27 setembro 2012
Protestos muçulmanos
A facilidade com o qual me sinto ofendido revela que eu concordo, em parte, com a ofensa que recebi
O VÍDEO "A Inocência dos Muçulmanos", apesar de sua mediocridade, fez sucesso. Ninguém aguenta ver aquilo até o fim, mas o vídeo instigou a curiosidade dos internautas quando se soube que ele era a causa dos violentos protestos que se alastraram pelos países muçulmanos, nas últimas duas semanas.
Esquecendo os terroristas que se aproveitaram desses protestos para semear a morte, a visão dos desfiles e dos quebra-quebras foi instrutiva e desalentadora. Instrutiva por nos explicar, mais uma vez, a diferença cultural que separa o Ocidente do islã, e desalentadora porque a esperança de um entendimento recíproco parece pequena.
a) Os cristãos terão dificuldade em sentir empatia com os muçulmanos indignados pelo vídeo, pelas caricaturas dinamarquesas de seis anos atrás etc. Afinal, aqui, Jesus é uma marca de calças jeans e uma personagem de "South Park". No YouTube, encontrei um grupo francês, "Les Vampires", que, como capa de seu disco sobre a homossexualidade de Jesus, propõe o Cristo com uma mão pregada na cruz, enquanto, com a outra, ele se masturba.
Os cristãos se deleitaram com "O Código da Vinci", um best-seller, que explica que Jesus teve filhos com Maria Madalena e a igreja nos escondeu tudo isso até hoje. Qual empatia possível com os que condenaram à morte Salman Rushdie por ter escrito "Os Versos Satânicos", um grande livro, mais citado que lido, em que há sequências oníricas das quais eu nunca entendi por que seriam ofensivas para o islã? Nota: acaba de sair a autobiografia da clandestinidade de Rushdie, "Joseph Anton, Memórias" (Companhia das Letras).
b) Imaginemos, por um instante, que eu não me aguente e queira manifestar minha indignação com "Les Vampires". Uma das últimas coisas que eu faria seria atacar a embaixada da França.
Entendo que os protestos atuais passem a ser contra países cuja política seria mais favorável a Israel do que à Palestina. Mas o fato é que, neles, as massas muçulmanas reagem como se considerassem que um pensamento é a expressão e a responsabilidade do grupo ao qual seu autor pertence. No mínimo, o grupo (a nação) seria culpado porque não sabe disciplinar seus membros.
Ora, prefiro, de longe, aturar "Les Vampires" a exigir que os Estados se tornem guardiões do que pensam seus cidadãos.
Já houve épocas (não tão remotas) em que queimávamos e torturávamos pessoas que pensavam fora dos trilhos da igreja. Mesmo naquelas épocas, ninguém imaginava que os produtos das consciências individuais fossem responsabilidade do grupo ou da nação.
c) O comentário mais interessante que li nestes dias foi a citação, feita por Clóvis Rossi, de Yaron Friedman, no jornal israelense "Yediot Aharonot": "Na consciência árabe e muçulmana, Maomé e seus primeiros califas [chefes político-religiosos] do século 7º simbolizam a idade de ouro do islã e a gênese de um império árabe-muçulmano que chega ao século 12 na vanguarda do desenvolvimento cultural mundial".
"Toda ofensa feita ao profeta é cutucar a lembrança do estatuto de inferioridade no qual se encontra, desde o século 19, o mundo árabe-muçulmano em relação ao Ocidente."
É quase uma regra: qualquer suscetibilidade extrema é o sinal de uma fragilidade interna. Em outras palavras, a facilidade com o qual eu me sinto ofendido revela que eu mesmo devo concordar, ao menos em parte, com a ofensa que recebi.
Ou seja, a suscetibilidade muçulmana manifesta que deve existir, na alma muçulmana, um conflito entre o tradicionalismo religioso e uma aspiração à liberdade em suas manifestações modernas ocidentais.
d) Alguém perguntará: se estamos dispostos a aturar qualquer expressão individual, será que, para nós, nada é sagrado? Será que nenhuma opinião nos ofende a ponto de nos dar vontade, por exemplo, de manifestar?
Resposta. O que é sagrado para mim não é tal ou tal outra opinião -ainda menos a minha. O que é sagrado é o próprio direito de expressar uma opinião e de viver segundo ela manda.
Se uma mulher no Irã queima uma bandeira dos EUA ou da França, acho que é seu direito. Mas, se ela for apedrejada por ser adúltera, irei para a rua pedindo que a gente intervenha com tudo o que temos. Por ser ocidental e moderno, durmo bem com os insultos de quem pensa diferente de mim. Só não durmo bem com o grito dos indivíduos impedidos de se expressar e de viver segundo a liberdade de sua consciência.
