Como lembra Philippe Ariès ("Histoire des Attitudes Devant la Mort en Occident du Moyen Âge à Nos Jours, Paris Seuil, 1975), apenas dois ou três séculos atrás, no Ocidente, as sepulturas ainda faziam parte da vida cotidiana: na beira dos caminhos, ao lado ou no chão das igrejas, as lápides mortuárias não eram ameaçadoras.
Sua presença não prometia só um destino funesto. Era possível e importante lembrar da morte, porque o verdadeiro depositário da vida não era o indivíduo em sua vã existência, mas a comunidade -terrestre ou celeste que fosse.
As tumbas encontradas a cada passo afirmavam a continuidade da vida (da comunidade), mais do que ameaçavam com o desespero do fim (do indivíduo).
Ora, se hoje a morte é horror sem remédio, os cemitérios seriam prisões onde esperamos afastar e prender a morte. E o Dia dos Mortos seria uma espécie de exorcismo coletivo quando forçadamente lembramos -uma vez por ano- o que preferiríamos esquecer.
Sabemos que não é assim. A visita às tumbas de família não é só um sedativo da culpa. Podemos gostar de passar em um cemitério desconhecido, lendo nos epitáfios o mistério de vidas que nos precederam (a "Antologia de Spoon River, de E. L. Masters, é sussurrada por cada lápide). Acontece também que procuremos inspiração nas tumbas dos grandes.
Os cemitérios, nascidos para afastar de nós a morte, se tornaram lugares de homenagem, lembrança, ou mesmo -um pouco como as igrejas- de meditação. O aparente paradoxo pode se expressar no alternar do dia e da noite.
O cemitério da noite, quando é frequentado por outras coisas do que simplesmente os nossos terrores, se torna -como o Père-Lachaise em Paris- um lugar de escuros encontros onde o gozo se dá, à condição de nunca saber direito se atrás do zíper se esconde um sexo, uma faca ou um vírus.
Em suma, ele é o parque confinado dos horrores: o horror da morte e o horror de um impossível e último gozo. O cemitério de dia, ao contrário, é parte indispensável de nossas vidas. Pois, exatamente pela mesma razão pela qual afastamos de nós a presença física da morte, também não podemos abrir mão da lembrança dos mortos.
Acontece que, por sermos indivíduos (e portanto termos horror da morte), somos também sujeitos com pouca tradição, sempre incertos de quem somos, eternamente necessitados de fazer e refazer, pensar e repensar nossa história.
E por isso precisamos dos mortos que nós mesmos afastamos. Homens e mulheres famosos, inspiradores ou não, parentes e amigos próximos ou menos. E mesmo a massa dos mortos que nunca encontramos em vida nos habitam. Mantemos eles dentro de nós e com eles engajamos uma espécie de diálogo intrapsíquico.
E, quando visitamos -de dia, naturalmente- suas tumbas, paramos para dialogar com eles. Frequentemente, aliás, em voz semi-alta, dando aos cemitérios no Dia dos Mortos a aparência de enfermarias de alucinados.
Ainda bem, pois o medo da morte não nos impede de inventar, com a ajuda dos mortos, nosso passado e nosso futuro.
02 novembro 1995
01 outubro 1995
A Vida Como Ela Está
Entre jocosas e frementes passeatas mascaradas nas noites de Halloween e natais milagrosamente nevados e tilintantes de ``Jingle Bells". Em grandes casas de madeira onde cada um tem seu quarto com papel floreado e, ao lado da cama de edredom, foto, taco e luva de beisebol com capacete de futebol americano. De jeans que não temem nem sujeira nem rasgões.
Fartas de coca-cola e ``chewing gum", milkshakes e monstruosas bananas-splits, empoleiradas nos bancos de um "diner de fórmica e aço inoxidável -o ``jukebox" cuspindo rock e folk-, moldadas por um desenho de Norman Rockwell: as crianças americanas eram o sonho do mundo inteiro. Pedalando para distribuir jornais antes da escola, confirmavam assim a promessa de um futuro tranquilo e próspero e outorgavam aos americanos a convicção de fazer a inveja de todos.
Os adolescentes já eram mais animados. Aos 16 anos -sortudos!- dirigiam pick-ups envenenadas. Circulavam na noite, de drive-in em drive-in, procurando uma loja de alcoólicos complacente. Podiam preocupar os pais europeus ou sul-americanos, mas como deviam se divertir... Ninguém, aliás, queria ser adolescente, só "teen-ager".
Certo, a realidade sempre foi outra. A "selva de asfalto" das cidades não podia se parecer com o estereótipo da utopia suburbana. A pobreza, as diferenças raciais sempre recortaram realidades diferentes. Mas, sobretudo nos últimos 15 anos, aos poucos, a infância e a adolescência americanas vieram perdendo seu brilho. Ao drama, que é normalmente para uma sociedade o extravio de seus jovens (o que será de nós?), se acrescenta aqui a perda de uma ilusão que contava no otimismo americano.
Em julho deste ano, enfim, saiu "Kids", obra-prima cinematográfica de Larry Clark, um fotógrafo de 52 anos, já conhecido por seus livros dedicados aos adolescentes marginalizados e às margens mais escabrosas da vida de adolescente ("Tulsa", de 1971, "Teenage Lust", de 1983 e "1992"). Clark passou um bom tempo em Washington Square, em New York, com os adolescentes skatistas e escreveu o roteiro de "Kids" com um jovem de 22 anos, Harmony Korine.
Na cena final de "Kids", Casper -um dos personagens principais- acorda no meio dos restos sinistros de uma festa -garrafas vazias, vômito, baganas e corpos adormecidos pelo álcool, a droga e um sexo violento e sem graça-, para exclamar, olhando direto para a câmara: "Jesus Cristo, mas o que aconteceu?"
É bem o que se perguntaram os espectadores americanos: o que aconteceu com os nossos adolescentes? O sonho parece que virou pesadelo.
"Kids" é um dia de verão na vida de um pequeno bando de adolescentes nova-iorquinos. Não são nenhuma gangue de marginais, só jovens de férias. Eles não constituem nenhum exagero, participam da banalidade cotidiana. Erram pela cidade, um deles seduz garotinhas virgens dando cantadas banais, mas eficientes, roubam uma cerveja e dois pêssegos, se drogam, nadam em uma piscina fechada, batem severamente, em grupo, num passeante que reage a suas provocações, fumam, bebem e alimentam uma fala que nunca, no dia inteiro, passa de uma litania de palavrões, mais feitos para confirmar a adesão de todos a um código comum do que para se expressar.
Uma delas acaba sabendo neste dia o resultado positivo de um teste HIV e procura o garoto que a contaminou. É este o fio narrativo.
O filme, qualificado NC 17 -proibido a menores de 17 anos, o que é comercialmente danoso para uma produção-, encontrou apesar disto um público numeroso, fascinado e perplexo. A imprensa, desde o ``The New York Times" até ``The New Yorker", passando por ``Newsweek", comentou o filme repetidamente. A dificuldade era entender por onde se dava o escândalo.
Alguns acusaram a ausência de comentário moral e a fascinação de Clark pelo tema e pela história. Mas outros notaram que justamente o consternante vazio destas vidas e o horizonte de morte apontado pela Aids constituíam um juízo moral.
Outros ainda acusaram o caráter descritivo, fotográfico do filme, seu estilo "cinéma vérité", não só pela falta de crítica da realidade filmada, mas por mostrar esta adolescência não como um momento de transição para o dia da volta ao canil, não como uma promessa, mas como ``a vida como ela é" e presumivelmente vai continuar sendo. Os clássicos filmes americanos sobre adolescência, desde "Juventude Transviada" (de Nicholas Ray, 1955), sempre insistiram sobre o caráter inadaptado do adolescente, deixando-lhe a escolha: morrer ou se tornar adulto. No filme de Clark, os adolescentes morrerão eventualmente. Mas quanto a "se tornar adultos" nem se fala. Talvez, como veremos, porque eles já sejam.
