Receio que o grupo me tire a coragem de pensar diferente e declarar a divergência |
NA SEMANA retrasada, evoquei um episódio de 1975. Numa célula do Partido Comunista Italiano, em Milão, um companheiro fez um comentário infeliz sobre a sexualidade de Pier Paolo Pasolini, que acabava de ser assassinado. Eu saí, consternado, e o episódio foi o fim da parte de minha vida em que pude ser militante.
O que abandonei naquela época foi a militância, não a política. Meu interesse pela política continua forte até hoje, mas algo mudou. Desconfio de partidos, grupos e aglomerações; mais especificamente, desconfio das falsas concordâncias que surgem entre os membros de partidos ou grupos. Sempre receio que o grupo me tire a coragem de pensar diferente e declarar a divergência.
Existe uma antiga "prova" da existência de Deus, que se chama prova pelo "consenso das gentes", ou seja, algum deus (que, por acaso, é sempre "o nosso") deve existir "porque" todos os povos têm ao menos a ideia da existência de uma divindade. A única coisa que esse argumento me parece provar é que preferimos a tranquilidade de viver concordando com os amigos à tarefa solitária de pensar por nossa conta.
Claro, aquele episódio de 75 não foi a única razão que me afastou da militância partidária. Também no começo dos anos 70, devo ter lido "Darkness at Noon" (escuridão ao meio dia), o livro em que Arthur Koestler diz adeus ao comunismo.
E, na mesma época, li "The God that Failed" (o Deus que falhou), uma coletânea de textos de intelectuais ex-comunistas, publicada em 1949, por Richard Crossman (reli o livro agora, numa reimpressão ainda disponível, de 2001, pela Columbia University Press). A geração dos militantes à qual pertencem os autores reunidos no livro (André Gide, Richard Wright, Ignazio Silone, Stephen Spender, Louis Fischer e Arthur Koestler) se dividiu em duas categorias.
De um lado, os impenitentes, tipo Eric Hobsbawm, que não querem desistir de seus ideais: se, como disse Enrique IV ao tornar-se católico por conveniência política, "Paris vale uma missa no domingo", por que o comunismo não valeria purgas, massacres e perda de liberdade? Do outro lado, os arrependidos, que buscam expiar a culpa de ter acreditado em ideias ensanguentadas.
Minha geração, que veio depois, ficou logo cética, mas, em sua descrença, sem originalidade. Já no século 19, Gustave Flaubert, no divertido "Dicionário das Ideias Feitas" (Nova Alexandria), escrevia: "Ilusões: sempre dizer que tivemos muitas, mas que as perdemos todas" (cito de memória). Acontece que, logo nestes dias, recebi um e-mail inesperado de um amigo que não via há mais de 30 anos. Um amigo da época daquele episódio de 1975. Iniciamos uma correspondência: cada um de nós está tentando contar ao outro por qual caminho sua vida enveredou.
Aquém disso, tentamos também reconstruir nossas experiências daqueles dias, entre 1968 e 1979, que é quando a gente se perdeu de vista. Ora, talvez se trate de um efeito normal do tempo que passou, mas o fato é que, apesar dos esforços (dele e meus), aquele passado me parece cada vez mais caótico e estrangeiro.
Mais do que qualquer ensaio, é um texto literário que resume melhor (aliás, não resume, descreve) minha sensação ao refletir sobre aquela época. Trata-se da "Cartuxa de Parma", de Stendhal (ed. Globo). Quem leu deve se lembrar da aventura do protagonista, Fabrice del Dongo.
O jovem Fabrice é um grande admirador nem tanto de Napoleão, mas das ideias de liberdade que o imperador francês encarnou e difundiu Europa afora. Aos 17 anos, em 1815, o que sobra ao nosso herói é a esperança de se juntar a Napoleão na hora de sua tentativa extrema de voltar ao palco da história, depois do exílio na ilha de Elba.
Fabrice, que mal fala francês, vaga pela França até encontrar um hussardo morto, veste seu uniforme com orgulho (e vaidade) e, com isso, por acaso, envolve-se, ou melhor, é envolvido na batalha de Waterloo, onde Napoleão será definitivamente derrotado. Quanto a Fabrice, ele será ferido pela espada amiga de outro francês e, sobretudo, não entenderá absolutamente nada da batalha, que aparecerá, aos seus olhos, como uma frenética alternância de idas e voltas de cavalheiros num nevoeiro de balas perdidas.
Fabrice, aliás, uma vez chegado de volta em casa, não parará de se perguntar: "Será que eu estive mesmo na batalha de Waterloo?". Saio de férias, retomo em 28 de janeiro. Bom fim e bom começo de ano a todos.
O exemplo de Hobsbawn é péssimo. Ele é quase um neoliberal, apoiava Blair e Clinton, acredita na Terceira Via. A diferença é que ele fala em Marx ainda. Mas em História sempre vai se falar.
