Se o Brasil quiser abrigar as "vítimas" do Judiciário italiano, melhor que comece com Berlusconi
A Itália existe há um século e meio. Em Veneza, monumentos temporários propõem a inscrição: "A nossa história juntos cumpre 150 anos". Gostei: uma nação não é uma realidade étnica nem geográfica, mas a sensação de uma história comum, ou seja, de que compartilhamos um patrimônio de lembranças e de esperanças.
Em campo Manin, alguém pichou o monumento: "Manin era veneziano, não italiano". É curioso, Daniele Manin só podia ser veneziano: morto em 1857, ele nem viu a Itália existir. Mas o fato é que, nos últimos 15 anos, vingam bairrismos separatistas que não se conciliam bem com as festividades.
Enfim, quis tomar a temperatura do sentimento nacional italiano no aniversário dos 150 anos. Fui assistir a "Nabucco", de Verdi, na arena de Verona ("Nabucco", aliás, está em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro nesta semana).
"Nabucco", de 1842, estabeleceu a fama e a fortuna de Verdi. A ópera é um drama da paternidade (no estilo "Rei Lear", um pai não entende uma filha e é traído pela outra) e um drama religioso (o deus dos judeus triunfa sobre o ídolo pagão dos assírios), mas, antes disso, é o drama do exílio de um povo arrancado à sua terra (os hebreus cativos na Babilônia). Esse drama é resumido pelo coro do terceiro ato, "Vá, Pensiero", cujo tema está presente desde a abertura e que foi recebido, na época, como o canto da nostalgia de uma pátria que os italianos ainda não tinham:
"Vai, pensamento, sobre tuas asas douradas, / Vai e te pousa sobre os clivos e os montes, / Onde mornas e doces exalam seu perfume as auras do sol nativo. / Saúda as beiras do Jordão / E as torres destruídas de Sião; / Oh, minha pátria, tão linda e tão perdida, / Oh, lembrança tão querida e tão fatal...".
Os 20 mil espectadores da arena de Verona escutaram num silêncio comovido, pediram e obtiveram o bis (tradicional no caso de "Vá, Pensiero"). Expressão de um nacionalismo canalha? Acho que não. Nos sentimentos que o coro evoca hoje (e talvez já na intenção de Verdi), há muito mais do que patriotismo: o coro é um hino para todos os que são arrancados à sua morada pela guerra, pela fome, pela violência dos outros e da natureza ou mesmo por seus próprios sonhos de "vida melhor". Talvez os italianos o ouçam como um hino seu porque a modernidade os dispersou mundo afora e faz que, hoje, eles assistam à chegada à Itália de desterrados muito parecidos com eles mesmos poucas décadas atrás.
Como fica, nesse clima, o sentimento italiano em relação ao Brasil que concedeu asilo a Cesare Battisti? Nenhuma raiva nacionalista --apenas consternação com os argumentos brasileiros e a ignorância que eles manifestam da Itália das últimas décadas. Para um italiano, a ideia de que alguém queira proteger Battisti da "Justiça de Berlusconi" é para além de cômica, pois juízes, promotores e policiais, com custos altíssimos (inclusive de vida), são 1) os que garantiram a sobrevivência da democracia italiana nos anos do terrorismo de esquerda e direita, quando Battisti operava, e 2) os que hoje defendem a legalidade democrática contra o "império" berlusconiano.