Ninguém contestou o quadro que o filme oferece dos adolescentes de classe média baixa de Nova York.
Valeu a pena perguntar para dezenas de espectadores americanos suas impressões: sempre uma sensação de evidência -"é isso mesmo!"- acompanhava um mal-estar profundo, quase um certo nojo, a irritação, o desconforto, a preocupação, a indignação. As reações eram mais vivas nas pessoas de 40 anos para cima, com filhos adolescentes. Mas, à pergunta sobre o porquê do mal-estar, respondia uma perplexidade evidente.
Os adolescentes de ``Kids", os kids -chamemos eles assim-, bebem e se drogam. E daí? Até o presidente Clinton fumou marijuana (embora afirme não ter tragado).
Eles fumam, e a gente não fumava aos 15 ou 14 anos? E quem não roubou em uma loja nesta idade? Quem não sonhou transar, ou melhor, traçar meninas na nossa adolescência? Dão uma surra coletiva em um passeante. E quem não fez grupinho de defesa e ataque com seus amigos, quem não se deliciou, sonhando com a coesão agressiva e protetora das gangues de motoqueiros?
Então, o que os kids têm de tão diferente de nós? Por que o filme nos apavora ou indigna?
Uma pergunta surda acompanha o espectador de "Kids": cadê os adultos? Sua presença no filme é irrisória: o passeante surrado, um mendigo aleijado, loucos sem casa perdidos na cidade, assistentes sanitárias anônimas, uma mãe fumando em cima de seu bebê, vidrada na televisão, um sapato paterno onde roubar dinheiro... A fala dos adultos é ausente.
A constatação, em um primeiro momento, conforta o espectador em tudo que já acredita saber. Nossos adolescentes se perderam porque não cuidamos deles como deveríamos. Entona-se a música do declínio da civilização americana. A culpa é um grande consolo: achamos os responsáveis, e somos nós.
É esta a vantagem das explicações sociológicas: a família se desagregou, nos divorciamos demais. A mulher, que entrou maciçamente no mercado do trabalho durante a guerra, gostou e continuou nele, preferindo sua afirmação social aos cuidados maternos. A corrida social se fez mais dura e os pais não têm mais tempo. Uma economia menos triunfante e mais seletiva (porque mais ávida) expõe os jovens americanos a novas dúvidas sobre seu futuro. E vai andando. Mas aqui dois problemas.
Primeiro: a relação é precária entre estas lamentadas mudanças sociais das quais seríamos responsáveis e o aumento de violência, prisões e outros extravios adolescentes. Como mostra o artigo de Gilberto Dimenstein neste Mais!, a sociedade americana não é nenhum clube de auto-ajuda. Mas, embora os números sejam impressionantes, eles não acompanham diretamente as transformações sociais lamentadas.
Segundo: o que acompanha, sim, estas transformações é nossa crescente preocupação, nossa culpa. Com a consequência que, quanto menos nos ocupamos dos kids, tanto mais nos sentimos culpados e queremos, exigimos, que eles sejam de novo felizes.
Não há dúvida que os kids escutam direito esta nossa exigência. Usam dela, aliás, para pedir indulgência, desculpa, dinheiro, liberdade. Como recusaríamos?
A dúvida é outra: será que a felicidade que eles tentam se dar (para acalmar nossa culpa) é bem aquela que gostaríamos?
Claro que não, parecem responder em massa os espectadores de "Kids". Droga, cerveja e meninas não fazem a felicidade que queremos. Observa um amigo: é uma felicidade deserta, sem cultura ou seja, com aspirações, pensamentos, projetos, complexidade. Certo, mas, se o filme nos perturba, é bem porque a vida dos kids realiza ao pé da letra, além de nossas civilizadas pretensões, um ideal de massa que é o nosso.
Perguntando-me para onde foram os adultos do filme, encontrei assim uma resposta. Me ajudou constatar que uma das críticas mais constantes do trabalho de Clark (tanto do filme como de seu trabalho anterior) acusa sua fascinação com a adolescência, como se dela nunca o autor tivesse saído apesar de seus 52 anos.
Não é difícil constatar que os fascinados pelos kids do filme somos nós. Se os adultos parecem ausentes do filme, é por estarem demasiado presentes, por serem -como Larry Clark- aqueles que sonham com esta adolescência extraviada. Os kids nos fascinam e perturbam por revelar a face crua e miserável de nosso próprio desejo.
A adolescência é sempre um momento de interrogação: qualquer kid se pergunta nesta altura o que querem os pais. Frequentemente estes acham que o kid só quer fazer o contrário do que eles desejam. Mas nunca é assim. Quer queira quer não, o kid interpreta, lê atrás das linhas, procura encontrar o desejo dos pais atrás do que eles declaram. Por exemplo, o que importa na separação dos pais e mães não é tanto a subsequente dificuldade de cuidar de crianças para mães e pais solteiros, nem as complicações intrínsecas de maternidades e paternidades adquiridas. Importa que os pais aparecem como privilegiando suas paixões amorosas e sexuais sobre a família. Que seu discurso explícito seja de respeito aos valores do lar pouco vale, comparado com a constatação de que -para eles, de fato- mais valeu procurar e seguir procurando parcerias ou encontros mais alegres. Como estranhar então que os kids vivam sexos e amores mais leves, se é esta a escolha dos pais?
Os kids lêem o desejo parental além do que os pais imaginam. E hoje, nesta leitura, eles dispõem como nunca de indícios explícitos. A simples adesão de seus pais aos valores sociais de massa destina os kids ao ideal de vida que os orienta (ou desorienta) no filme de Larry Clark.
Nos anos 60, um famoso filme de ficção científica, "O Planeta Proibido", nos apavorava com um monstro que era a pura emanação energética do desejo inconsciente de um cientista. No fim, na frente de uma porta de aço já quase fundida pela criatura, o próprio cientista, ajoelhado, gritava: "Pára, não é isso que quero", mas a energia animada por ele mesmo continuava sua obra, insensível a suas declarações e fiel ao desejo inconsciente que a animava. Os kids funcionam do mesmo jeito: insensíveis à nossa indignação e às nossas críticas explícitas, continuam certos de seguir de fato nosso desejo e realizar nossos sonhos.
É este então, aquele de "Kids", o futuro da adolescência aqui nos Estados Unidos? Seria, se a cultura de massa triunfasse, acompanhada, como sempre, pela negação explícita de seus próprios efeitos.
Nestes dias, Calvin Klein, por exemplo, teve que retirar uma campanha publicitária inteira, mórbida pelo explícito apelo ao desejo dos corpos adolescentes dos modelos. Triste episódio: tanto -do lado dos censores- pela negação obstinada da sexualidade adolescente quanto -na campanha- pelos estereótipos da sexualidade que os adolescentes eram chamados a encarnar.
Mas também nestes dias abriu ao público, na Houk Friedman Gallery de Nova York (851, Madison Ave.), uma exposição das mais recentes fotografias de Sally Mann. Emmett, Jessie e Virgínia, os modelos (e filhos) de Sally Mann, posam como caricaturas de nossos desejos: em suas atitudes, a imitação forçada de nossos sonhos é revelada (mimam, por exemplo, alguns quadros famosos de nossa galeria erótica). Eles, sobretudo, lançam para a câmera um olhar de desafio, que afirma, como no retrato dos três juntos, a vontade de vir a ser outra coisa do que a pálida e tristonha realização de nossos sonhos. Pelo olhar de Sally Mann, há esperança. Como há esperança, se a cultura americana sabe produzir "Kids" e, com Casper, se interrogar: ``O que aconteceu?".
