favor da aparição de queijos "tipo" taleggio, camembert etc. no meio da cultura autóctone do queijo de minas e do queijo prato. E talvez, sem os barris franceses, o vinho da Mongólia seja intragável. Mas essa é outra história.

12 novembro 2009

Impasse de um sonho moderno?




O sonho de um mundo que seja uma nação só, integrando etnias e culturas, ainda vale?


NA SEMANA passada, na base militar de Fort Hood, Texas, um major-psiquiatra do Exército dos EUA, Nidal Malik Hasan, 39, saiu atirando. Com a exceção de um civil, suas vítimas (13 mortos e 27 feridos) foram seus companheiros de armas.
 
Hasan é muçulmano, nascido nos EUA de imigrantes palestinos, e estava na iminência de partir para a guerra do Afeganistão. Será que o Exército deveria ter previsto um conflito possível entre sua religião e seu serviço numa guerra contra o Taleban e outros extremistas islâmicos? Será que o Exército deveria ter considerado que, por ser muçulmano, Hasan não seria apto a servir? E será que, depois desse incidente, o Exército dos EUA adotará, explícita ou silenciosamente, a política de dispensar os muçulmanos do serviço militar ativo?
 
Do ponto de vista logístico, seria inócuo: há 3.000 soldados de religião muçulmana num exército de mais de meio milhão. Mas pense bem: você gostaria de ser cidadão de um país que desconfiasse de você, a ponto de lhe proibir servir nas Forças Armadas?
 
Domingo, no canal de TV CBS, o senador Lindsey Graham, republicano, declarou que o ato de Hasan "não tem nada a ver com religião, nada a ver com o fato de que esse homem é muçulmano".
 
Certo, tudo indica que Hasan não é um terrorista islâmico; também seria inexato dizer que sua religião o levou a sair atirando. Mas é ingênuo imaginar que a "explosão" de Hasan não tenha nada a ver com uma contradição entre sua religião e a iminência de seu serviço no Afeganistão ou mesmo com seu ofício do momento (quais expressões de ódio contra sua fé e sua ascendência ele ouviu dos veteranos traumatizados de quem ele se ocupava como psicoterapeuta, há meses?).
 
A explicação da declaração apressada de Graham está nas palavras do general George Casey, chefe de Estado-Maior do Exército, que quis imediatamente prevenir a tentação de excluir os muçulmanos das Forças Armadas: "Seria uma vergonha", ele disse, "se nossa diversidade fosse mais uma vítima (dessa matança)".
 
Se isso acontecer, seria, de fato, uma derrota não do Exército dos EUA, mas de um ideal moderno que os EUA, bem ou mal, tentam encarnar desde sua fundação -ou seja, o sonho de um país em que a ascendência, a etnia e a religião dos cidadãos não implicariam nenhuma diferença de cidadania (sonho reavivado, mundo afora, pela eleição de Obama).
Durante a Segunda Guerra Mundial, os EUA segregaram os descendentes de japoneses. Desconfiaram da etnia mais do que da ascendência, pois, à diferença do que aconteceu aqui, os descendentes de italianos ou alemães não foram segregados nem afastados do serviço militar.
 
Embora combatessem contra a nação que fora a pátria dos pais ou avós, esses soldados não viveram dramáticos conflitos entre patriotismos opostos. Podiam ser alemães ou italianos pelo passado, pela tradição, pela língua ou pela relação com a terra, mas eram americanos por algo diferente, que prevalecia: ideias, projetos, sonhos comuns.
 
Um desses sonhos (que vale para quase todas as nações americanas) é o sonho de uma nação parecida com o que seria o mundo se ele pudesse ser uma nação só, milagrosamente capaz de incluir e integrar cidadãos de qualquer etnia, história e cultura.
 
O problema (de Lindsey Graham, de George Casey e talvez de todos nós) é evitar que Hasan seja transformado numa espécie de homem-bomba cultural: uma prova de que há diferenças que resistem a quaisquer desejo e esforço de integração, intatas, no âmago do indivíduo, até explodirem um dia.
 
  A novela da Uniban continua. Na sexta passada, por decisão do Conselho Universitário da Uniban, Geisy Arruda, ameaçada de estupro e linchamento coletivos, foi expulsa da universidade, porque, "claro", tudo isso aconteceu por ela ter tido posturas provocantes. Em caso de estupro, aliás, a gente sabe que a culpa é sempre da mulher; quem manda usar minivestido, hein? São todas putas, não é? Gostam de provocar e depois se queixam se os garotos as tratam como merecem.
 
Eu achava mesmo que esses papos sinistros só sobrevivessem nos piores botecos e, mesmo assim, em horário avançado. Talvez o Conselho da Uniban, para chegar à sua decisão, tenha se reunido num boteco. Numa universidade é que não pode ter sido.

