27 maio 2010

A coragem do amor que dura


Quando amo, consigo olhar o mundo por duas janelas que não se confundem, a minha e a do ser amado


PROLONGANDO MINHAS observações da semana passada sobre "Quincas Berro d'Água", vários leitores e leitoras observaram que a literatura e o cinema, em geral, glorificam a coragem de quem, um belo dia, chuta o balde e vai embora.

E como ficam os que passam a vida inteira deslocando o balde para estancar as goteiras? Será que eles são todos covardes e acomodados?

É inegável: nossa cultura idealiza a ruptura, a aventura, a saída para o mar aberto. Em matéria amorosa, o momento que preferimos contar é a hora do apaixonamento.

Depois disso, gostamos de imaginar que "eles viveram felizes para sempre", mas sem entrar em detalhes que poderiam transformar a história numa farsa.

Uma boa solução, aliás, é que os amantes morram logo. O sumiço (de ambos ou de um dos dois) evita que a comédia da vida que levariam juntos contamine a apoteose do encontro inicial. Os amantes ideais são os que não duraram no tempo: Romeu e Julieta, o jovem Werther e Charlotte, Tristão e Isolda.

Concluir o quê? Que a coragem é sempre a de quem deixa a mornidão de seu conforto para se queimar num instante de paixão? Será que não pode haver coragem nos esforços para que o amor dure?

É óbvio que a duração não é um valor em si: uma relação pode durar a vida inteira e ser uma longa e insulsa experiência repetitiva, sem amor algum. Mas, inversamente, será que as paixões-relâmpago são amores? Enfim, seria útil dispor de uma definição do amor.

Justamente, li nestes dias um livro que me tocou, "Éloge de l'Amour" (elogio do amor, Flammarion 2009, ainda não traduzido para o português), de Alain Badiou; é a transcrição de uma breve entrevista do filósofo francês.

Nela, inevitavelmente, Badiou constata que, em nossa cultura, a visão dominante do amor é a de uma espécie de "heroísmo da fusão" dos amantes, que, uma vez consumidos por sua paixão, podem sair de cena (para não se tornar ridículos) ou sair do mundo e morrer (para se tornar sublimes).

Contra essa visão, Badiou define o amor mais como um percurso do que como um acontecimento: segundo ele, o amor precisa durar um tempo porque é "uma construção".

Confesso que fiquei com medo de que o filósofo nos propusesse amores tagarelas, em que os amantes não parariam de discutir a relação (claro, para construí-la). Por sorte, não se trata disso. Então, o que constroem os amantes?

Geralmente, explica Badiou, minha experiência do mundo é organizada por minha vontade de sobreviver e por meu interesse particular: vejo o mundo só de minha janela.

Certo, ao redor de mim, há muitos outros de quem gosto e aos quais reconheço o direito de também sobreviver e promover seus interesses.

Mas o fato de eu respeitar esses meus semelhantes não muda em nada meu ângulo de visão. É só quando amo que consigo olhar, ao mesmo tempo, por duas janelas que não se confundem, a minha e a de meu amado. A estranha experiência ótica faz com que os amantes reconstruam o mundo, enxergando coisas que ficam escondidas para quem só sabe olhar por uma janela.

Entende-se que o amor assim definido exija tempo. Quanto tempo? Um mês, um ano, uma vida, tanto faz. Consumir-se na paixão pode ser rápido, mas reinventar o mundo a dois é uma tarefa de fôlego.

O amor segundo Badiou, em suma, é uma aventura, mas que precisa ser obstinada: "Abandonar a empreitada ao primeiro obstáculo, à primeira divergência séria ou aos primeiros problemas é uma desfiguração do amor. Um amor verdadeiro é o que triunfa duravelmente, às vezes duramente, dos obstáculos que o espaço, o mundo e o tempo lhe propõem".

Você aprecia a definição, mas a acha um pouco abstrata? Gostaria da história de um amor que dura e se obstina sem se tornar pesadelo ou farsa? Pois bem, acabo de ler um texto comovedor, bonito e capaz de ilustrar e explicar perfeitamente as palavras de Badiou.

Em "Amar o Que É: Um Casamento Transformado" (Objetiva), Alix Kates Shulman conta como ela e Scott, o marido, reinventaram o mundo, a dois, obstinadamente, depois de um acidente que precipitou Scott numa forma de demência.

Há momentos difíceis, sacrifícios e durezas, mas, curiosamente, o relato não chega nunca a ser triste porque se trata de uma extraordinária história de amor.

11 comentários:

  1. Estou há um mês do meu casamento e há seis anos numa angústia tremenda, pois sinto, impregnada pela história pessoal, que estou prestes a ter que fugir de um enorme e assustador monstro chamado "intimidade". Fiquei extremamente tocada pelas palavras lidas aqui. Tenho pensado muito se existe uma maneira de construir uma relação de amor, real e inédita. Começo a pensar agora que isso é possível. Só é preciso coragem e fôlego. Vou encarar!!!!!

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  2. Outro dia Luiz F. Pondé escreveu na mesma coluna da Folha em que escreve Calligaris, sobre como está em voga determinado "marketing do comportamento" que enaltece "pessoas bem resolvidas", pessoas que chutam o balde. Chutar o balde parece ser o modo mais imediato de elevar o nosso preço no mercado dos afetos e das relações.