Fartas de coca-cola e ``chewing gum", milkshakes e monstruosas bananas-splits, empoleiradas nos bancos de um "diner de fórmica e aço inoxidável -o ``jukebox" cuspindo rock e folk-, moldadas por um desenho de Norman Rockwell: as crianças americanas eram o sonho do mundo inteiro. Pedalando para distribuir jornais antes da escola, confirmavam assim a promessa de um futuro tranquilo e próspero e outorgavam aos americanos a convicção de fazer a inveja de todos.
Os adolescentes já eram mais animados. Aos 16 anos -sortudos!- dirigiam pick-ups envenenadas. Circulavam na noite, de drive-in em drive-in, procurando uma loja de alcoólicos complacente. Podiam preocupar os pais europeus ou sul-americanos, mas como deviam se divertir... Ninguém, aliás, queria ser adolescente, só "teen-ager".
Certo, a realidade sempre foi outra. A "selva de asfalto" das cidades não podia se parecer com o estereótipo da utopia suburbana. A pobreza, as diferenças raciais sempre recortaram realidades diferentes. Mas, sobretudo nos últimos 15 anos, aos poucos, a infância e a adolescência americanas vieram perdendo seu brilho. Ao drama, que é normalmente para uma sociedade o extravio de seus jovens (o que será de nós?), se acrescenta aqui a perda de uma ilusão que contava no otimismo americano.
Em julho deste ano, enfim, saiu "Kids", obra-prima cinematográfica de Larry Clark, um fotógrafo de 52 anos, já conhecido por seus livros dedicados aos adolescentes marginalizados e às margens mais escabrosas da vida de adolescente ("Tulsa", de 1971, "Teenage Lust", de 1983 e "1992"). Clark passou um bom tempo em Washington Square, em New York, com os adolescentes skatistas e escreveu o roteiro de "Kids" com um jovem de 22 anos, Harmony Korine.
Na cena final de "Kids", Casper -um dos personagens principais- acorda no meio dos restos sinistros de uma festa -garrafas vazias, vômito, baganas e corpos adormecidos pelo álcool, a droga e um sexo violento e sem graça-, para exclamar, olhando direto para a câmara: "Jesus Cristo, mas o que aconteceu?"
É bem o que se perguntaram os espectadores americanos: o que aconteceu com os nossos adolescentes? O sonho parece que virou pesadelo.
"Kids" é um dia de verão na vida de um pequeno bando de adolescentes nova-iorquinos. Não são nenhuma gangue de marginais, só jovens de férias. Eles não constituem nenhum exagero, participam da banalidade cotidiana. Erram pela cidade, um deles seduz garotinhas virgens dando cantadas banais, mas eficientes, roubam uma cerveja e dois pêssegos, se drogam, nadam em uma piscina fechada, batem severamente, em grupo, num passeante que reage a suas provocações, fumam, bebem e alimentam uma fala que nunca, no dia inteiro, passa de uma litania de palavrões, mais feitos para confirmar a adesão de todos a um código comum do que para se expressar.
Uma delas acaba sabendo neste dia o resultado positivo de um teste HIV e procura o garoto que a contaminou. É este o fio narrativo.
O filme, qualificado NC 17 -proibido a menores de 17 anos, o que é comercialmente danoso para uma produção-, encontrou apesar disto um público numeroso, fascinado e perplexo. A imprensa, desde o ``The New York Times" até ``The New Yorker", passando por ``Newsweek", comentou o filme repetidamente. A dificuldade era entender por onde se dava o escândalo.
Alguns acusaram a ausência de comentário moral e a fascinação de Clark pelo tema e pela história. Mas outros notaram que justamente o consternante vazio destas vidas e o horizonte de morte apontado pela Aids constituíam um juízo moral.
Outros ainda acusaram o caráter descritivo, fotográfico do filme, seu estilo "cinéma vérité", não só pela falta de crítica da realidade filmada, mas por mostrar esta adolescência não como um momento de transição para o dia da volta ao canil, não como uma promessa, mas como ``a vida como ela é" e presumivelmente vai continuar sendo. Os clássicos filmes americanos sobre adolescência, desde "Juventude Transviada" (de Nicholas Ray, 1955), sempre insistiram sobre o caráter inadaptado do adolescente, deixando-lhe a escolha: morrer ou se tornar adulto. No filme de Clark, os adolescentes morrerão eventualmente. Mas quanto a "se tornar adultos" nem se fala. Talvez, como veremos, porque eles já sejam.
Ninguém contestou o quadro que o filme oferece dos adolescentes de classe média baixa de Nova York.
Valeu a pena perguntar para dezenas de espectadores americanos suas impressões: sempre uma sensação de evidência -"é isso mesmo!"- acompanhava um mal-estar profundo, quase um certo nojo, a irritação, o desconforto, a preocupação, a indignação. As reações eram mais vivas nas pessoas de 40 anos para cima, com filhos adolescentes. Mas, à pergunta sobre o porquê do mal-estar, respondia uma perplexidade evidente.
Os adolescentes de ``Kids", os kids -chamemos eles assim-, bebem e se drogam. E daí? Até o presidente Clinton fumou marijuana (embora afirme não ter tragado).
Eles fumam, e a gente não fumava aos 15 ou 14 anos? E quem não roubou em uma loja nesta idade? Quem não sonhou transar, ou melhor, traçar meninas na nossa adolescência? Dão uma surra coletiva em um passeante. E quem não fez grupinho de defesa e ataque com seus amigos, quem não se deliciou, sonhando com a coesão agressiva e protetora das gangues de motoqueiros?
Então, o que os kids têm de tão diferente de nós? Por que o filme nos apavora ou indigna?
Uma pergunta surda acompanha o espectador de "Kids": cadê os adultos? Sua presença no filme é irrisória: o passeante surrado, um mendigo aleijado, loucos sem casa perdidos na cidade, assistentes sanitárias anônimas, uma mãe fumando em cima de seu bebê, vidrada na televisão, um sapato paterno onde roubar dinheiro... A fala dos adultos é ausente.
A constatação, em um primeiro momento, conforta o espectador em tudo que já acredita saber. Nossos adolescentes se perderam porque não cuidamos deles como deveríamos. Entona-se a música do declínio da civilização americana. A culpa é um grande consolo: achamos os responsáveis, e somos nós.
É esta a vantagem das explicações sociológicas: a família se desagregou, nos divorciamos demais. A mulher, que entrou maciçamente no mercado do trabalho durante a guerra, gostou e continuou nele, preferindo sua afirmação social aos cuidados maternos. A corrida social se fez mais dura e os pais não têm mais tempo. Uma economia menos triunfante e mais seletiva (porque mais ávida) expõe os jovens americanos a novas dúvidas sobre seu futuro. E vai andando. Mas aqui dois problemas.
Primeiro: a relação é precária entre estas lamentadas mudanças sociais das quais seríamos responsáveis e o aumento de violência, prisões e outros extravios adolescentes. Como mostra o artigo de Gilberto Dimenstein neste Mais!, a sociedade americana não é nenhum clube de auto-ajuda. Mas, embora os números sejam impressionantes, eles não acompanham diretamente as transformações sociais lamentadas.
Segundo: o que acompanha, sim, estas transformações é nossa crescente preocupação, nossa culpa. Com a consequência que, quanto menos nos ocupamos dos kids, tanto mais nos sentimos culpados e queremos, exigimos, que eles sejam de novo felizes.
