03 novembro 2011

Visita a Berlin

Numa sociedade livre, cada um é mais preocupado com a liberdade do vizinho do que com a sua própria


1) A Stasi (Staatssicherheit, polícia de Segurança de Estado da Alemanha Oriental) era terrível, absurda e inventiva (cf. o maravilhoso filme "A Vida dos Outros", de F. H. Von Donnersmarck). Em Berlim, professores de escola média eram encorajados a pedir que os alunos desenhassem sua família ao redor da mesa do jantar.

Esse dever de casa não servia para afirmar o valor da coesão vespertina do lar. De fato, pedia-se que o televisor ligado fizesse parte da cena representada: por mais que o desenho das crianças fosse primário, ele revelaria qual era o telejornal ao qual os pais assistiam.

Podia ser "Aktuelle Kamera" (câmera atual), instrumento de propaganda do regime comunista da Alemanha Oriental, ou "Tagesschau", (visão do dia), produzido para um consórcio de televisões públicas da Alemanha Ocidental. Ambos os programas eram de transmissão aberta, por antena, e não havia como saber quem assistia ao quê. Achou-se o jeito: transformar as criancinhas em espiões de seus próprios pais.

2) A melhor salada de batatas de Berlim talvez se encontre na cantina frequentada por técnicos e atores do Berliner Ensemble, o teatro onde Bertolt Brecht se instalou depois da Segunda Guerra.

A própria costeleta empanada e frita, a Wiener Schnitzel, não é nada má (uma Wiener Schnitzel é diferente de uma milanesa: a milanesa é sempre com osso e é fritada na manteiga, nunca na banha).

À força de frequentar a cantina do Berliner Ensemble, dei-me conta de que o teatro surge a poucas centenas de metros da estação de Friedrichstrasse -basta atravessar o rio Spree.

Na época do Muro, a estação de Friedrichstrasse era a única pela qual era possível transitar de trem entre Berlim Ocidental e Berlim Oriental -por lá, solicitando e obtendo (coisas distintas) as necessárias autorizações, comprando moeda oriental a um câmbio extorsivo, pagando o visto etc., alguém do Oeste podia entrar em Berlim Leste, de trem, e permanecer por um período muito limitado.

O edifício onde esse trânsito acontecia, e, por extensão, a estação de Friedrichstrasse inteira, era chamado de Tränenpalast, palácio das lágrimas, por causa do choro de parentes, amigos e amantes que lá se separavam, por causa da angustiante espera (horas, às vezes) de quem parecesse não ter todos os seus papéis em regra ou tivesse permanecido mais do que o permitido e também pelo choro dos cidadãos de Berlim Leste que, despedindo-se de seus queridos, lembravam-se de que eles viviam numa prisão.

Isso, Brecht, na época em que dirigia o Berliner Ensemble, não tinha como não ver. Certo, não se sabe o que ele realmente pensou sobre a revolta antistalinista de junho 1953 na Alemanha Oriental, embora sua posição oficial tenha sido a que o regime esperava. De qualquer modo, Brecht entrou no novo edifício do Berliner Ensemble, perto da estação de Friedrichstrasse, em 1954 e morreu dois anos mais tarde.

Mas a mulher dele, Helene Weigel, grande atriz, que dirigiu o Berliner Ensemble desde a morte do marido até a dela, em 1971, será que ela não via nada?

É fácil não ver nada. Também é fácil ver e se calar.

3) Berlim é uma cidade tocante pelo desejo manifesto de não tapar os olhos e de não esquecer. Fiquei, nestes dias, no apartamento de uma amiga querida, em Schöneberg, perto de Bayerischer Platz: pelas ruas, a cada poucos metros, há placas que lembram coisas que aconteceram, justamente, enquanto os vizinhos não viam, ou preferiam não ver.

15/4/37: "Formaturas proibidas para judeus"; 21/2/39: "Os judeus devem entregar joias e objetos de ouro, prata, platina e pérolas"; 4/7/40: "Os judeus só podem comprar alimentos em Berlim das 4 às 5 da tarde".

A existência dessas placas traduz um estado de espírito que faz de Berlim, hoje uma sociedade extraordinariamente livre, como só são livres as coletividades em que cada um é mais preocupado com a liberdade do vizinho do que com a sua própria.

E faz todo sentido: a liberdade do vizinho (sobretudo se ele for muito diferente de mim) é sempre a melhor garantia de minha própria liberdade.

Viveremos livres (mesmo) quando houver religiosos fundamentalistas desfilando para o direito de prostitutas trabalharem na esquina de sua igreja. Ou quando houver praticantes de SM ou de swing defendendo o direito de um templo abrir suas portas ao lado dos clubes nos quais eles se reúnem.

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