02 dezembro 2010

Delinquência e privação




Quem se sente culpado não age -no máximo, ele espera que suas vítimas se vinguem


UMA CENA emblemática da desfeita (temporária ou não) do tráfico carioca foi a visão de um punhado de traficantes armados, correndo e tropeçando, fugindo da Vila Cruzeiro em direção ao Morro do Alemão.

Um amigo comentou que esses restos esfarrapados de um exército na debandada lhe davam pena. "Pena?", estranhei. O amigo respondeu que ele conhece as crueldades das quais os traficantes são capazes, mas, acrescentou, "no fundo, eles são as verdadeiras vítimas". "Vítimas de quê?", perguntei. "Da miséria, da exclusão, da pobreza material e moral", ele respondeu, com condescendência.

Meu amigo não é bronco: ele sabe que nem a miséria nem a exclusão são suficientes para produzir um delinquente. Justamente, os fugitivos da Vila Cruzeiro eram um punhado: o crime, no morro, é a escolha de pouquíssimos.


Ainda assim, meu amigo acredita que as durezas são, no mínimo, uma causa coadjuvante da delinquência. Quando e como surgiu essa ideia?


Não sei dizer, mas um marco é a carta endereçada ao British Medical Journal, no fim de 1939, por J. Bowlby, D.W. Winnicott e E. Miller; ela é reproduzida no começo de "Privação e Delinquência" (Martins Fontes), que reúne os extraordinários textos de Winnicott sobre o tema. A carta foi escrita enquanto, na Inglaterra, as crianças citadinas eram evacuadas para lares rurais, na intenção de protegê-las dos bombardeios. Os autores assinalam que, para crianças entre 2 e 5 anos, a separação prolongada de seus lares é "um importante fator externo na causação de delinquência" futura.


Entre as crianças evacuadas estavam os protagonistas de "As Crônicas de Nárnia" (livros e filmes), e as crônicas talvez ofereçam um prognóstico complementar ao da carta que citei.


Pelas crônicas, as crianças que forem privadas de um lar não se tornarão necessariamente más e transgressoras: elas tentarão conferir a suas vidas uma dimensão "heroica", do jeito que der -como se, na falta de um lar onde ser tranquilamente quaisquer, elas precisassem transformar suas vidas em epopeias. Com isso, algumas lutarão ao lado do leão Aslam, uma delas trairá Nárnia e, mais perto de nós, algumas inventarão sua própria épica grotesca brandindo armas do alto de um morro carioca.


Seja como for, aceito a ideia de Bowlby e Winnicott de que a privação de amor e de cuidados maternos pode ser uma das causas da delinquência. Mas essa constatação inicial engendrou uma versão "ampliada" pela qual, em geral, uma infância sofrida explicaria a delinquência do adulto.


O elo é que uma frustração trivial, imposta a uma criança, pode funcionar como uma privação afetiva: se não tenho o tênis que quero é porque a mãe (indigna) não me ama. Portanto, quem sofre pela falta de um tênis está sendo, de fato, privado de amor (e tem mais chances de se tornar delinquente).


Ora, para que serve essa ideia de que as frustrações produziriam delinquência? Pois bem, essa ideia nos permite, por exemplo, explicar a existência do mal: a delinquência existe porque frustramos cruelmente um monte de crianças. Ou seja, a nossa culpa organiza e torna inteligível o mundo.


Será que com isso nossa ação será mais fácil? Afinal, se o mundo é iníquo por culpa nossa, não deveria ser simples mudá-lo? Infelizmente, não é assim que a culpa funciona: quem se sente culpado não age -no máximo, ele espera que suas vítimas se vinguem. Conclusão: podemos idealizar a delinquência como justa revanche dos que nós, egoístas, privamos de tênis e de amor.


Meu amigo diria: por que não? A revanche não seria um bom jeito de fazer justiça? Seria, mas a espera da revanche dos privados e dos frustrados nunca passa de uma atitude retórica para amenizar a culpa, que, de novo, não leva a ação alguma, só a lamúrias em prol, como dizia meu amigo, das "verdadeiras vítimas" (as falsas, "obviamente", seriam as que sofrem com a violência delinquente).


Agora, uma boa notícia: ao longo do fim de semana, exceção feita pela observação de meu amigo, não escutei nenhum ato de contrição. É uma boa notícia, porque isto aprendi ao longo de minha clínica: só é possível agir e mudar (um pouco) o mundo com a condição de se liberar da culpa e da falsa compreensão que ela produz.