Esse estado de espírito é representado por uma coluna de Michele Serra, no "L'Espresso" da última quinta (21). Num processo que durou 20 anos, a Justiça condenou a Fininvest, de Berlusconi, a pagar 560 milhões de euros (R$ 1,4 bilhão) de indenização por ter corrompido um juiz que arbitrou a distribuição do controle acionário do grupo editorial Mondadori; agora, Serra imagina como Berlusconi poderia evitar pagar:
"Sendo impraticável o exílio para a Líbia (o risco de ser bombardeado pela Aeronáutica italiana é alto demais), Berlusconi poderia pedir asilo político ao Brasil, explicando a Lula que ele é vítima de uma infame perseguição política, assim como Cesare Battisti, e que ele tem muitos amigos entre os intelectuais franceses, entre eles Sylvie Vartan. Para ser mais crível, Berlusconi está treinando para ver se ele consegue escrever romances policiais, mas as primeiras tentativas são decepcionantes: entende-se já, desde o primeiro parágrafo, que o culpado é sempre o juiz comunista".
Concordo, se realmente o Brasil quiser abrigar as "vítimas" do Judiciário italiano, melhor que comece (ou continue) com Berlusconi.
28 julho 2011
21 julho 2011
Romance, poesia e Veneza
Só conhecemos uma cidade na qual já fomos muito alegres e muito tristes, apaixonados e solitários
Vim passar 12 dias tranquilos em Veneza. Na minha parte de Veneza, os turistas são poucos, mesmo em julho: é vida de bairro, de gente que se conhece há anos, com crianças e cachorros soltos na rua. No fim do dia, é barulho de passos e vozes que se dão a boa noite e o até amanhã.
Visitarei a Bienal de Arte, agora que ela está às moscas, no silêncio. Na arena de Verona, assistirei a "Nabucco", de Giuseppe Verdi, cujo coro do terceiro ato ("Vá, pensiero") é o substituto do hino nacional italiano, e verei se a arena inteira irá cantá-lo ou não. Minha intuição é que, apesar da crise, haja a volta de um orgulho nacional há tempos perdido na Itália (pesquisas recentes dizem isso, aliás).
Mas esse tema ficará para a próxima quinta, assim como minha emoção ao assistir, anteontem, à única apresentação de meu cantor preferido no meu lugar preferido, James Taylor na praça San Marco. Hoje quero falar de outra coisa.
Quando chego a Veneza de avião, a não ser que esteja numa crise financeira danada, encaro o preço de um táxi, embora o transporte público da AliLaguna seja muito mais em conta. Verão ou inverno, quero ficar em pé, com a cara no vento e no cheiro da laguna, olhando para a cidade se aproximando. A cada vez é como se não acreditasse na minha sorte: ela está ainda ali.
Pouco tempo atrás, conversei com meu amigo Helio Goldzstein sobre a ideia de uma série de documentários televisivos em que amantes de cidades ilustres revelariam esquinas, momentos e charmes delas que nem sempre aparecem nos guias. Eu faria isso com prazer para algumas cidades que estão no meu coração e nas quais morei o suficiente para viver um leque amplo de sentimentos (só conhecemos uma cidade na qual tenhamos sido muito alegres e muito tristes, apaixonados e solitários). Enfim, quando estávamos pensando em organizar essa série, recuei. Por quê?
Eu não tenho ciúme. Se alguém que eu amo me deixa por outro, eu me desespero como todo o mundo. Mas se alguém que eu amo, sei lá, está viajando, continua me amando, mas tem a oportunidade de se divertir com outro parceiro por um par de dias ou de semanas, eu fico feliz por ela. Loucura, acham alguns. Mas, que eles se tranquilizem, há uma exceção: tenho ciúme de minhas cidades, da topografia sentimental e secreta que eu sobrepus ao seu mapa.
Talvez um dia eu realize mesmo a tal série de documentários, mas me custará um esforço sério. Sabe aquele "sotoportego" de Castello em que há, bem em baixo do arco, um pequeno coração que ninguém nota? Não sabe? Melhor assim, pois, para mim, aquilo é uma tatuagem num lugar escondido do corpo da amada: eu não quero que ninguém veja. Só eu. Sou ciumento das cidades que amo e de suas pedras. E, claro, considero todos os turistas com desconfiança e uma ponta de desprezo.
