É graças aos bonecos que a criança pode mutilar, despedaçar e queimar os ídolos que lhe são propostos |
KEN, O companheiro de Barbie, chega aos 50 anos e não envelhece: a camiseta de sua última versão anuncia, sem falsa modéstia, que ele continua sendo "o namorado perfeito".
Tenho mais simpatia por Barbie que por Ken. Barbie foi detestada pelas feministas por ser incansavelmente consumista e narcisista. No entanto, ela foi uma batalhadora, competindo com os garotos em todos os campos do saber e do trabalho. Ken, em compensação, sempre me pareceu desmiolado por sua própria convicção de ser o objeto irresistível do desejo de todos -homens e mulheres (tudo bem, concordo: ele se redimiu um pouco em "Toy Story 3").
Enfim, o aniversário de Ken está sendo celebrado com um novo boneco, Sweet Talking Ken (Ken fala doce), que contém um sistema de gravação e fala: você aperta seu coração e grava a frase que ele repetirá quando você soltar o botão. Nos EUA, a propaganda diz: Ele é o namorado perfeito para todas as ocasiões. Por quê? Porque ele diz tudo o que você quer que ele diga.
De fato, apresentei o boneco a uma menina de 12 anos, que aprovou: os garotos não têm muito para dizer, melhor a gente escolher o que eles vão falar. Será que ela tem razão? Eis o caso que fez que, no fim de semana passado, eu me interessasse por Ken.
Um casal de conhecidos me ligou dos EUA, preocupado. Eles ofereceram o novo Ken à filha de oito anos, e logo constataram que o irmão (quatro anos mais velho) brincava com ela feliz (fato raro). Ótimo, eles pensaram -até perceberem que o jogo funcionava assim: o rapaz se enfiava no closet, gravava uma fala de Ken, saía e soltava o botão (e o verbo) para Barbie e a irmã ouvirem. Das frases que os pais escutaram, a mais simpática era: "Vou te encher de porradas, sua vaca".
Aparentemente, a menina achava graça, mas os pais não gostaram e mandaram o rapaz escrever cem vezes
"Devo respeitar minha irmã e todas as meninas". Como se não bastasse, logo naquele dia, os pais verificaram o histórico do uso da internet pelo filho e descobriram que ele tinha descarregado três vídeos mórbidos, em que uma garota, presumivelmente australiana, tortura uma boneca Barbie -quem tiver estômago, confira: migre.me/ 3PE9X. O rapaz confessou gostar de suplícios aplicados a bonecos e bonecas.
Recomendei um psicólogo e sugeri que o rapaz mostrasse os vídeos a seu terapeuta (se o colega fizer seu trabalho como manda o figurino, a garota australiana receberia um dia a visita preventiva de um serviço social de seu país).
Agora, patologias à parte, por que será que maus-tratos e torturas aplicados em bonecos e bonecas são estranhamente populares?
Barbie é um modelo impraticável para as meninas e um sonho impossível para os meninos. Mudando os gêneros, o mesmo vale para Ken (que também é vítima de suplícios pela net afora). Barbie e Ken, em suma, são ideais inatingíveis, e essa seria uma boa razão para odiá-los: eles estariam sendo supliciados por um bando de frustrados que não conseguem ser como eles ou que não encontram parceiros como eles.
Concordo em termos: bonecas e bonecos não servem apenas para propor ideais deprimentes de tanto que eles estão fora do alcance da espécie humana, eles servem para tornar esses ideais acessíveis. Como assim? Simples: é graças aos bonecos que cada criança pode mutilar, despedaçar e queimar os ídolos que lhe são propostos.
Ao longo da infância, tive bonecos e soldadinhos lindos; mais de uma vez decidi e jurei que eu os conservaria intatos. Mas nunca consegui. Misteriosamente, minhas mãos bem intencionadas sempre acabavam os ultrajando brutalmente. Por quê? Suspeito que os bonecos nos sirvam para nos livrar do estereótipo de nossa própria infância feliz (a infância que todos os adultos parecem desejar por nós): não sou nem serei perfeito como um boneco, até porque, de qualquer forma, olhe só, Barbie está queimando na cruz e Ken está passando por apuros parecidos. Que alívio!
De 12 a 28 de fevereiro, no shopping Pátio Higienópolis, em São Paulo, Ken será homenageado na exposição "Barbie & Ken - O Casal Perfeito". Antes de passear por lá, só para se lembrar de que "perfeito" é um jeito de falar, procure, na internet, as obras dos anos 90 (David Levinthal, Carol McCullen), em que Barbie era ultrajada e deturpada, como talvez seja normal e bom que aconteça com bonecas e bonecos.
É como a matéria da Veja sobre o casal "feliz" e politicamente correto da atualidade (Angélica/Huck)... uma ode aos babacas.
ResponderExcluirPrezado Contardo, revi agora sua palestra no Café Filosófico sobre A Crise do Macho. Estou escrevendo sobre a relação entre demandas externas (no caso da correspondência aos ideais sociais) e internas (ou auto-idealizações, isso sem tocar na questão das expectativas maternas) e o consumo disparado de ansiolíticos no Brasil. Vendo sua palestra, pensei no seguinte: você vê alguma relação entre essa 'amputação química' da dor (ansiedade, angústia etc) e a falta de espaço para a expressão de uma dimensão heróica do homem contemporâneo (já que, seguindo seu reaciocínio, o homem hoje não vai para a Guerra, não vive aventureiramente regado a sexo e drogas e é obrigado a conciliar seus sonhos heróicos e grandiosos com a vida concreta)? Adoraria ter uma reflexão sua sobre o assunto. É para a revista ALFA, da Abril. Muito obrigada. Forte abraço, Kika Salvi. kikasalvi@hotmail.com
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