De que adianta nos fecharmos num spa se não temos a força de vontade para respeitar um regime?
O CANAL a cabo A&E propõe a série "Intervenção", às 23 h das quartas-feiras (trechos dos primeiros episódios no site http://migre.me/ay14F).
Trata-se de um reality show, produzido no Brasil, no qual cada episódio apresenta um dependente químico (os de crack foram maioria), que é filmado na sua vida cotidiana e familiar, "para um documentário" -isso é o que o dependente acredita.
No fim, o indivíduo é convidado a uma reunião-surpresa com as pessoas mais próximas; nessa ocasião, um psiquiatra sugere que o dependente consinta em ser internado para se desintoxicar e se curar.
Até agora, todos aceitaram. Entrevistados na clínica, alguns meses depois da internação, os dependentes estão "limpos" e bem melhor.
Mas o que acontecerá depois que eles voltarem para a dita vida ativa?
Quando "Intervenção" estreou, a reportagem da Folha registrou as críticas de colegas psiquiatras que trabalham com dependentes (http://migre.me/ay5DI).
Por exemplo, o programa transmite a impressão de que a internação seja a única solução e um tiro certeiro, enquanto, infelizmente, as estatísticas são deprimentes: no caso do crack, em média, cinco anos depois de qualquer tratamento, mais de 80% voltaram a usar a droga.
O programa tampouco explica que há internações diferentes e que todas se beneficiam de programas simultâneos de trabalho com a família, de reinserção social etc.
Além disso, não sei qual valor atribuir ao consenso do dependente, que é arrancado, na reunião final, como se fosse a condição indispensável (não só juridicamente) do sucesso de uma internação. É isso mesmo?
Críticas à parte, considero importante que o grande público tenha uma visão (fiel) do que significa ser dependente e familiar de um dependente num contexto de classe média, diferente daquele dos "noias" errantes pelo centro da cidade.
No mais, o programa da A&E me levou a pensar sobre internação. Por que seria interessante que os outros nos proibissem alguma coisa da qual queremos, mas não conseguimos nos desfazer? Por exemplo, de que adianta nos fecharmos num spa onde passaremos fome se não temos a força de vontade para respeitar um regime? Será que uma imposição externa pode nos ajudar a combater um hábito ao qual não sabemos resistir?
Me lembrei de uma experiência de Roy Baumeister, de 1998, sobre o cansaço do autocontrole. Baumeister a reapresenta num livro recente, escrito com J. Tierney, "WillPower" (força de vontade, Penguin). A pesquisa original pode ser pedida em pdf no site http://migre.me/ay6Y4 : Baumeister, Bratlavsky e outros, "Ego Depletion: is the Active Self a Limited Resource?" (sangria do Ego: o self ativo é um recurso limitado?), "Journal of Personality and Social Psychology", 74,1998.
Os pesquisadores arregimentaram três grupos de estudantes famintos; todos tiveram que resolver problemas de geometria que eram insolúveis, embora os estudantes não soubessem. O grupo 1 foi direto para a tarefa. O grupo 2 ficou, primeiro, diante de cookies de chocolate quentinhos, com a autorização de comer livremente. O grupo 3 também foi exposto aos cookies quentes, mas foi autorizado a comer só rabanetes. O grupo 1 se esforçou em média 20 minutos tentando resolver os problemas insolúveis. Mesma coisa para o grupo 2. O grupo 3 (o dos rabanetes) desistiu em oito minutos. Duas interpretações possíveis.
1) Talvez as frustrações não tenham valor educativo: não é proibindo os cookies que criaríamos pessoas capazes de perseverar no esforço. Ao contrário, liberar os cookies seria uma condição para fomentar em todos uma grande força de vontade.
2) Talvez os que tiveram que se controlar para resistir à tentação dos cookies (que estavam na mesa) tenham esgotado sua força de vontade, a ponto que não lhes sobrou força alguma na hora de abordar os problemas de geometria.
Se, em vez de estarem na mesa, os cookies estivessem trancados a sete chaves ou ausentes (como para o grupo 1), os estudantes não precisariam se cansar para se impedir de comê-los. A pesquisa justificaria, por exemplo, a internação: alguém se encarrega de proibir para que eu não tenha que fazer o esforço de me abster -com isso talvez eu possa me dedicar mais eficazmente a outra coisa (meu futuro, o planejamento de minha reinserção).
Então, enigma: a pesquisa de Baumeister justifica o rigor da internação ou a permissividade?
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