Não há dúvida que os kids escutam direito esta nossa exigência. Usam dela, aliás, para pedir indulgência, desculpa, dinheiro, liberdade. Como recusaríamos?
A dúvida é outra: será que a felicidade que eles tentam se dar (para acalmar nossa culpa) é bem aquela que gostaríamos?
Claro que não, parecem responder em massa os espectadores de "Kids". Droga, cerveja e meninas não fazem a felicidade que queremos. Observa um amigo: é uma felicidade deserta, sem cultura ou seja, com aspirações, pensamentos, projetos, complexidade. Certo, mas, se o filme nos perturba, é bem porque a vida dos kids realiza ao pé da letra, além de nossas civilizadas pretensões, um ideal de massa que é o nosso.
Perguntando-me para onde foram os adultos do filme, encontrei assim uma resposta. Me ajudou constatar que uma das críticas mais constantes do trabalho de Clark (tanto do filme como de seu trabalho anterior) acusa sua fascinação com a adolescência, como se dela nunca o autor tivesse saído apesar de seus 52 anos.
Não é difícil constatar que os fascinados pelos kids do filme somos nós. Se os adultos parecem ausentes do filme, é por estarem demasiado presentes, por serem -como Larry Clark- aqueles que sonham com esta adolescência extraviada. Os kids nos fascinam e perturbam por revelar a face crua e miserável de nosso próprio desejo.
A adolescência é sempre um momento de interrogação: qualquer kid se pergunta nesta altura o que querem os pais. Frequentemente estes acham que o kid só quer fazer o contrário do que eles desejam. Mas nunca é assim. Quer queira quer não, o kid interpreta, lê atrás das linhas, procura encontrar o desejo dos pais atrás do que eles declaram. Por exemplo, o que importa na separação dos pais e mães não é tanto a subsequente dificuldade de cuidar de crianças para mães e pais solteiros, nem as complicações intrínsecas de maternidades e paternidades adquiridas. Importa que os pais aparecem como privilegiando suas paixões amorosas e sexuais sobre a família. Que seu discurso explícito seja de respeito aos valores do lar pouco vale, comparado com a constatação de que -para eles, de fato- mais valeu procurar e seguir procurando parcerias ou encontros mais alegres. Como estranhar então que os kids vivam sexos e amores mais leves, se é esta a escolha dos pais?
Os kids lêem o desejo parental além do que os pais imaginam. E hoje, nesta leitura, eles dispõem como nunca de indícios explícitos. A simples adesão de seus pais aos valores sociais de massa destina os kids ao ideal de vida que os orienta (ou desorienta) no filme de Larry Clark.
Nos anos 60, um famoso filme de ficção científica, "O Planeta Proibido", nos apavorava com um monstro que era a pura emanação energética do desejo inconsciente de um cientista. No fim, na frente de uma porta de aço já quase fundida pela criatura, o próprio cientista, ajoelhado, gritava: "Pára, não é isso que quero", mas a energia animada por ele mesmo continuava sua obra, insensível a suas declarações e fiel ao desejo inconsciente que a animava. Os kids funcionam do mesmo jeito: insensíveis à nossa indignação e às nossas críticas explícitas, continuam certos de seguir de fato nosso desejo e realizar nossos sonhos.
É este então, aquele de "Kids", o futuro da adolescência aqui nos Estados Unidos? Seria, se a cultura de massa triunfasse, acompanhada, como sempre, pela negação explícita de seus próprios efeitos.
Nestes dias, Calvin Klein, por exemplo, teve que retirar uma campanha publicitária inteira, mórbida pelo explícito apelo ao desejo dos corpos adolescentes dos modelos. Triste episódio: tanto -do lado dos censores- pela negação obstinada da sexualidade adolescente quanto -na campanha- pelos estereótipos da sexualidade que os adolescentes eram chamados a encarnar.
Mas também nestes dias abriu ao público, na Houk Friedman Gallery de Nova York (851, Madison Ave.), uma exposição das mais recentes fotografias de Sally Mann. Emmett, Jessie e Virgínia, os modelos (e filhos) de Sally Mann, posam como caricaturas de nossos desejos: em suas atitudes, a imitação forçada de nossos sonhos é revelada (mimam, por exemplo, alguns quadros famosos de nossa galeria erótica). Eles, sobretudo, lançam para a câmera um olhar de desafio, que afirma, como no retrato dos três juntos, a vontade de vir a ser outra coisa do que a pálida e tristonha realização de nossos sonhos. Pelo olhar de Sally Mann, há esperança. Como há esperança, se a cultura americana sabe produzir "Kids" e, com Casper, se interrogar: ``O que aconteceu?".
20 agosto 1995
Instantes épicos de um mundo banal
Quase 30 anos atrás, na minha primeira visita aos Estados Unidos, viajei de Londres para Nova York. O vôo pegou, de saída, um dia de atraso por razões técnicas. Perdemos assim o momento reservado para nossa aterrissagem. Depois de uma longa espera no ar, acabamos pousando, por falta de gasolina, em Bangor, Maine, onde todos descemos e passamos pelos serviços de imigração, antes de voltar para o avião e, finalmente, para Nova York.
O hangar de Bangor, Maine, onde permanecemos um certo tempo, não tinha janelas, salvo por uma abertura vertical e estreita, no banheiro masculino. Ela deixava entrever um impasse malcuidado onde repousava a quase carcaça de um Chevrolet. Esse retângulo cinza (era um dia chuvoso e abafado de agosto), aparentemente inexpressivo e tristonho, foi a minha primeira visão da América. Fato curioso -tive a impressão clara de reconhecer esse impasse perdido do Novo Mundo como se desde sempre ele fizesse parte de minha imaginação. Mais: em sua desolação, e apesar de sua insignificância, ele aparecia como a confirmação de um motivo literário ou cinematográfico.
Certo, a literatura e o cinema norte-americanos, nos anos 60, já vinham há tempo configurando o repertório da fantasia ocidental. Mesmo assim, em lugar e de jeito nenhum, eu podia ter visto, ou fantasiado, até então o impasse desolado de Bangor, Maine.
Os quadros de Edward Hopper, certamente o maior pintor americano figurativo deste século, produzem o mesmo efeito: neles, o cotidiano e o banal são imediatamente literários ou mesmo épicos. Ou seja, teatros e momentos de histórias que mereceriam ser contadas. Por isso, a exposição proposta (até 15 de outubro) pelo Whitney Museum of American Art de Nova York, tem o título: "Edward Hopper e a Imaginação Americana. Por isso também, o catálogo (criticado por alguns) é uma coletânea não de ensaios sobre o pintor, mas sobretudo de contos e poesias. Acompanha também a exposição, no andar inferior do museu, um programa permanente de filmes americanos, cujas imagens se aparentam com os quadros de Hopper, e, no centro da sala de exposição, é proposta uma montagem de vídeo que sublinha habilmente as similitudes. (Por informação: o primeiro repertório completo da obra de Hopper é publicado ao mesmo tempo e vendido por subscrição no próprio museu).
Os curadores evitaram assim a armadilha que consistiria em perguntar como Hopper influenciou ou foi influenciado pelo imaginário de Hollywood ou então de escritores que, por sua vez, decidiram o imaginário americano. Com efeito, será que o Hemingway dos 49 contos viu Hopper ou foi Hopper quem leu Hemingway? Será que Hitchcock pensou na "House By the Railroad de Hopper quando escolheu a casa de "Psicose? Ou será que Hopper pensava em "A Turba, filme de King Vidor (que é de 1928), quando pintou "Room In New York, em 1932?