Bom, na última segunda, o reitor da Uniban revogou a expulsão de Geisy. "Imparcial", também revogou a suspensão de seis alunos identificados entre os agressores.

ccalligari@uol.com.br

06 novembro 2009

A turba da Uniban




As turbas têm um ponto em comum: detestam a ideia de que a mulher tenha desejo próprio


NA SEMANA passada, em São Bernardo, uma estudante de primeiro ano do curso noturno de turismo da Uniban (Universidade Bandeirante de São Paulo) foi para a faculdade pronta para encontrar seu namorado depois das aulas: estava de minivestido rosa, saltos altos, maquiagem -uniforme de balada.
 
O resultado foi que 700 alunos da Uniban saíram das salas de aula e se aglomeraram numa turba: xingaram, tocaram, fotografaram e filmaram a moça. Com seus celulares ligados na mão, como tochas levantadas, eles pareciam uma ralé do século 16 querendo tocar fogo numa perigosa bruxa.

A história acabou com a jovem estudante trancada na sala de sua turma, com a multidão pressionando, por porta e janelas, pedindo explicitamente que ela fosse entregue para ser estuprada. Alguns colegas, funcionários e professores conseguiram proteger a moça até a chegada da PM, que a tirou da escola sob escolta, mas não pôde evitar que sua saída fosse acompanhada pelo coro dos boçais escandindo: "Pu-ta, pu-ta, pu-ta".

Entre esses boçais, houve aqueles que explicaram o acontecido como um "justo" protesto contra a "inadequação" da roupa da colega. Difícil levá-los a sério, visto que uma boa metade deles saiu das salas de aula com seu chapéu cravado na cabeça.

Então, o que aconteceu? Para responder, demos uma volta pelos estádios de futebol ou pelas salas de estar das famílias na hora da transmissão de um jogo. Pois bem, nos estádios ou nas salas, todos (maiores ou menores) vocalizam sua opinião dos jogadores e da torcida do time adversário (assim como do árbitro, claro, sempre "vendido") de duas maneiras fundamentais: "veados" e "filhos da puta".

Esses insultos são invariavelmente escolhidos por serem, na opinião de ambas as torcidas, os que mais podem ferir os adversários. E o método da escolha é simples: a gente sempre acha que o pior insulto é o que mais nos ofenderia. Ou seja, "veados" e "filhos da puta" são os insultos que todos lançam porque são os que ninguém quer ouvir.

Cuidado: "veado", nesse caso, não significa genericamente homossexual. Tanto assim que os ditos "veados", por exemplo, são encorajados vivamente a pegar no sexo de quem os insulta ou a ficar de quatro para que possam ser "usados" por seus ofensores. "Veado", nesse insulto, está mais para "bichinha", "mulherzinha" ou, simplesmente, "mulher".

Quanto a "filho da puta", é óbvio que ninguém acredita que todas as mães da torcida adversa sejam profissionais do sexo. "Puta", nesse caso (assim como no coro da Uniban), significa mulher licenciosa, mulher que poderia (pasme!) gostar de sexo.

Os membros das torcidas e os 700 da Uniban descobrem assim um terreno comum: é o ódio do feminino -não das mulheres como gênero, mas do feminino, ou seja, da ideia de que as mulheres tenham ou possam ter um desejo próprio.

O estupro é, para essas turbas, o grande remédio: punitivo e corretivo. Como assim? Simples: uma mulher se aventura a desejar? Ela tem a impudência de "querer"? Pois vamos lhe lembrar que sexo, para ela, deve permanecer um sofrimento imposto, uma violência sofrida -nunca uma iniciativa ou um prazer.

A violência e o desprezo aplicados coletivamente pelo grupo só servem para esconder a insuficiência de cada um, se ele tivesse que responder ao desejo e às expectativas de uma parceira, em vez de lhe impor uma transa forçada.

Espero que o Ministério Público persiga os membros da turba da Uniban que incitaram ao estupro. Espero que a jovem estudante encontre um advogado que a ajude a exigir da própria Uniban (incapaz de garantir a segurança de seus alunos) todos os danos morais aos quais ela tem direito. E espero que, com isso, a Uniban se interrogue com urgência sobre como agir contra a ignorância e a vulnerabilidade aos piores efeitos grupais de 700 de seus estudantes. Uma sugestão, só para começar: que tal uma sessão de "Zorba, o Grego", com redação obrigatória no fim?

Agora, devo umas desculpas a todas as mulheres que militam ou militaram no feminismo. Ainda recentemente, pensei (e disse, numa entrevista) que, ao meu ver, o feminismo tinha chegado ao fim de sua tarefa histórica. Em particular, eu acreditava que, depois de 40 anos de luta feminista, ao menos um objetivo tivesse sido atingido: o reconhecimento pelos homens de que as mulheres (também) desejam. Pois é, os fatos provam que eu estava errado.

ccalligari@uol.com.br