Viajei a Veneza no dia 16, sábado. Desde o dia anterior, estava lendo "Um Dia", de David Nicholls (Intrínseca). É a história de Emma e Dexter, cujo casal poderia ter sido, mas não foi. Para ambos, essa relação que não se deu foi a mais importante de sua vida. Enfim, o autor narra o que aconteceu com eles de 15 de julho 1988 a 15 de julho de 2007, um capítulo ou dois para o dia 15 de julho de cada ano. Eu queria começar e terminar a leitura em 15 de julho de 2011. Não deu; por causa da viagem, acabei no dia 17.
É um livro tocante; aborda o desencontro amoroso de duas pessoas que se cruzaram, apaixonaram-se (talvez) e não se deram a menor chance, ambos doentes de insegurança e por isso mesmo adoráveis: ela, perdida em um cinismo que a torna impiedosa com o mundo e ele, inconsistente à força de mendigar aprovação e fama.
De Emma, a protagonista, é dito: "Ela não acreditava mais que escrever um poema sobre uma situação pudesse melhorá-la". Pois bem, discordo de Emma. Ainda em agosto viajarei pelo Brasil, para mais lançamentos de meu último romance. A situação é fortemente melhorada por um poema de Billy Collins, em "Horoscopes for the Dead", (horóscopos para os mortos, título que é um maravilhoso haicai), editado pela Random House. O poema se chama "Feedback" e diz: "A mulher que escreveu de Phoenix/ depois de meu lançamento lá/ para me dizer que todos ainda estavam falando do evento/ acaba de me escrever novamente/ para me dizer que ninguém mais fala nisso".
Vim passar 12 dias tranquilos em Veneza. Na minha parte de Veneza, os turistas são poucos, mesmo em julho: é vida de bairro, de gente que se conhece há anos, com crianças e cachorros soltos na rua. No fim do dia, é barulho de passos e vozes que se dão a boa noite e o até amanhã.
Visitarei a Bienal de Arte, agora que ela está às moscas, no silêncio. Na arena de Verona, assistirei a "Nabucco", de Giuseppe Verdi, cujo coro do terceiro ato ("Vá, pensiero") é o substituto do hino nacional italiano, e verei se a arena inteira irá cantá-lo ou não. Minha intuição é que, apesar da crise, haja a volta de um orgulho nacional há tempos perdido na Itália (pesquisas recentes dizem isso, aliás).
Mas esse tema ficará para a próxima quinta, assim como minha emoção ao assistir, anteontem, à única apresentação de meu cantor preferido no meu lugar preferido, James Taylor na praça San Marco. Hoje quero falar de outra coisa.
Quando chego a Veneza de avião, a não ser que esteja numa crise financeira danada, encaro o preço de um táxi, embora o transporte público da AliLaguna seja muito mais em conta. Verão ou inverno, quero ficar em pé, com a cara no vento e no cheiro da laguna, olhando para a cidade se aproximando. A cada vez é como se não acreditasse na minha sorte: ela está ainda ali.
Pouco tempo atrás, conversei com meu amigo Helio Goldzstein sobre a ideia de uma série de documentários televisivos em que amantes de cidades ilustres revelariam esquinas, momentos e charmes delas que nem sempre aparecem nos guias. Eu faria isso com prazer para algumas cidades que estão no meu coração e nas quais morei o suficiente para viver um leque amplo de sentimentos (só conhecemos uma cidade na qual tenhamos sido muito alegres e muito tristes, apaixonados e solitários). Enfim, quando estávamos pensando em organizar essa série, recuei. Por quê?
Eu não tenho ciúme. Se alguém que eu amo me deixa por outro, eu me desespero como todo o mundo. Mas se alguém que eu amo, sei lá, está viajando, continua me amando, mas tem a oportunidade de se divertir com outro parceiro por um par de dias ou de semanas, eu fico feliz por ela. Loucura, acham alguns. Mas, que eles se tranquilizem, há uma exceção: tenho ciúme de minhas cidades, da topografia sentimental e secreta que eu sobrepus ao seu mapa.