20 setembro 2012
A saca de sal
Antes de viver juntos, seria bom consumir uma saca de sal. Para o quê? Para se conhecer melhor?
COMEÇOU COM um e-mail bizarro me avisando que o restauro da Fontana del Sale (a fonte do sal, em Novi Ligure, Itália) estava terminado (bizarro porque o restauro foi terminado um ano atrás). Imediatamente, a mensagem evocou em mim um momento esquecido.
Novi Ligure (leia-se "lígure") é uma cidade de menos de 30 mil habitantes; apesar de seu nome, ela não está na Liguria, mas no Piemonte. Num domingo de inverno do fim dos anos 70, eu atravessava a Piazza Mariano delle Piane, em Novi, com minha avó Elena.
Sei que era domingo porque ela tinha pedido que parássemos (íamos de Rapallo a Casale Monferrato, visitar amigos) para que ela escutasse a missa. E sei que era inverno porque ela estava com um sobretudo longo de cachemira um tanto surrada, mas especialmente mórbida, com um colarinho do mesmo astracã cinza de seu chapéu "clochê".
Também ela tinha enfiado a mão, numa luva escura, debaixo do meu braço, mais pelo calor e pela intimidade do gesto do que por necessidade de apoio ao caminhar.
Eu estava lhe contando que acabava de me juntar com uma mulher, na cidade onde eu morava, que era Paris. Ela parou diante da Fontana del Sale, que está no meio da Piazza.
"Fonte do sal" não é um apelido. No passado, o sal era crucial para preservar os alimentos (pense no bacalhau), era vendido em sacas, e era precioso. Em 1814, os noveses defenderam sua reserva de sal contra franceses e ingleses. Para celebrar o esforço, foi construída a fonte, no meio da qual surge uma figura, que aperta contra o peito uma saca, que se parece com uma daquelas almofadas que as crianças querem sempre consigo e sem as quais elas não conseguem dormir (uma foto da fonte: http://migre.me/aKii8).
Minha avó, olhando para a estátua, disse: "Prima di vivere insieme, bisogna consumare un sacco de sale" -antes de viver juntos, é preciso consumir uma saca de sal. Minha avó era religiosa, mas sábia demais para se opor ao fato de eu me juntar sem me casar. Sua preocupação era com a precipitação.
Eu, nascido em tempos de geladeira, não sabia quanto tempo duraria uma saca de sal. Mas o recado era claro: antes de se juntar, um longo namoro é oportuno.
Há uma constatação que eu faço com frequência: não sei quem começou, se fomos nós ou se foram a literatura e o cinema, mas, em geral, no início das relações, a gente idealiza tanto o parceiro quanto o novo envolvimento afetivo ou sexual (as dificuldades da etapa seguinte ficam para a comédia, se não para a farsa). Consequência: o exórdio das relações aparece como um momento glorioso, cujo espírito se perderá, inelutavelmente, ao longo do tempo, consumido pela trivialidade do dia a dia e da convivência.
Uma leitora, Ester Costa, comenta: "Eu acho que, na verdade, começa mal e vai piorando. É ruim e errado desde o começo, e a gente sabe, mas, por decreto decide que vai continuar. Ninguém esconde do outro o que é, a gente é que não quer enxergar". Ou seja, "o germe da destruição" das relações está no seu começo, "o ovo da serpente está aí".
Outra leitora, Mariana Seixas, vai na mesma direção; ela acha que, quando encontramos alguém "com quem no futuro dividiremos uma vida e quatro paredes, (...), não conhecemos bem a pessoa", e o futuro nos apresentará "uma pessoa diferente daquela dos primeiros meses de namoro".
Em outras palavras, a degradação das relações está num defeito de fábrica, numa pressa ou num descuido do encontro inicial, em que, paradoxalmente, falamos demais e não nos mostramos o suficiente.
Minhas leitoras têm razão. O momento do encontro é enganoso, por um viés de otimismo: valorizamos tanto o grande amor definitivo que acabamos enxergando sua miragem no horizonte, mesmo quando não há por quê. Você lê os três primeiros números sorteados da Mega-Sena, são os que você jogou, o coração já dispara -embora até lá você não tenha ganho absolutamente nada, nem a consolação de uma quadra.
Seria bom, em suma, segundo minhas leitoras, que os futuros consortes se conhecessem melhor.