Considere-se um dos quadros mais famosos, "Nighthawks, de 1942: dois homens e uma mulher, de noite, em um "diner. Certo, Dashiell Hammet e Humphrey Bogart não estão longe, passaram ou passarão por aí. Mas não importa muito saber quem passou primeiro. O problema não é de influência. O que eles têm em comum com Hopper? Afetos improváveis e abstratas solidões urbanas? Bogart não gostaria destas. Nem Hammett, aliás. O que eles têm em comum é a realidade americana. E esta realidade é, de antemão, uma espécie de patrimônio imaginário, que, aliás, se tornou universal.
E não adianta acusar o famoso imperialismo cultural ianque. Ao contrário, precisa antes explicar por que e como a realidade americana se transformou em repertório cenográfico da fantasia universal. O que eventualmente permitiu que a cultura americana se difundisse. Não existe espaço americano, urbano ou rural, rico ou miserável, que não apareça já como o cenário de uma possível história em curso.
Por curioso que pareça o paralelo: assim como as pedras de Veneza falavam para Ruskin de um fabuloso inesgotável passado, o "diner, a bomba de gasolina, a casa de madeira da paisagem americana são momentos de uma narração onipresente na imaginação ocidental.
A cultura americana, sua força, é feita da capacidade de atribuir a cada instante, canto e indivíduo uma possível épica. É uma épica de tipo novo: não precisa de estilo solene, nem de nobreza e grandeza das personagens; não procura sua inspiração em enigmáticas dívidas com o passado, nem em infindáveis profundezas das consciências. O corriqueiro é imediatamente épico.
É exatamente esse mistério, aliás, que se contempla nos quadros de Hopper: a transfiguração imediata do cotidiano em momento suspenso de uma narrativa épica, a transformação em valor estético de uma banalidade silenciosa e transparente.
Essa mágica -tão visível em Hopper- faz provavelmente que a cultura americana se torne universal. Por ser o protótipo de uma cultura individualista, na qual a suposição da insustentável liberdade dos indivíduos basta para transformar cada um -uma mulher sozinha em um motel, uma secretária atrás da janela de um escritório, ou um cansado funcionário lendo silenciosamente o jornal- em herói moderno.
O hangar de Bangor, Maine, onde permanecemos um certo tempo, não tinha janelas, salvo por uma abertura vertical e estreita, no banheiro masculino. Ela deixava entrever um impasse malcuidado onde repousava a quase carcaça de um Chevrolet. Esse retângulo cinza (era um dia chuvoso e abafado de agosto), aparentemente inexpressivo e tristonho, foi a minha primeira visão da América. Fato curioso -tive a impressão clara de reconhecer esse impasse perdido do Novo Mundo como se desde sempre ele fizesse parte de minha imaginação. Mais: em sua desolação, e apesar de sua insignificância, ele aparecia como a confirmação de um motivo literário ou cinematográfico.
Certo, a literatura e o cinema norte-americanos, nos anos 60, já vinham há tempo configurando o repertório da fantasia ocidental. Mesmo assim, em lugar e de jeito nenhum, eu podia ter visto, ou fantasiado, até então o impasse desolado de Bangor, Maine.
Os quadros de Edward Hopper, certamente o maior pintor americano figurativo deste século, produzem o mesmo efeito: neles, o cotidiano e o banal são imediatamente literários ou mesmo épicos. Ou seja, teatros e momentos de histórias que mereceriam ser contadas. Por isso, a exposição proposta (até 15 de outubro) pelo Whitney Museum of American Art de Nova York, tem o título: "Edward Hopper e a Imaginação Americana. Por isso também, o catálogo (criticado por alguns) é uma coletânea não de ensaios sobre o pintor, mas sobretudo de contos e poesias. Acompanha também a exposição, no andar inferior do museu, um programa permanente de filmes americanos, cujas imagens se aparentam com os quadros de Hopper, e, no centro da sala de exposição, é proposta uma montagem de vídeo que sublinha habilmente as similitudes. (Por informação: o primeiro repertório completo da obra de Hopper é publicado ao mesmo tempo e vendido por subscrição no próprio museu).
Os curadores evitaram assim a armadilha que consistiria em perguntar como Hopper influenciou ou foi influenciado pelo imaginário de Hollywood ou então de escritores que, por sua vez, decidiram o imaginário americano. Com efeito, será que o Hemingway dos 49 contos viu Hopper ou foi Hopper quem leu Hemingway? Será que Hitchcock pensou na "House By the Railroad de Hopper quando escolheu a casa de "Psicose? Ou será que Hopper pensava em "A Turba, filme de King Vidor (que é de 1928), quando pintou "Room In New York, em 1932?
Considere-se um dos quadros mais famosos, "Nighthawks, de 1942: dois homens e uma mulher, de noite, em um "diner. Certo, Dashiell Hammet e Humphrey Bogart não estão longe, passaram ou passarão por aí. Mas não importa muito saber quem passou primeiro. O problema não é de influência. O que eles têm em comum com Hopper? Afetos improváveis e abstratas solidões urbanas? Bogart não gostaria destas. Nem Hammett, aliás. O que eles têm em comum é a realidade americana. E esta realidade é, de antemão, uma espécie de patrimônio imaginário, que, aliás, se tornou universal.
E não adianta acusar o famoso imperialismo cultural ianque. Ao contrário, precisa antes explicar por que e como a realidade americana se transformou em repertório cenográfico da fantasia universal. O que eventualmente permitiu que a cultura americana se difundisse. Não existe espaço americano, urbano ou rural, rico ou miserável, que não apareça já como o cenário de uma possível história em curso.
Por curioso que pareça o paralelo: assim como as pedras de Veneza falavam para Ruskin de um fabuloso inesgotável passado, o "diner, a bomba de gasolina, a casa de madeira da paisagem americana são momentos de uma narração onipresente na imaginação ocidental.
A cultura americana, sua força, é feita da capacidade de atribuir a cada instante, canto e indivíduo uma possível épica. É uma épica de tipo novo: não precisa de estilo solene, nem de nobreza e grandeza das personagens; não procura sua inspiração em enigmáticas dívidas com o passado, nem em infindáveis profundezas das consciências. O corriqueiro é imediatamente épico.
É exatamente esse mistério, aliás, que se contempla nos quadros de Hopper: a transfiguração imediata do cotidiano em momento suspenso de uma narrativa épica, a transformação em valor estético de uma banalidade silenciosa e transparente.
Essa mágica -tão visível em Hopper- faz provavelmente que a cultura americana se torne universal. Por ser o protótipo de uma cultura individualista, na qual a suposição da insustentável liberdade dos indivíduos basta para transformar cada um -uma mulher sozinha em um motel, uma secretária atrás da janela de um escritório, ou um cansado funcionário lendo silenciosamente o jornal- em herói moderno.
23 julho 1995
A cultura da assimilação
Imigrei para o Brasil em 1989, depois de três anos a viajar como turista. Foi um labirinto administrativo. Mesmo casado com uma brasileira, no bom direito de estabelecer-me no país, o cenário para chegar à carteira de residente foi de escola kafkiana. Quando, depois de seis meses de peregrinações, retirei meu Registro Nacional de Estrangeiro, na Polícia Federal, um funcionário perguntou: "Mas como você conseguiu?".
Antes disso, morei na França, durante 15 anos. Lá, vi amigos de vários horizontes lutarem em vão para conseguir permanecer no país. Aliás, a burocracia francesa tinha a capacidade de deixar até um europeu, apesar de seu direito incontestável de residência, com a impressão de que sua permanência era um favor excepcional.
Por estas experiências, acho engraçado, quando leio que os Estados Unidos estariam fechando as fronteiras, que vão -oh horror!- lutar contra uma imigração clandestina de provavelmente 300 mil pessoas por ano e que, portanto, eles estariam se tornando "xenófobos".