Talvez um dia eu realize mesmo a tal série de documentários, mas me custará um esforço sério. Sabe aquele "sotoportego" de Castello em que há, bem em baixo do arco, um pequeno coração que ninguém nota? Não sabe? Melhor assim, pois, para mim, aquilo é uma tatuagem num lugar escondido do corpo da amada: eu não quero que ninguém veja. Só eu. Sou ciumento das cidades que amo e de suas pedras. E, claro, considero todos os turistas com desconfiança e uma ponta de desprezo.
Viajei a Veneza no dia 16, sábado. Desde o dia anterior, estava lendo "Um Dia", de David Nicholls (Intrínseca). É a história de Emma e Dexter, cujo casal poderia ter sido, mas não foi. Para ambos, essa relação que não se deu foi a mais importante de sua vida. Enfim, o autor narra o que aconteceu com eles de 15 de julho 1988 a 15 de julho de 2007, um capítulo ou dois para o dia 15 de julho de cada ano. Eu queria começar e terminar a leitura em 15 de julho de 2011. Não deu; por causa da viagem, acabei no dia 17.
É um livro tocante; aborda o desencontro amoroso de duas pessoas que se cruzaram, apaixonaram-se (talvez) e não se deram a menor chance, ambos doentes de insegurança e por isso mesmo adoráveis: ela, perdida em um cinismo que a torna impiedosa com o mundo e ele, inconsistente à força de mendigar aprovação e fama.
De Emma, a protagonista, é dito: "Ela não acreditava mais que escrever um poema sobre uma situação pudesse melhorá-la". Pois bem, discordo de Emma. Ainda em agosto viajarei pelo Brasil, para mais lançamentos de meu último romance. A situação é fortemente melhorada por um poema de Billy Collins, em "Horoscopes for the Dead", (horóscopos para os mortos, título que é um maravilhoso haicai), editado pela Random House. O poema se chama "Feedback" e diz: "A mulher que escreveu de Phoenix/ depois de meu lançamento lá/ para me dizer que todos ainda estavam falando do evento/ acaba de me escrever novamente/ para me dizer que ninguém mais fala nisso".
14 julho 2011
Volta da Flip
Qualquer escolha significa desistir de desejos nossos aos quais preferimos outros, também nossos
NA COLUNA da semana passada, escrevi sobre a facilidade com a qual desistimos de nossos desejos e, com isso, às vezes, passamos décadas pensando em outras vidas, que poderiam ter sido as nossas se tivéssemos tido a ousadia de correr atrás do que queremos.
A coluna terminava com uma exortação à coragem de agir e com uma explicação possível: desistimos para evitar a dor de fracassar. Pensar que nem tentamos conseguir o que tanto desejávamos seria menos doloroso do que constatar que tentamos e não conseguimos. A desistência seria mais suportável do que o eventual malogro.
Numerosos leitores me escreveram, evocando (e lamentando) alguma desistência passada. O que não é surpreendente: somos quase todos assombrados pela sensação ou pela lembrança de ter desistido (na escolha de uma profissão, de um amor ou de um casal).
A razão é aparentemente simples. Faz dois séculos que nossa origem não determina nosso destino. Não seremos marceneiros só porque esse foi o ofício de nosso pai e avô. Não nos casaremos por tradição nem segundo a escolha das famílias. Escolheremos sempre por gosto ou por amor. Ou seja, temos a incrível pretensão de viver segundo nosso desejo.
E aqui a coisa se complica, porque, neste mundo sem castas fechadas e com poucas fronteiras, as possibilidades são muitas e, talvez por isso mesmo, os desejos que nos animam são variados e, frequentemente, estão em conflito entre si.