Talvez, desta vez, sem as ladainhas da culpa, algo mude no Rio de Janeiro.

8 comentários:

  1. Concordo em parte com o Calligaris

    Devemos tomar cuidado para não se individualizar o problema do tráfico. Existem muitas conjecturas sociais que facilitam ou induzem os indíviduos a ser tornarem traficantes.
    Os traficantes deveriam ser presos e ter todos os direitos humanos respeitados. Invadir o morro é solução encontrada para destituir o tráfico sem mexer nos grandes tubarões dele.
    PoR fim, digo que é uma ilusão achar que a violência irá acabar somente com a eliminação, sem mexer na estrutura por baixo da formação de um novo traficante.

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  2. Realmente não se pode afirmar que as dificuldades na infância originem a delinquência, mesmo porque, há delinquentes em todas as classes e não me parece que os "do morro" (não justificando) matem tanto os pais/filhos e pratiquem tanto genocídio (mesmo que indireto) quanto os "fora do morro".

    Mas dêem assistam com atenção a "Falcão, os meninos do tráfico". Observem a maior parte das justificativas dos meninos para entrar na criminalidade, a defesa da mãe.

    Claro que não podemos simplificar a discussão, mas como órfão de pai logo cedo e com a mãe que "ralou" para cuidar de 3 filhos pequenos sozinhos e associado a uma sociedade com tradições machistas, posso dizer por experiência própria, que a culpa pelo sofrimento da mãe é martirizante.

    Talvez com uma educação um pouco mais falha e um meio um pouco mais tolerante eu não teria me tornado um delinquente também.

    Novamente enfatizo, não dá para simplificar, mas é um bom indício de que as coisas não são tão simples como o pensamento reacionário/classe média diz.

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  3. É, achei o texto um pouco individualizante. Ficou um pouco receoso com as visões deste tipo. No caso da delinquência, acho interessante ampliar o foco de análise para questões sociais e críticas. concordo no sentido de que não há relações de causa/efeito possíveis de determinar.
    Enfim, gostei mais dos outros textos a este último.

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  4. Talvez a resiliência possa explicar um pouco o que pode levar uma criança sem nenhum apego a conseguir enfrentar as adversidades futuras ou não. Encontrar um tutor, uma única pessoa que lhe dê amor já seria suficiente.
    Abraços
    Reginaldo

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  5. A forma como o Contardo conduz é interessante, embora reduzir à culpa e, possivelmente, às estruturas edípicas, seja muito reducionista... Contudo a teoria do Bowlby é digna de nota... apesar de focar numa sociedade inglesa, com um desenvolvimento histórico totalmente diferente da nossa história social e política. Embora realmente apareçam em nossa sociedade características a l Robin Hood. Enfim, como alguns amigos psicanalistas defendem vivemos na clínica do gozo, o excesso de gozo proporciona ao jovens de nossa classe média uma exacerbação da violência... que não esta restrita aos nossos morros mas também na Av. Paulista...

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  6. Acredito que mais que a privação, mas a privação junto com a ilusão de "você pode", "você consegue", quando na verdade, não pode e não consegue. Eu sempre imagino que mais triste que não ter um tênis, é a televisão/a publicidade em geral, tentando nos convencer que nós "merecemos" aquele produto.É claro que isso, é apenas uma parcela do problema.

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  7. Aliás, esse post me fez lembrar de uma música do Gonzaguinha -Comportamento Geral: "Você deve aprender a baixar a cabeça/
    E dizer sempre: "Muito obrigado"/
    São palavras que ainda te deixam dizer/Por ser homem bem disciplinado... Você merece, você merece/Tudo vai bem, tudo legal/
    Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé/
    Se acabarem com o teu Carnaval?"

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  8. Privação de bons afetos é uma coisa e frustração por não ter isso ou aquilo (bens materiais) é bem outra. Acredito piamente que a maternidade precisa estar mais na mente e no coração do que no útero. As fêmeas do mundo animal podem parir o quanto quiserem, já as do mundo humano e seus respectivos machos, inseridos na cultura, aquela dupla que hipoteticamente engravida, gesta, dá à luz e cuida de verdade, não! Deveríamos ser o resultado de um desejo, pulsão de vida, mas a maioria parece ser a soma de uma demanda (dos pais) pela morte (de si) projetada sobre os rebentos. É a sociedade altamente destrutiva que está aí. O consumismo é uma das formas mais sutis de violência contra a vida, e no entanto é estimulado como forma de "não frustrar" as pessoas. Oras, há algo muito estranho aí.

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