Os Estados Unidos recebem hoje mais de 1 milhão de imigrantes legais por ano. Com exceção do Canadá e da Austrália (que têm uma proporção bem diferente entre território e população), eles são o único país ocidental aberto. Não está nada certo que esta política se explique por absconsos interesses econômicos: a fidelidade dos EUA a sua origem colonial é, antes de mais nada, a fidelidade a um ideal fundador de refúgio.
As sucessivas e quase ininterruptas ondas imigratórias certamente produziram várias e violentas inquietudes internas. Última em data é a de Peter Brimelow, que publicou recentemente o livro "Alien Nation" e foi entrevistado no Mais! do último domingo. Brimelow está preocupadíssimo com a transformação progressiva da sociedade americana, invadida por hordas de bárbaros hispânicos.
Ele me lembra certos imigrantes italianos na Suíça (também morei lá: para os imigrantes que não fossem estudantes, a coisa não era como Kafka, era como Sade; filas de homens separados de suas famílias por 11 meses, esperando na estação de Brig para exame médico etc.): quando, finalmente, conseguiam a carteira "C" (residência permanente), alguns queriam tanto se parecer com suíços que passavam automaticamente a desprezar os outros italianos (há um filme excelente com Nino Manfredi sobre isso, chama-se "Pão com Chocolate").
A partir dos anos 70, a administração americana abandonou um sistema de quotas preestabelecidas na seleção dos imigrantes. A idéia até lá era permitir uma imigração que respeitasse e mantivesse a balança das diferentes etnias e nacionalidades que compunham a nação americana.
Desde então, a administração decidiu privilegiar os familiares dos imigrados. Esta nova política de imigração acarretou um aumento significativo das comunidades asiática e, sobretudo, hispânica. Isso, combinado com o maior crescimento demográfico destas comunidades, promete a curto prazo uma alteração substancial da distribuição étnica nos Estados Unidos.
E daí? Porque estes novos imigrantes não acabariam se integrando no famoso "melting pot" da cultura americana, como foi o caso dos irlandeses, e dos italianos? Só porque seriam de cores diferentes?
A cultura americana tem um fantástico poder de assimilação. Ela incorpora com rapidez suas diferenças internas mais disruptivas: a guerra no Vietnã, o assédio sexual, Malcolm X, até o Black Panther Party são agora filmes, como são filmes e romances, há tempos, a imigração italiana, irlandesa, polonesa etc. As diferenças tornam-se, no imaginário cultural, patrimônio comum. Como, aliás, não seria inevitável a assimilação de todos à nação americana, se para todos a América, para onde emigram, já é geralmente um sonho muito esperado?
Brimelow responderia que nisso também as coisas mudaram. A ideologia americana dominante é hoje multiculturalista. A nação parece perseguir o sonho de uma comunidade que não peça nenhum sacrifício integrativo, onde cada um possa permanecer em sua diferença. É verdade que, por bonito que seja, este sonho arrisca tornar-se pesadelo: o sentimento de uma comunidade de destino pode mesmo se perder desde que a nação vá dividindo-se em grupos antagonistas.
O jornalista Michel Lind (autor do recém-lançado ``A Próxima Nação Americana") acrescentaria que a verdadeira ameaça à coesão da nação americana não é nem o projeto multiculturalista, nem a nova balança étnica.
A assimilação das ondas imigratórias até os anos 60 foi facilitada pelo acesso efetivo ao ``american way of life". Como já parecia evidente nos anos 20 aos sociólogos da escola de Chicago, a integração econômica, a participação no sonho americano garantiria a assimilação de todos. Ora, acontece que, justamente desde os anos 60, as diferenças econômicas foram se aprofundando: o sonho está mais difícil.
Segundo Lind, a verdadeira fratura que ameaça o tecido social americano é, hoje, vertical. É isso que ele chama a possível ``brasilização" dos Estados Unidos: um divórcio irremediável entre uma classe privilegiada e os outros. Por isso ele acaba pregando também um limite na imigração, não para manter a balança étnica, mas para conter uma nova e mais aguda fratura de classe.
Na verdade, se há um risco -relativo, aliás, especificamente à imigração hispânica-, ele não é nem cultural, nem propriamente econômico. A cultura americana, já disse, sempre conseguiu prevalecer sobre as diferenças culturais, e as fraturas econômicas encontrarão de novo, mais cedo ou mais tarde, o espírito solidário de um novo pacto social. Mas a nação será sem defesa se prevalecer um espírito predatório que não faz parte de sua tradição: se seus imigrantes não vierem para "fazer a América", ou mesmo para "se fazer na América", mas para explorar a América e levar uma malinha para casa.
Eles não serão nunca americanos, ou serão americanos de um tipo novo. Aqui, infelizmente, a idéia de brasilização dos EUA assume uma dimensão cultural que escapa a Lind: pois eles serão, na ambivalência da palavra e da tradição colonial portuguesa, "exploradores", e, como tais, sem nação. Por enquanto, legais ou ilegais, eles ainda são os únicos imigrantes globalmente mal vindos. É isso que se traduz em oposição ao uso de outras línguas do que o inglês, ou ao eventual espírito de clã dos grupos de novos imigrantes: um ressentimento difuso contra quem persegue o sonho do bem-estar sem entender que este ainda é, nos EUA, um ideal comunitário e não uma vocação predatória.
NOTA
Nos debates sobre os efeitos do multiculturalismo, muitos acabam contando os negros americanos como uma etnia a mais. É um equívoco político: os negros dos EUA são inexoravelmente americanos, parte integrante da nação, em nada comparáveis às recentes ondas migratórias.
Antes disso, morei na França, durante 15 anos. Lá, vi amigos de vários horizontes lutarem em vão para conseguir permanecer no país. Aliás, a burocracia francesa tinha a capacidade de deixar até um europeu, apesar de seu direito incontestável de residência, com a impressão de que sua permanência era um favor excepcional.
Por estas experiências, acho engraçado, quando leio que os Estados Unidos estariam fechando as fronteiras, que vão -oh horror!- lutar contra uma imigração clandestina de provavelmente 300 mil pessoas por ano e que, portanto, eles estariam se tornando "xenófobos".
Os Estados Unidos recebem hoje mais de 1 milhão de imigrantes legais por ano. Com exceção do Canadá e da Austrália (que têm uma proporção bem diferente entre território e população), eles são o único país ocidental aberto. Não está nada certo que esta política se explique por absconsos interesses econômicos: a fidelidade dos EUA a sua origem colonial é, antes de mais nada, a fidelidade a um ideal fundador de refúgio.
As sucessivas e quase ininterruptas ondas imigratórias certamente produziram várias e violentas inquietudes internas. Última em data é a de Peter Brimelow, que publicou recentemente o livro "Alien Nation" e foi entrevistado no Mais! do último domingo. Brimelow está preocupadíssimo com a transformação progressiva da sociedade americana, invadida por hordas de bárbaros hispânicos.
Ele me lembra certos imigrantes italianos na Suíça (também morei lá: para os imigrantes que não fossem estudantes, a coisa não era como Kafka, era como Sade; filas de homens separados de suas famílias por 11 meses, esperando na estação de Brig para exame médico etc.): quando, finalmente, conseguiam a carteira "C" (residência permanente), alguns queriam tanto se parecer com suíços que passavam automaticamente a desprezar os outros italianos (há um filme excelente com Nino Manfredi sobre isso, chama-se "Pão com Chocolate").
A partir dos anos 70, a administração americana abandonou um sistema de quotas preestabelecidas na seleção dos imigrantes. A idéia até lá era permitir uma imigração que respeitasse e mantivesse a balança das diferentes etnias e nacionalidades que compunham a nação americana.