Ou seja, escolhemos entre caminhos diferentes, oferecidos pelas circunstâncias da vida, e também entre desejos que são todos nossos. Qualquer escolha implica perdas (dos caminhos que deixamos de percorrer) e desistências (de desejos nossos aos quais preferimos outros, também nossos).
Um leitor, Augusto Bezerril, pergunta se desistir de um sonho não é apenas o efeito de um conflito. Ele tem razão: em muitos casos, desistimos de um sonho para nos dedicar a outro, esperando resolver assim um conflito interno.
Outra leitora, Ana Chan, pergunta se "desistir dos desejos significa viver em frustração". Talvez haja algo disso na nossa insatisfação: a variedade de nossos desejos torna a satisfação difícil, se não impossível.
Mas o fato de ter que escolher entre desejos alimenta outra forma de insatisfação: não tanto uma frustração quanto uma espécie de nostalgia do que não foi -um afeto moderno, como é moderna a pluralidade de nossos sonhos.
Alguns dizem que é por isso que a ficção se torna tão importante na modernidade, para que possamos imaginar (e viver um pouco) as vidas das quais desistimos, os caminhos pelos quais não enveredamos.
Agora, a escolha entre desejos diferentes não é a desistência mais custosa: há indivíduos que não desistem de tal ou tal desejo, eles desistem de desejar. Aqui o afeto dominante não é mais a nostalgia, mas uma culpa da qual a gente parece nunca se curar: a culpa de ter traído a nós mesmos, de ter desprezado nosso sonho mais querido. Essa sensação é especialmente forte quando alguém considera que silenciou seu sonho de infância.
Mais uma leitora, Janaina Nascimento, pergunta: "Você nunca desprezou seu próprio desejo?" (e acrescenta: "Acho que você não vai responder").
Pois bem, desisti de vários desejos a cada encruzilhada, e, às vezes, com a impressão de estar traindo meu maior sonho. Por exemplo -pensava eu, voltando da Flip-, quando sou levado a falar de como me tornei romancista, acabo contando que escrever histórias era tudo o que queria desde os nove anos de idade, mas desisti aos 20, para me conformar à expectativa familiar de que eu fosse para a faculdade. Essa história é verídica e parece ser mesmo uma história de renúncia ou de desistência.
Mas será que é isso mesmo? Será que a gente desiste e renuncia? É possível. Mas a renúncia e a desistência são, antes de mais nada, jeitos melodramáticos de contar nossa história de modo a mantermos a ilusão confortável de que temos uma essência e somos definidos por desejos fundamentais -que (obviamente) não deveríamos trair.
De fato, a vida comporta poucas traições radicais de nós mesmos e de nossos desejos, e muitas soluções negociadas, espúrias, pelas quais a gente busca conciliar desejos diferentes com acasos, oportunidades e outros acidentes, reinventando-se a cada dia.
NA COLUNA da semana passada, escrevi sobre a facilidade com a qual desistimos de nossos desejos e, com isso, às vezes, passamos décadas pensando em outras vidas, que poderiam ter sido as nossas se tivéssemos tido a ousadia de correr atrás do que queremos.
A coluna terminava com uma exortação à coragem de agir e com uma explicação possível: desistimos para evitar a dor de fracassar. Pensar que nem tentamos conseguir o que tanto desejávamos seria menos doloroso do que constatar que tentamos e não conseguimos. A desistência seria mais suportável do que o eventual malogro.
Numerosos leitores me escreveram, evocando (e lamentando) alguma desistência passada. O que não é surpreendente: somos quase todos assombrados pela sensação ou pela lembrança de ter desistido (na escolha de uma profissão, de um amor ou de um casal).
A razão é aparentemente simples. Faz dois séculos que nossa origem não determina nosso destino. Não seremos marceneiros só porque esse foi o ofício de nosso pai e avô. Não nos casaremos por tradição nem segundo a escolha das famílias. Escolheremos sempre por gosto ou por amor. Ou seja, temos a incrível pretensão de viver segundo nosso desejo.