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  3. Na semana passada li o Eloge de l'amour. Com certeza um livrinho intenso e rebelde. Só um filosófo comprometido com o mundo é capaz de uma escrita assim porque definir o amor como uma construção de dois para olhar o mundo é por os pares amorosos como sendo sempre seres ímpares e existentes no mundo e para o mundo e não apenas para o ente estranho chamado casal, muito bem definido em um verso de música antiga de Fátima Guedes: " essas metades incompletas mais decentes". Pois para Badiou o amor não é algo que completa os seres, eternos insatifeitos/as da sociedade de consumo, mas a construção de outras possibilidades de si.

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  4. Parabéns pelo seu texto, Contardo, ele já anda rolando pela internet e foi assim que cheguei até aqui. Muito oportuna reflexão, acho que esse seu texto devia ser estudado nas escolas, numa matéria que deveria existir chamada “ Educação Sentimental”.

    Nos relacionamento fomos de um extremo ao outro: dos casais que não se separavam de jeito nenhum, permaneciam num casamento naufragado e sem sombra de esperança por séculos, a casais que se apaixonam na velocidade da luz e se desapaixonam e se separam em velocidade diretamente proporcional. Nenhum desses extremos é bom.

    Dizem por aí que “homem é tudo igual”. Se fosse mesmo, bastava a gente ficar com o primeiro até morrer, né não?!

    Hoje em dia acho que paixão é junk food, é cachorro quente com batata-palha de carrocinha: todo mundo sabe que pode fazer um mal tremendo, que não nutre, mas vez ou outra não resiste e se atira! Amor é aquela comida caseira que vai nutrir, mas que dá muito mais trabalho preparar, precisamos escolher os ingredientes, paciência pra cozinhar... Quem não tem paciência (o que é muito comum nos tempos modernos), termina ligando pro disque pizza numa hora de vazio...

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  5. vive 20 anos com o pai dos meus filhos, me separei a 10 anos e desde então, o amei mais ainda, respeitando, aceitando, tentando entender o momento dele. o amor não acaba porque as pessoas se separam ,mas acaba quando botamos nosso amor próprio na frente de tudo que vivemos enquanto estavamos juntos com a outra pessoa e, digo mais, quando resolvemos compartilhar nosso amor com alguém, já sabemos como o outro é, e mesmo com todas os defeitos que fingimos que não vemos, nós acolhemos por amor que só acaba quando tentamos mudar o que já nos incomodava. "AMAR É TENTAR PREVALECER MAIS OS MOMENTOS BONS QUE OS RUINS..."

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  6. O ser-humano não quer amar, quer ser amado, quer ser reconhecido e por isso busca um outro alguém que lhe afirme que é uma pessoa pelo menos bacana, Une-se não por amor, mas pela conveniência de que viver sozinho é mais difícil e trabalhoso. Não acredito nem em amor apaixonante e muito menos em amor construído, quando você investe em um relacionamento na verdade, está fazendo isso para que sua própria existência seja melhor e menos insignificante.

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  7. Adorei o seu texto. No meu blog, tem um post com o título: "Amor com prazo de validade". Que isso mude..

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  8. Contardo, citei seu texto no meu blog:
    http://sobreteatro.wordpress.com/2010/06/21/a-revolucao-do-amor-parte-2/
    Obrigado pela inspiração!

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  9. Ficar é tarefa para corajosos.!?...
    Mas até os corajosos se conflituam, se subdividem, se fracionam e deslizam em montanhas russas de sentimentos contraditórios.
    Ficar. Permanecer.Tudo às vezes parece imobilidade.Ando confusa com minhas metades incompletas.Ler seu texto é inspirador e revelador pra mim.Ainda permaneço.

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  10. Amor... Palavra complexa, pelo menos hoje...
    Desde pequena escutava minha mãe falar que amor é para sempre, mas ficava a me perguntar o quanto é esse para sempre. Perguntava-me se já tinha que amar desde agora para ser para sempre ou se tinha dia e hora para amar...
    Tinha 12 anos quando ela se separou, logo veio a pergunta, não era para sempre? O que deu de errado? Será que mesmo ela e papai não estando juntos ela vai ter que amá-lo para sempre? Confesso que minha cabeça deu um nó. Tudo o que tinha pensado e acreditado até agora não era bem assim, pois agora via minha mãe namorando novamente e falando que estava amando... Então me perguntei se a gente vê o amor ou se ele é palpável. Foi então que perguntei a ela onde encontro o amor, e ela com os olhos mais lindos, cheios de lágrimas me pegou no colo e me falou que o amor estava dentro de mim, que o amor estava nas pequenas coisas ao nosso redor. No meu aniversário do ano passado de 23 anos estava lendo um livro sobre o amor para faculdade, enquanto ela preparava um café. Ela me olhou e perguntou se eu encontrei o amor. Rindo falei que o amor sempre esteve em mim, foi por conta de seu amor que sei amar e deixar ser amada e que hoje entendia que o amor era apenas uma palavra e que o que eu sentia por ela e pelas pessoas a palavra amor não dava conta.

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  11. A herança do amor da era romântica deixou marcas profundas na sociedade da gente. Só que está tão disseminado que ninguém vê mais como uma visão dentre outras possíveis. Se tornou padrão pra gente. O valor exagerado à paixão, o amor incondicional e eterno, o sacrifício pelo ente amado.

    É triste ver a quantidade de casamentos que não dão certo porque a vida começa onde acaba o conto de fadas, isto é, no "viveram felizes...". Isso tem grandes chances de acontecer sempre que as pessoas enxergam o casamento (aquele ideal, a festa tudo) como um fim em si, e não como o começo de uma nova forma de viver.

    Esse amor sem identidade, com traços de paixão e inspiração no amor incondicional divino, decorado com rosas vermelhas, contribuiu para obsessões dos mais diversos tipos. Tornou-se uma verdadeira ideologia.

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