Em tese, eu concordaria. Mas, naquele domingo dos anos 70, eu completei a frase de minha avó perguntando-lhe, justamente, se o tempo da saca de sal era para o casal se conhecer melhor. Ela fez o gesto de quem descarta uma estupidez e disse: "Ma vá un po', non per conoscersi; per abituarsi", deixa de bobagens, é preciso de tempo não para se conhecer, mas para se acostumar.
13 setembro 2012
Conversas para mestres inseguros
Pode desejar fora dos trilhos, mas só se seu desejo for consequência de um trauma infantil
Ao longo do século 20, a melhor literatura erótica foi escrita por mulheres -de Anaïs Nin a Régine Deforges e Mara. "Emmanuelle", o elo fraco do conjunto, foi, de fato, escrito por um homem. A obra-prima da série é "História de O", de Pauline Réage (eternamente esgotado na Ediouro).
Juntando "História de O" com, por exemplo, "A Vida Sexual de Catherine M.", de Catherine Millet (Pocket Ouro), seria tentador chegar à conclusão de que as mulheres sejam especialistas em fantasias de submissão.
Esse "achado" seria confirmado pela nova onda de literatura erótica escrita por mulheres, nos EUA.
Já mencionei, nesta coluna, os romances de E. L. James (http://migre.me/aE4KL). E acaba de sair o primeiro da série "Crossfire", de Sylvia Day: "Toda Sua" (Paralela).
A heroína de E. L. James lida com um homem que lhe propõe amarras e chicotes. Eva, a heroína de Sylvia Day, lida com um parceiro mais interessado no controle mental e sexual do que no domínio físico. Mesmo assim, alguns homens correrão para a padaria para anunciar aos amigos, entre piadas e tragos, que as mulheres "gostam de apanhar".
Essa roda de padaria sobre a suposta submissão feminina revela uma dupla fraqueza dos homens.
1) Em qualquer encontro da comunidade sadomasoquista (real ou virtual), constata-se que sempre faltam mestres (dominadores), enquanto sobram submissos e submissas. Uma anedota explica por quê.
Uma mulher, que conheci muito tempo atrás, estava radiante por ter encontrado, enfim, um mestre rigoroso como ela queria. Um dia, o mestre, ao deixar o apartamento da escrava, descobriu que seu carro tinha sido levado pela polícia e só podia ser resgatado pagando multa na hora. O mestre voltou para o apartamento da escrava e pediu um dinheiro emprestado. Foi o fim. A escrava aceitaria e adoraria ser explorada, mas achou intolerável o pedido de um dinheiro "emprestado", porque esse pedido diminuía o mestre.
Conclusão. O que leva alguns homens até a padaria mais próxima para fazer piadas entre amigos sobre as mulheres supostamente submissas? É o medo de sua insuficiência como mestres. Mas é também o medo de suas próprias fantasias de submissão, como explico a seguir.
2) Se faltam mestres e sobram submissos, não é só porque é difícil ser mestre; é também porque a fantasia de submissão é comum a todos -isso, aliás, explica o sucesso da literatura erótica de submissão: todos, homens e mulheres, gozam com fantasias de submissão. Para explicar por que a submissão é uma fantasia básica universal, baste isto: 1) vivemos com a ideia de que o protótipo do prazer é o do bebê pendurado no seio materno, 2) você acha que tem muita diferença entre, sei lá, ser possuído/a de mãos presas, sem poder reagir, e a condição do bebê entregue, indefeso, aos cuidados de quem troca sua fralda?
Em outras palavras, um ideal nostálgico define para nós o prazer ao qual parecemos mais aspirar: é o ideal de estar literalmente nas mãos de outro que nos ama. Quem estranha que a submissão seja uma fantasia fundamental?
Enfim, uma comparação entre a literatura erótica do século 20 e a onda de hoje revela uma diferença significativa.
Na literatura erótica do século 20, cujos melhores exemplos são, em grande parte, franceses, não me lembro que as fantasias de um protagonista ou de um personagem, por mais que fossem bizarras, fossem "justificadas" pelo relato de sua infância difícil.
Ou seja, na literatura erótica (francesa e feminina) do século 20, alguém pode se excitar com fantasias sádicas, masoquistas ou outras e pode praticá-las, simplesmente, porque gosta. Não é necessário que o protagonista ou o personagem tenha sido abusado quando criança.
Na recente literatura erótica feminina do século 21, que, até agora, parece vir sobretudo dos EUA, acontece o contrário. É possível desejar (um pouco ou muito) fora dos trilhos, mas à condição que esse desejo seja apresentado como o destino patológico de quem foi "traumatizado" na infância.
Em outras palavras, podemos admitir que homens e mulheres transem de maneiras aventurosas, mas o bom costume será salvo se eles transam assim porque foram maltratados quando pequenininhos.
