Só conhecemos uma cidade na qual já fomos muito alegres e muito tristes, apaixonados e solitários
Vim passar 12 dias tranquilos em Veneza. Na minha parte de Veneza, os turistas são poucos, mesmo em julho: é vida de bairro, de gente que se conhece há anos, com crianças e cachorros soltos na rua. No fim do dia, é barulho de passos e vozes que se dão a boa noite e o até amanhã.
Visitarei a Bienal de Arte, agora que ela está às moscas, no silêncio. Na arena de Verona, assistirei a "Nabucco", de Giuseppe Verdi, cujo coro do terceiro ato ("Vá, pensiero") é o substituto do hino nacional italiano, e verei se a arena inteira irá cantá-lo ou não. Minha intuição é que, apesar da crise, haja a volta de um orgulho nacional há tempos perdido na Itália (pesquisas recentes dizem isso, aliás).
Mas esse tema ficará para a próxima quinta, assim como minha emoção ao assistir, anteontem, à única apresentação de meu cantor preferido no meu lugar preferido, James Taylor na praça San Marco. Hoje quero falar de outra coisa.
Quando chego a Veneza de avião, a não ser que esteja numa crise financeira danada, encaro o preço de um táxi, embora o transporte público da AliLaguna seja muito mais em conta. Verão ou inverno, quero ficar em pé, com a cara no vento e no cheiro da laguna, olhando para a cidade se aproximando. A cada vez é como se não acreditasse na minha sorte: ela está ainda ali.
Pouco tempo atrás, conversei com meu amigo Helio Goldzstein sobre a ideia de uma série de documentários televisivos em que amantes de cidades ilustres revelariam esquinas, momentos e charmes delas que nem sempre aparecem nos guias. Eu faria isso com prazer para algumas cidades que estão no meu coração e nas quais morei o suficiente para viver um leque amplo de sentimentos (só conhecemos uma cidade na qual tenhamos sido muito alegres e muito tristes, apaixonados e solitários). Enfim, quando estávamos pensando em organizar essa série, recuei. Por quê?
Eu não tenho ciúme. Se alguém que eu amo me deixa por outro, eu me desespero como todo o mundo. Mas se alguém que eu amo, sei lá, está viajando, continua me amando, mas tem a oportunidade de se divertir com outro parceiro por um par de dias ou de semanas, eu fico feliz por ela. Loucura, acham alguns. Mas, que eles se tranquilizem, há uma exceção: tenho ciúme de minhas cidades, da topografia sentimental e secreta que eu sobrepus ao seu mapa.
Talvez um dia eu realize mesmo a tal série de documentários, mas me custará um esforço sério. Sabe aquele "sotoportego" de Castello em que há, bem em baixo do arco, um pequeno coração que ninguém nota? Não sabe? Melhor assim, pois, para mim, aquilo é uma tatuagem num lugar escondido do corpo da amada: eu não quero que ninguém veja. Só eu. Sou ciumento das cidades que amo e de suas pedras. E, claro, considero todos os turistas com desconfiança e uma ponta de desprezo.
Viajei a Veneza no dia 16, sábado. Desde o dia anterior, estava lendo "Um Dia", de David Nicholls (Intrínseca). É a história de Emma e Dexter, cujo casal poderia ter sido, mas não foi. Para ambos, essa relação que não se deu foi a mais importante de sua vida. Enfim, o autor narra o que aconteceu com eles de 15 de julho 1988 a 15 de julho de 2007, um capítulo ou dois para o dia 15 de julho de cada ano. Eu queria começar e terminar a leitura em 15 de julho de 2011. Não deu; por causa da viagem, acabei no dia 17.
É um livro tocante; aborda o desencontro amoroso de duas pessoas que se cruzaram, apaixonaram-se (talvez) e não se deram a menor chance, ambos doentes de insegurança e por isso mesmo adoráveis: ela, perdida em um cinismo que a torna impiedosa com o mundo e ele, inconsistente à força de mendigar aprovação e fama.
De Emma, a protagonista, é dito: "Ela não acreditava mais que escrever um poema sobre uma situação pudesse melhorá-la". Pois bem, discordo de Emma. Ainda em agosto viajarei pelo Brasil, para mais lançamentos de meu último romance. A situação é fortemente melhorada por um poema de Billy Collins, em "Horoscopes for the Dead", (horóscopos para os mortos, título que é um maravilhoso haicai), editado pela Random House. O poema se chama "Feedback" e diz: "A mulher que escreveu de Phoenix/ depois de meu lançamento lá/ para me dizer que todos ainda estavam falando do evento/ acaba de me escrever novamente/ para me dizer que ninguém mais fala nisso".
Nenhum comentário:
Postar um comentário