Desde então, a administração decidiu privilegiar os familiares dos imigrados. Esta nova política de imigração acarretou um aumento significativo das comunidades asiática e, sobretudo, hispânica. Isso, combinado com o maior crescimento demográfico destas comunidades, promete a curto prazo uma alteração substancial da distribuição étnica nos Estados Unidos.
E daí? Porque estes novos imigrantes não acabariam se integrando no famoso "melting pot" da cultura americana, como foi o caso dos irlandeses, e dos italianos? Só porque seriam de cores diferentes?
A cultura americana tem um fantástico poder de assimilação. Ela incorpora com rapidez suas diferenças internas mais disruptivas: a guerra no Vietnã, o assédio sexual, Malcolm X, até o Black Panther Party são agora filmes, como são filmes e romances, há tempos, a imigração italiana, irlandesa, polonesa etc. As diferenças tornam-se, no imaginário cultural, patrimônio comum. Como, aliás, não seria inevitável a assimilação de todos à nação americana, se para todos a América, para onde emigram, já é geralmente um sonho muito esperado?
Brimelow responderia que nisso também as coisas mudaram. A ideologia americana dominante é hoje multiculturalista. A nação parece perseguir o sonho de uma comunidade que não peça nenhum sacrifício integrativo, onde cada um possa permanecer em sua diferença. É verdade que, por bonito que seja, este sonho arrisca tornar-se pesadelo: o sentimento de uma comunidade de destino pode mesmo se perder desde que a nação vá dividindo-se em grupos antagonistas.
O jornalista Michel Lind (autor do recém-lançado ``A Próxima Nação Americana") acrescentaria que a verdadeira ameaça à coesão da nação americana não é nem o projeto multiculturalista, nem a nova balança étnica.
A assimilação das ondas imigratórias até os anos 60 foi facilitada pelo acesso efetivo ao ``american way of life". Como já parecia evidente nos anos 20 aos sociólogos da escola de Chicago, a integração econômica, a participação no sonho americano garantiria a assimilação de todos. Ora, acontece que, justamente desde os anos 60, as diferenças econômicas foram se aprofundando: o sonho está mais difícil.
Segundo Lind, a verdadeira fratura que ameaça o tecido social americano é, hoje, vertical. É isso que ele chama a possível ``brasilização" dos Estados Unidos: um divórcio irremediável entre uma classe privilegiada e os outros. Por isso ele acaba pregando também um limite na imigração, não para manter a balança étnica, mas para conter uma nova e mais aguda fratura de classe.
Na verdade, se há um risco -relativo, aliás, especificamente à imigração hispânica-, ele não é nem cultural, nem propriamente econômico. A cultura americana, já disse, sempre conseguiu prevalecer sobre as diferenças culturais, e as fraturas econômicas encontrarão de novo, mais cedo ou mais tarde, o espírito solidário de um novo pacto social. Mas a nação será sem defesa se prevalecer um espírito predatório que não faz parte de sua tradição: se seus imigrantes não vierem para "fazer a América", ou mesmo para "se fazer na América", mas para explorar a América e levar uma malinha para casa.
Eles não serão nunca americanos, ou serão americanos de um tipo novo. Aqui, infelizmente, a idéia de brasilização dos EUA assume uma dimensão cultural que escapa a Lind: pois eles serão, na ambivalência da palavra e da tradição colonial portuguesa, "exploradores", e, como tais, sem nação. Por enquanto, legais ou ilegais, eles ainda são os únicos imigrantes globalmente mal vindos. É isso que se traduz em oposição ao uso de outras línguas do que o inglês, ou ao eventual espírito de clã dos grupos de novos imigrantes: um ressentimento difuso contra quem persegue o sonho do bem-estar sem entender que este ainda é, nos EUA, um ideal comunitário e não uma vocação predatória.
NOTA
Nos debates sobre os efeitos do multiculturalismo, muitos acabam contando os negros americanos como uma etnia a mais. É um equívoco político: os negros dos EUA são inexoravelmente americanos, parte integrante da nação, em nada comparáveis às recentes ondas migratórias.
04 junho 1995
Um observatório erótico
Passaram os tempos da Harlem Renaissance; de regra e de fato, os brancos não se aventuram mais a procurar festas nas noites do Harlem. Desde os anos 60, é perigoso demais, a violência e a raiva tornaram o estereótipo pouco frequentável, mas não menos erótico.
Os brancos podem se consolar olhando o Harlem e o South Bronx de um ônibus de vidros fechados. São oferecidos até ``tours" regulares (Victor's Sportsworld, 917/855.1544). Prometem visita aos lugares mais famosos do Harlem e ``muito mais"! Uma olhada de perto na vida do South Bronx, emoções escutando música em um clube de jazz, uma noite no famoso Apollo Club... Alguns, apesar da ameaça, dispensam o ônibus.
Na rua 128, há uma casa de tijolos de três andares, uma ``brownstone", como é aqui chamada, resto de tempos melhores. Deserta de dia, ela se anima cada noite. Nela, um mesmo homem gere, organiza e anima, a cada segunda-feira, um bordel e, nas outras noites da semana, uma boate gay reservada a negros e latinos.
Para a boate gay, K., que administra o negócio inteiro, teve que adotar esta solução. A idéia inicial era que a boate fosse aberta a todos. O endereço, no Harlem, deveria bastar para que o lugar fosse privilegiadamente para negros e latinos; os brancos que estivessem a fim, que viessem. Mas não deu: eram muitos, e sobretudo todos atrás da mesma coisa.
Como a regra da casa -comum nos clubes gays de Nova York- era deixar as roupas na entrada, num saco plástico numerado, e circular nu ou de jockstraps, eles caíam ajoelhados em adoração. Mesmo os brancos que pareciam machos para valer, executivos ou motoqueiros, eles só queriam dar. A clientela local acabou se queixando: não tinha espaço para um negro ou latino que quisesse, ele, procurar um macho.
Assim, K. teve que abrir aos brancos só uma noite por mês. Quem quiser escutar sua voz, modulando anúncios diferentes para as diferentes atrações do Afrodeeziak (é o nome que ele deu a sua boate), pode telefonar, em Nova York, ao 212/996.2833.
Notar-se-á a mudança de estilo e tom: as noites interraciais são anunciadas com um forte sotaque negro e prometem uma virilidade negra absoluta, direta, decidida. Seu melhor anúncio destes, dizia: "Aqui temos o sabor para vocês, café preto, sem creme, sem açúcar... Todas as outras noites do mês, para pessoas de cor, são anunciadas como qualquer festa gay, prometendo disc-jóqueis brilhantes e muita animação.
Para confirmar a opinião de K., um outro telefone pode servir. Existe em Nova York um serviço telefônico de encontros gays: 212/550.6666. Seguindo as devidas instruções, pode-se gravar um anúncio que será escutado imediatamente por quem chamar, e pode-se, naturalmente, escutar a lista dos anúncios das últimas horas. Os anúncios são organizados por categoria: negros, latinos e "aqueles que os querem. Nos anúncios de negros, escutar-se-ão anúncios de ``bottoms" (os que preferem estar em baixo) e ``tops" (os que estão em cima) em equilíbrio razoável. Mas os brancos são um desfile de ``bottoms". Faltam ``tops". Os negros ``bottoms", aliás, entenderam e geralmente declaram, preventivamente: "Brothers only.
Pergunto a K. se o bordel heterossexual das segundas é frequentado também por brancos. Como resposta, manda-me um convite (o que não significa que não deva pagar o ingresso -K. tem o senso dos negócios). Presto para minha mulher um juramento de fidelidade que, na verdade, o amor torna desnecessário, e vou. É um bordel pobre, como há tantos no mundo. As mulheres vêm de fora, só pagam US$ 5 a K. para usar os quartos no terceiro andar.