É uma diferença cultural entre Europa e EUA, ou seja, é caretice norte-americana? Ou é o sinal de um novo passo na longa luta da cultura ocidental (a nossa) para disciplinar o prazer? Algo assim: se não basta mais ele ser pecaminoso, que seja, ao menos, doentio...
08 setembro 2012
Internação e força de vontade
De que adianta nos fecharmos num spa se não temos a força de vontade para respeitar um regime?
O CANAL a cabo A&E propõe a série "Intervenção", às 23 h das quartas-feiras (trechos dos primeiros episódios no site http://migre.me/ay14F).
Trata-se de um reality show, produzido no Brasil, no qual cada episódio apresenta um dependente químico (os de crack foram maioria), que é filmado na sua vida cotidiana e familiar, "para um documentário" -isso é o que o dependente acredita.
No fim, o indivíduo é convidado a uma reunião-surpresa com as pessoas mais próximas; nessa ocasião, um psiquiatra sugere que o dependente consinta em ser internado para se desintoxicar e se curar. Até agora, todos aceitaram. Entrevistados na clínica, alguns meses depois da internação, os dependentes estão "limpos" e bem melhor.
Mas o que acontecerá depois que eles voltarem para a dita vida ativa? Quando "Intervenção" estreou, a reportagem da Folha registrou as críticas de colegas psiquiatras que trabalham com dependentes (http://migre.me/ay5DI).
Por exemplo, o programa transmite a impressão de que a internação seja a única solução e um tiro certeiro, enquanto, infelizmente, as estatísticas são deprimentes: no caso do crack, em média, cinco anos depois de qualquer tratamento, mais de 80% voltaram a usar a droga. O programa tampouco explica que há internações diferentes e que todas se beneficiam de programas simultâneos de trabalho com a família, de reinserção social etc.
Além disso, não sei qual valor atribuir ao consenso do dependente, que é arrancado, na reunião final, como se fosse a condição indispensável (não só juridicamente) do sucesso de uma internação. É isso mesmo? Críticas à parte, considero importante que o grande público tenha uma visão (fiel) do que significa ser dependente e familiar de um dependente num contexto de classe média, diferente daquele dos "noias" errantes pelo centro da cidade.
No mais, o programa da A&E me levou a pensar sobre internação. Por que seria interessante que os outros nos proibissem alguma coisa da qual queremos, mas não conseguimos nos desfazer? Por exemplo, de que adianta nos fecharmos num spa onde passaremos fome se não temos a força de vontade para respeitar um regime? Será que uma imposição externa pode nos ajudar a combater um hábito ao qual não sabemos resistir?
Me lembrei de uma experiência de Roy Baumeister, de 1998, sobre o cansaço do autocontrole. Baumeister a reapresenta num livro recente, escrito com J. Tierney, "WillPower" (força de vontade, Penguin). A pesquisa original pode ser pedida em pdf no site http://migre.me/ay6Y4 : Baumeister, Bratlavsky e outros, "Ego Depletion: is the Active Self a Limited Resource?" (sangria do Ego: o self ativo é um recurso limitado?), "Journal of Personality and Social Psychology", 74,1998.
Os pesquisadores arregimentaram três grupos de estudantes famintos; todos tiveram que resolver problemas de geometria que eram insolúveis, embora os estudantes não soubessem. O grupo 1 foi direto para a tarefa. O grupo 2 ficou, primeiro, diante de cookies de chocolate quentinhos, com a autorização de comer livremente. O grupo 3 também foi exposto aos cookies quentes, mas foi autorizado a comer só rabanetes. O grupo 1 se esforçou em média 20 minutos tentando resolver os problemas insolúveis. Mesma coisa para o grupo 2. O grupo 3 (o dos rabanetes) desistiu em oito minutos. Duas interpretações possíveis.
1) Talvez as frustrações não tenham valor educativo: não é proibindo os cookies que criaríamos pessoas capazes de perseverar no esforço. Ao contrário, liberar os cookies seria uma condição para fomentar em todos uma grande força de vontade.
2) Talvez os que tiveram que se controlar para resistir à tentação dos cookies (que estavam na mesa) tenham esgotado sua força de vontade, a ponto que não lhes sobrou força alguma na hora de abordar os problemas de geometria.
Se, em vez de estarem na mesa, os cookies estivessem trancados a sete chaves ou ausentes (como para o grupo 1), os estudantes não precisariam se cansar para se impedir de comê-los. A pesquisa justificaria, por exemplo, a internação: alguém se encarrega de proibir para que eu não tenha que fazer o esforço de me abster -com isso talvez eu possa me dedicar mais eficazmente a outra coisa (meu futuro, o planejamento de minha reinserção).