E aqui a coisa se complica, porque, neste mundo sem castas fechadas e com poucas fronteiras, as possibilidades são muitas e, talvez por isso mesmo, os desejos que nos animam são variados e, frequentemente, estão em conflito entre si.
Ou seja, escolhemos entre caminhos diferentes, oferecidos pelas circunstâncias da vida, e também entre desejos que são todos nossos. Qualquer escolha implica perdas (dos caminhos que deixamos de percorrer) e desistências (de desejos nossos aos quais preferimos outros, também nossos).
Um leitor, Augusto Bezerril, pergunta se desistir de um sonho não é apenas o efeito de um conflito. Ele tem razão: em muitos casos, desistimos de um sonho para nos dedicar a outro, esperando resolver assim um conflito interno.
Outra leitora, Ana Chan, pergunta se "desistir dos desejos significa viver em frustração". Talvez haja algo disso na nossa insatisfação: a variedade de nossos desejos torna a satisfação difícil, se não impossível.
Mas o fato de ter que escolher entre desejos alimenta outra forma de insatisfação: não tanto uma frustração quanto uma espécie de nostalgia do que não foi -um afeto moderno, como é moderna a pluralidade de nossos sonhos.
Alguns dizem que é por isso que a ficção se torna tão importante na modernidade, para que possamos imaginar (e viver um pouco) as vidas das quais desistimos, os caminhos pelos quais não enveredamos.
Agora, a escolha entre desejos diferentes não é a desistência mais custosa: há indivíduos que não desistem de tal ou tal desejo, eles desistem de desejar. Aqui o afeto dominante não é mais a nostalgia, mas uma culpa da qual a gente parece nunca se curar: a culpa de ter traído a nós mesmos, de ter desprezado nosso sonho mais querido. Essa sensação é especialmente forte quando alguém considera que silenciou seu sonho de infância.
Mais uma leitora, Janaina Nascimento, pergunta: "Você nunca desprezou seu próprio desejo?" (e acrescenta: "Acho que você não vai responder").
Pois bem, desisti de vários desejos a cada encruzilhada, e, às vezes, com a impressão de estar traindo meu maior sonho. Por exemplo -pensava eu, voltando da Flip-, quando sou levado a falar de como me tornei romancista, acabo contando que escrever histórias era tudo o que queria desde os nove anos de idade, mas desisti aos 20, para me conformar à expectativa familiar de que eu fosse para a faculdade. Essa história é verídica e parece ser mesmo uma história de renúncia ou de desistência.
Mas será que é isso mesmo? Será que a gente desiste e renuncia? É possível. Mas a renúncia e a desistência são, antes de mais nada, jeitos melodramáticos de contar nossa história de modo a mantermos a ilusão confortável de que temos uma essência e somos definidos por desejos fundamentais -que (obviamente) não deveríamos trair.
De fato, a vida comporta poucas traições radicais de nós mesmos e de nossos desejos, e muitas soluções negociadas, espúrias, pelas quais a gente busca conciliar desejos diferentes com acasos, oportunidades e outros acidentes, reinventando-se a cada dia.
07 julho 2011
É fácil desistir de nossos sonhos
Dedicamos mais energia à tentativa de silenciar os nossos sonhos do que à tentativa de realizá-los |
GIL PENDER, o protagonista do último filme de Woody Allen, "Meia-Noite em Paris", quer deixar de escrever roteiros de sucesso (que ele mesmo acha medíocres) para se dedicar a coisas "mais sérias" e menos lucrativas: um romance, por exemplo. Ele acumulou dinheiro suficiente para tentar essa aventura por um tempo, em Paris, como um escritor americano dos anos 1920.