ResponderExcluirCalligaris poderia ter exemplificado com o próprio Pasolini, que nunca se preocupou com Arthur Koestler, Soljetnitsin, e essa turma, prosseguindo com o PCI até o fim. Aliás, que diacho tem Callligaris a ver com Pasolini?
Aliás, ele não esteve (será?) presente em uma reunião em que se debatia a morte e sim, possivelmente, o ASSASSINATO de Pasolini por um grupo de extrema-direita, que é o que os comunistas debateram, à parte as piadas, seu enterro foi cheio de punhos fechados. Isso faz toda a diferença: Calligaris saiu porque fizeram piada ou porque não concorda que Pasolini tenha sido assassinado?
Aliás, Calligaris é contra ou a favor da extradição de Battisti?
Olá Contardo! Assisti seu Café Filosófico e vc colocou na mesa tudo o que realmente estava se passando com meu relacionamento: a infidelidade com a gente mesmo.
ResponderExcluirParabéns. Estou aqui lendo seus textos.
Só uma coisa: mude a cor do blog para fundo branco com letras pretas, pois o leitor consegue ficar mais tempo lendo. Assim do jeito que está é cansativo para os olhos, e os textos são maravilhosos.
Sou webdesigner.
Abraços!
Alam, vc poderia por gentileza postar aqui no site a crônica que o Contardo escreveu na folha de ontem, último dia do ano de 2009: "Vinil salva lojas em tempos de pirataria"
ResponderExcluirMuito Obrigado!
Isso é para o Contardo.
ResponderExcluirNão quero comentar o tema desse texto.
Sou uma mulher bonita, sensual, inteligente, criativa... minhas qualidades soa os meus defeitos para o mundo... Somado a isso escodia-me no armário na infancia para nao participar das cooptaçoes nas disputas familiares (será que estou falando do tema do texto?). Trabalho em homeoffice, tenho dois filhos adultos e vivo só. Mas quero conversas inteligentes com homens... Quem sabe, Contardo...
A comentário do Penetralia só comprova a reflexão de Calligaris...
ResponderExcluirMAM
Quão irônico... o comentário de Penetrália e suas bizarrices nos fazem entender o que disse Calligaris e compreender os motivos dele ter abandonado a militância. Deve ser realmente muito difícil conviver com pessoas assim. Calligaris, com seus textos contribui muito para causas (autoproclamadas) de "esquerda". Já para certos militantes gostaríamos de dizer: "se não pode ajudar, podia pelo menos não atrapalhar".
ResponderExcluirLuiz
Desista de entender Waterloo. Receio que casa de ferreiro o espeto seja de madeira .
ResponderExcluirAbraço,
Rita
Olá Cottardo.
ResponderExcluirMuito prazer... Me chamo Deliane Leite. Sou leitora, blogueira, poeta, pesquisadora da área de letras na UnB e mexo com projetos culturais também!
Assisti a série apresentadas por você no Café Filosófico junto com meu companheiro... Rimos e adoramos. Gostaria de convidá-lo a conhecer meu blog e quem sabe possamos trocar correspondências (como vc mesmo diz).
Forte abraço do cerrado e um feliz ano novo!
Deliane Leite
O rapaz que perguntou sobre a extradição de Battisti vive em um universo paralelo. O comentário dele realmente ilustra o quão maniqueísta e lunática tende a ser a militância política, seja de esquerda, direita, centro, de baixo, de cima, norte, sul, leste ou oeste. Chega-se a um ponto em que qualquer tentativa de reflexão é rechaçada como verdadeira traição ao ideário adotado. Rotulam-se e filtram-se as pessoas como se fossem maçãs podres, não importando se o que elas pensam cria algum sentido.
ResponderExcluirInfelizmente, isso se aplica a nossas universidades federais, que, embora anos-luz à frente de suas equivalentes pagas, não atingem nem de longe o objetivo de levar o alunado a pensar. "Vende-se" repetição obediente como se fosse pensamento crítico. Quase como se o subtexto permanente das aulas fosse uma polarizada eleição para reitor.
Oi, pessoal, tou vendo que vocês gostaram do comentário.
ResponderExcluirPode criticar à vontade o meu "universo paralelo", anônimo (que suponho que é o próprio Contardo), mas quase sempre as federais estão na frente das universidades privadas nas pesquisas realizadas no Brasil.
Uma pena vcs não rebaterem argumento algum e não responderem nada, rebatendo com raivinha que é "ideologia..."
Talvez com um certo atraso, sim; mas comecei a acompanhar, aspas, recentimente os seus textos na Ilustrada. Gosto muito. Muito e sempre. Também com atraso achei seu blog que não deixo mais de visitar, por um segundo se quer.
ResponderExcluirAbraços,
Lucas