Então, enigma: a pesquisa de Baumeister justifica o rigor da internação ou a permissividade?
O CANAL a cabo A&E propõe a série "Intervenção", às 23 h das quartas-feiras (trechos dos primeiros episódios no site http://migre.me/ay14F).
Trata-se de um reality show, produzido no Brasil, no qual cada episódio apresenta um dependente químico (os de crack foram maioria), que é filmado na sua vida cotidiana e familiar, "para um documentário" -isso é o que o dependente acredita.
No fim, o indivíduo é convidado a uma reunião-surpresa com as pessoas mais próximas; nessa ocasião, um psiquiatra sugere que o dependente consinta em ser internado para se desintoxicar e se curar. Até agora, todos aceitaram. Entrevistados na clínica, alguns meses depois da internação, os dependentes estão "limpos" e bem melhor.
Mas o que acontecerá depois que eles voltarem para a dita vida ativa? Quando "Intervenção" estreou, a reportagem da Folha registrou as críticas de colegas psiquiatras que trabalham com dependentes (http://migre.me/ay5DI).
Por exemplo, o programa transmite a impressão de que a internação seja a única solução e um tiro certeiro, enquanto, infelizmente, as estatísticas são deprimentes: no caso do crack, em média, cinco anos depois de qualquer tratamento, mais de 80% voltaram a usar a droga. O programa tampouco explica que há internações diferentes e que todas se beneficiam de programas simultâneos de trabalho com a família, de reinserção social etc.
Além disso, não sei qual valor atribuir ao consenso do dependente, que é arrancado, na reunião final, como se fosse a condição indispensável (não só juridicamente) do sucesso de uma internação. É isso mesmo? Críticas à parte, considero importante que o grande público tenha uma visão (fiel) do que significa ser dependente e familiar de um dependente num contexto de classe média, diferente daquele dos "noias" errantes pelo centro da cidade.
No mais, o programa da A&E me levou a pensar sobre internação. Por que seria interessante que os outros nos proibissem alguma coisa da qual queremos, mas não conseguimos nos desfazer? Por exemplo, de que adianta nos fecharmos num spa onde passaremos fome se não temos a força de vontade para respeitar um regime? Será que uma imposição externa pode nos ajudar a combater um hábito ao qual não sabemos resistir?
Me lembrei de uma experiência de Roy Baumeister, de 1998, sobre o cansaço do autocontrole. Baumeister a reapresenta num livro recente, escrito com J. Tierney, "WillPower" (força de vontade, Penguin). A pesquisa original pode ser pedida em pdf no site http://migre.me/ay6Y4 : Baumeister, Bratlavsky e outros, "Ego Depletion: is the Active Self a Limited Resource?" (sangria do Ego: o self ativo é um recurso limitado?), "Journal of Personality and Social Psychology", 74,1998.
Os pesquisadores arregimentaram três grupos de estudantes famintos; todos tiveram que resolver problemas de geometria que eram insolúveis, embora os estudantes não soubessem. O grupo 1 foi direto para a tarefa. O grupo 2 ficou, primeiro, diante de cookies de chocolate quentinhos, com a autorização de comer livremente. O grupo 3 também foi exposto aos cookies quentes, mas foi autorizado a comer só rabanetes. O grupo 1 se esforçou em média 20 minutos tentando resolver os problemas insolúveis. Mesma coisa para o grupo 2. O grupo 3 (o dos rabanetes) desistiu em oito minutos. Duas interpretações possíveis.
1) Talvez as frustrações não tenham valor educativo: não é proibindo os cookies que criaríamos pessoas capazes de perseverar no esforço. Ao contrário, liberar os cookies seria uma condição para fomentar em todos uma grande força de vontade.
2) Talvez os que tiveram que se controlar para resistir à tentação dos cookies (que estavam na mesa) tenham esgotado sua força de vontade, a ponto que não lhes sobrou força alguma na hora de abordar os problemas de geometria.
Se, em vez de estarem na mesa, os cookies estivessem trancados a sete chaves ou ausentes (como para o grupo 1), os estudantes não precisariam se cansar para se impedir de comê-los. A pesquisa justificaria, por exemplo, a internação: alguém se encarrega de proibir para que eu não tenha que fazer o esforço de me abster -com isso talvez eu possa me dedicar mais eficazmente a outra coisa (meu futuro, o planejamento de minha reinserção).
Então, enigma: a pesquisa de Baumeister justifica o rigor da internação ou a permissividade?
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