15 julho 2010

Dois jeitos de viajar


Ruskin amava as pedras e as lia como livros, Byron amava a aventura e preferia ler os corpos


NO FIM da adolescência, eu não queria mais viajar com meu pai, pois gostávamos de viajar de jeitos diferentes. Eu entendia essa diferença pensando nos estilos opostos de George Byron e John Ruskin, dois grandes amantes de Veneza.

Byron dedicou a Veneza o quarto canto de "Childe Harold's Pilgrimage" (a peregrinação do cadete Harold), cujos primeiros versos, "Parei em Veneza, sobre a Ponte dos Suspiros etc.", ainda são declamados por hordas de jovens românticos, quando olham para a dita ponte.

O curioso é que, em "Childe Harold", Veneza é apresentada como uma ruína solene e grandiosa. De fato, Byron não tinha interesse algum pela arquitetura e pelas artes. Ele gostava de acumular experiências e tolerava os monumentos apenas se eles fossem animados por uma boa história.

Byron ficou em Veneza de 1816 a 1819, primeiro nas Frezzerie, no apartamento de um alfaiate de cuja mulher ele era o amante, logo, a partir de 1818, num palácio, onde acumulou bichos exóticos, carnavais e gonorreias. Mais próximo de sua real experiência veneziana, Byron escreveu "Beppo" (Nova Fronteira), que é um extraordinário e divertido poema narrativo.

Ruskin, 30 anos mais tarde, encontrou uma Veneza totalmente desertada pelos restos da festa do século 18. De qualquer forma, já por índole, Ruskin amava as pedras e as lia como livros, Byron amava a aventura e preferia ler os corpos.

Todos nós, quando viajamos, somos um pouco Ruskin e um pouco Byron. Mas meu pai era mais Ruskin, e eu, mais Byron.

Ora, acabo de voltar de Veneza e, no último dia, tive um encontro do qual Byron teria gostado (Ruskin também, só que menos).

Sou um leitor das aventuras de Corto Maltês, os quadrinhos de Hugo Pratt (em português, pela Pixel). No fim de "Favola di Venezia", Pratt, perdido num emaranhado de personagens e situações, declara que existem, em Veneza, "três lugares mágicos e escondidos: um está na calle do Amor dos Amigos; outro, perto da Ponte das Maravilhas; o terceiro, na calle dos Marranos, perto de San Geremia no Gueto".

Quando os venezianos estão em apuros, eles procuram esses lugares secretos e, "abrindo as portas que estão no fundo dos pátios, vão-se embora para lugares lindíssimos e para outras histórias". Corto Maltês bate numa porta e diz: "Sou Corto Maltês, deixo esta história e peço para entrar numa outra, num outro lugar". Pronto, ele começa uma nova aventura.

Um propósito de minha estadia veneziana era de encontrar os três lugares. Deixando de lado a calle dos Marranos (que não consigo identificar), entrei em todos os pátios nos arredores da Ponte das Maravilhas e do Ramo do Amor dos Amigos. Mas como saber quais eram as portas mágicas?

O livro "La Guida di Corto Maltese alla Venezia Nascosta" (o guia de C. M. à Veneza escondida), de G. Fuga e L. Vianello (Rizzoli, existe também em inglês), é perfeito para passear por Veneza num estilo mais Byron que Ruskin. Mas a leitura não me ajudou a encontrar as portas.

Finalmente, na tarde de sábado passado, na livraria AcquaAlta, na Longa Santa Maria Formosa, conversei com um senhor de barba branca, que estava folheando uma aventura de Corto Maltês. Imaginei que ele pudesse ter sido um amigo de Pratt, dos anos 1970, companheiro das noites no restaurante Graspo de Uva.

O fato é que ele se lembrava da história dos três lugares de Veneza e, quando lhe perguntei se ele saberia indicar as famosas portas, ele me respondeu: "A mim me parece" (é assim que fala um veneziano) "que, se você as procura, é que você já as encontrou". E logo ele se foi.

Como interpretar essa frase a la Pascal? Entendi assim: se eu acreditava numa ficção a ponto de procurar os lugares que ela inventa, eu não precisava de mais nada para passar de uma história a outra. Pois o segredo é inventar.

Pensei que Ruskin teria gostado da ideia de procurar os lugares mencionados por Pratt, mas só Byron teria aberto as portas. Ele, aliás, não parava de abrir portas e fugir para novas histórias. Vai ver que, em Missolonghi, quando sumiu, aos 36 anos, combatendo pela independência da Grécia, ele não morreu, apenas abriu mais uma porta. E foi para outra.

7 comentários:

  1. Sou grande fã do Contardo e assino a Folha para ler o Contardo de quinta-feira!
    Porém, achei muito chato este último artigo, já tinha lido na folha hoje de manhã e nem parecia um artigo do Contardo... repetitivo e leve em excesso.
    Semana passada eu tambem não tinha gostado, achei muito elitista. Quem pode esperar o terno ser cortado por um artesão italiano? Parece que quando o Contardo vai pra Veneza fica mais distante não só fisicamente...
    Espero o da semana que vem para remover esta idéia das ultimas 2 semanas.

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  2. chato mesmo! É a sina de quem é cronista regular, acho...

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  3. Tb concordo!!!!!!! Muito elitista! Não conheço nada disso!

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  4. Então só porque não conhecem é elitista?!?

    Para que ler só sobre o que já se sabe ou conhece?

    Fugir da mediocridade, nem pensar?

    Eu fiquei é morrendo de vontade de conhecer essa Veneza, ler Byron e Ruskin! Adorei!

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  5. Escrevi o primeiro comentário. Respondendo a Tatiana:
    - não é dificil imaginar que existam alfaiates artesãos que façam ternos sob medida, aliás, é tradição italiana. O problema é realmente o tempo que é preciso para este procedimento artistico (de ter um terno sob medida). É mais natural comprar um feito e ajustar, mesmo que seja numa loja. Para esperar o terno vc precisa de tempo para ir e de tempo para ficar pronto. Questao de logistica... agora, quem possui apartamento na Europa, fica mais fácil... Como é natural(pra quem?) possuir tal bem, talvez sejamos mesmo mediocres, porém, apenas financeiramente!
    - já fui a Veneza e sinceramente nao precisei conhecer Byron ou Ruskin para apreciar a cidade...
    - estes autores estao em futuras listas de leitura, mas nao devido à este artigo.
    - o artigo de hoje está otimo! Ufa! Contardo voltou a existir!

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  6. Excelente artigo, e mais ainda por causa da lembrança e da referência a Pratt e ao seu Corto Maltese.

    Interessante também a tentativa de traduzir o rústico dialeto veneziano: "A me mi pare..."

    Abs
    fabiano

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