Infelizmente, Pender está prestes a se casar com uma noiva que aprecia muito seu sucesso atual, mas não tem gosto algum pela incerteza (financeira) de seu sonho. Tudo indica que ele se dobrará às expectativas da noiva, dos futuros sogros e do mundo, renunciando a seu desejo. Talvez seja por causa dessa renúncia, aliás, que noiva e sogros o desprezam (todo o mundo acaba desprezando o desejo de quem despreza seu próprio desejo).
Mas eis que, na noite parisiense, alguns fantasmas do passado levam Pender para a época na qual poderia viver uma vida diferente e mais intensa -a época na qual seria capaz de fazer apostas arriscadas.
A idade de ouro de Pender é a Paris de Hemingway, Fitzgerald, Cole Porter, Picasso etc. Como disse Gertrude Stein (outra protagonista do sonho do herói), eles são a geração perdida, entre uma guerra terrível e outra pior por vir (isso ela não sabia, mas talvez pressentisse). Por que eles fariam a admiração de Pender e a nossa? Hemingway responde quando explica a Pender que, para amar e escrever, é preciso não ter medo da morte. Claro, não ter medo da morte talvez seja pedir muito, mas Pender poderia mesmo se beneficiar com um pouco mais de coragem; se conseguisse decidir sua vida sem medo da noiva e dos sogros, seria um progresso.
Concordo com o que escreveu Marcelo Coelho, em artigo neste mesmo espaço na edição de 22 de junho: uma moral do filme é que "temos só uma vida para viver -a nossa", ou seja, tudo bem sonhar com a idade de ouro, à condição de acordar um dia.
Agora, o que emperra a vida de Pender não é seu sonho nostálgico, é o presente. A nostalgia, aliás, é seu recurso para não se esquecer completamente de seus próprios sonhos. É como se, para preservar seu desejo, ele o situasse numa outra época. Mas preservá-lo de quem?
Antes de mais nada, um conselho. Acontece, às vezes, que nosso sucesso não tenha nada a ver com nossos sonhos -por exemplo, você queria ser promotor de Justiça, mas fez algum dinheiro com a imobiliária de família e aí ficou, renunciando a seu sonho.
Nesses casos, uma precaução: case-se com alguém que ame seu sonho frustrado e não só seu sucesso; sem isso, inelutavelmente, chegará o dia em que você acusará seu casal de ter sido a causa de sua renúncia. Em outras palavras, é possível e, às vezes, necessário renunciar a nossos sonhos, mas é preciso escolher como parceiro alguém que goste desses sonhos e dos jeitos um pouco malucos que usamos para acalentá-los (no caso de Pender, passeios por Paris à meia-noite e na chuva).
Voltemos agora à pergunta: contra quem Pender precisou preservar seu desejo, mandando-o para outra época? Contra a noiva que desconsiderava seus sonhos? Aqui vem outra moral do filme.
Pender não é nenhum caso raro: todos nós, em média, dedicamos mais energia à tentativa de silenciar nossos sonhos do que à tentativa de realizá-los. Muitos dizem que desistiram de sonhos dos quais os pais não gostavam por medo de perder o amor deles. Mas por que Pender recearia perder o amor da noiva, que ele não ama, e dos sogros, que ele ama ainda menos?
O fato é que somos complacentes com as expectativas dos outros (que amamos ou não) à condição que elas nos convidem a desistir de nosso desejo. É isso mesmo, a frase que precede não saiu errada: adoramos nos conformar (ou nos resignar) às expectativas que mais nos afastam de nossos sonhos. Aparentemente, preferimos ser o romancista potencial que foi impedido de mostrar seu talento a ser o romancista que tentou e revelou ao mundo que não tinha talento. Desistindo de nossos sonhos, evitamos fracassar nos projetos que mais nos importam.
Em suma, da próxima vez que você se queixar de que seu casal afasta você de seus sonhos, lembre-se: foi você quem o escolheu.
E mais um conselho: se você encontrar alguém disposto a caminhar na chuva do seu lado, não fuja; molhe-se.
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