São todas de cor, mulatas, negras, indianas. Os homens todos negros, em uniforme do Harlem. Ninguém, aliás, tira o gorro de lã, nem o anoraque, apesar da calefação. No térreo, está o bar, com a televisão, uma sala de vídeo (pornô) e um quarto para as mulheres se vestirem, ou se despirem; no primeiro, uma vasta sala vazia, talvez para dançar, e outra menor com, ao centro, uma espécie de alta cama ``king size"; no segundo, os quartinhos particulares, onde se sobe, querendo, com uma das mulheres.
Uma música toca sem parar: "We want pussy, work that pussy... (queremos b..., trabalhem esta b...). Sobre a cama do primeiro andar, as mulheres, alternadamente, se despem e torcem, enquanto os homens interessados, de pé ao redor da cama, enfiam notas de US$ 1 por aqui e por ali. K. fornece o troco. De vez em quando, as mulheres sentam a cavalo em um homem um pouco indolente e se agitam em um frenético ``lap-dancing".
No bar, a atmosfera é amigável. Para quem me pergunta, apresento-me como brasileiro novo na cidade, para não parecer branco demais. O clima não é nem tenso, nem tórrido; fala-se das esposas ciumentas, do prazer de uma cerveja entre amigos. A sala de vídeo é deserta. Às vezes, uma mulher desce ao bar, para despertar o desejo de algum rapaz. Os homens assim fogosamente cavalgados e sacudidos parecem sobretudo preocupados em salvar sua cerveja e não perder de vista, na televisão (segunda é dia de futebol), o ``quarterback" dos 49ers.
Começo a me perguntar por que K. me convidou, quando, já tarde, aparece uma figura inesperada. Um homem branco -mais de 50 anos, nenhum esforço para esconder sua origem e status social- desce ao bar. Parece conhecer já alguns dos presentes. Bebe uma cerveja, fala de futebol, fuma. A razão de sua presença se explica poucos minutos depois, quando sobe para o primeiro andar uma mulher completamente diferente das outras.
Loira, olhos azuis, nos 30 anos, um corte de cabelos curto e elegante: a pouca roupa de baixo é de ótima qualidade, assim como os escarpins. Quase não usa maquiagem. Ela se deita na vasta cama e se oferece, ao som da mesma eterna música. "We want pussy, work that pussy. Os homens tocam, enfiam dedos e dólares, as coisas parecem esquentar, mais clientes se agrupam ao redor da cama, eles se fazem tocar, o jogo torna mais pesado. O homem branco está na penumbra, observa. Dois rapazes tiram a nova mulher da cama, dançam com ela, nua, e finalmente a possuem. Volto para a entrada, é a hora combinada para que um amigo passe para me pegar (desconfio da 128 à noite). K. me faz um grande sorriso e diz: "Got it?, entendeu?
Algo entendi, com efeito.
O bastão da lei
Na exposição do Whitney, uma outra obra de Mel Chin apresenta um cassetete da polícia americana, onde a empunhadura, perpendicular ao bastão, toma a forma de um pênis, preto naturalmente. Excrescência no bastão da lei, o negro se transforma em um consolo de sex shop. O símbolo mais banal da ordem social se erotiza: o bastão pode impor uma iníqua repartição social, mas ele se torna, na própria mão do policial, um instrumento erótico que talvez satisfaça a ambos, oprimido e opressor.
As fotografias de Robert Mapplethorpe, na mesma exposição, justamente expressam uma veneração do pênis negro, ou do negro como pênis. Atrapalham a boa consciência dos comentadores, pois falam de uma cumplicidade erótica onde, aparentemente, todos encontram uma parte do gozo, o fotógrafo e o fotografado.
Uma virilidade desprovida de poder social só pode se mostrar e medir em centímetros. Para dizê-lo com a psicanálise, ela é toda pênis e nada falo. Mas esta desvantagem social originária pode perfeitamente se reverter em seu contrário segundo o modelo da dialética hegeliana do mestre e do escravo. Nesta, o mestre delegou e assim perdeu para o escravo o poder e a capacidade de transformar a matéria e a natureza.
Aqui, o mestre, ocupado demais com as equivalências simbólicas de sua virilidade, parece perder para o escravo sua virilidade carnal. Vingança realizada da história: o escravo -feminizado por seu trágico destino, reduzido e forçado a demonstrar algum poder pela permanente ereção de seus músculos e de seu sexo- acaba encarnando a única imagem do desejo sexual. Ele se torna um, ou melhor, o fetiche social.
A ameaça não é, como se diz e pensa comumente, que eles possam possuir "nossas mulheres. A verdadeira ameaça, o medo, é que "eles já sejam a única imagem social de qualquer coisa que possa carnalmente possuir, ou seja, a imagem dominante da potência sexual. O homem negro seria, assim, desejado (e receado) por todos, homens e mulheres. Pois seria o próprio símbolo do sexo.
Como os clientes de K. excitados pela loira, o homem negro pode dificilmente resistir ao apelo: se o lugar que a sociedade lhe reserva é aquele de simulacro da virilidade, fetiche coletivo, como não ocupá-lo? Desempregado, denunciado como aproveitador assistido de um Welfare State generoso, o negro poderia acabar sendo um pênis de uso coletivo sustentado, como Sócrates queria ser, pelo dinheiro público, no pritaneu das fantasias sexuais.
Assim, o homem negro joga a carta que lhe é oferecida. O Black Power faz do estereótipo da virilidade do macho negro um cavalo de batalha, até a paródia. Leonard Jeffrey, em suas aulas enlouquecidas onde tenta demonstrar que Deus era negro e os sionistas inventaram a escravatura, se orgulha de ter sido chamado por homens brancos para satisfazer suas mulheres. E um ``homeless" negro, na calçada de meu prédio, investe mulheres brancas para pedir troco e, quando estas fogem assustadas, pergunta sardônico: "Por que têm tanto medo de mim?
A rua 128 e a ``brownstone" de K. não são o único observatório, mas a fixidez das relações interraciais nos EUA, vista daí, tem toda a viscosidade de um devaneio erótico.
Os brancos podem se consolar olhando o Harlem e o South Bronx de um ônibus de vidros fechados. São oferecidos até ``tours" regulares (Victor's Sportsworld, 917/855.1544). Prometem visita aos lugares mais famosos do Harlem e ``muito mais"! Uma olhada de perto na vida do South Bronx, emoções escutando música em um clube de jazz, uma noite no famoso Apollo Club... Alguns, apesar da ameaça, dispensam o ônibus.
Na rua 128, há uma casa de tijolos de três andares, uma ``brownstone", como é aqui chamada, resto de tempos melhores. Deserta de dia, ela se anima cada noite. Nela, um mesmo homem gere, organiza e anima, a cada segunda-feira, um bordel e, nas outras noites da semana, uma boate gay reservada a negros e latinos.
Para a boate gay, K., que administra o negócio inteiro, teve que adotar esta solução. A idéia inicial era que a boate fosse aberta a todos. O endereço, no Harlem, deveria bastar para que o lugar fosse privilegiadamente para negros e latinos; os brancos que estivessem a fim, que viessem. Mas não deu: eram muitos, e sobretudo todos atrás da mesma coisa.
Como a regra da casa -comum nos clubes gays de Nova York- era deixar as roupas na entrada, num saco plástico numerado, e circular nu ou de jockstraps, eles caíam ajoelhados em adoração. Mesmo os brancos que pareciam machos para valer, executivos ou motoqueiros, eles só queriam dar. A clientela local acabou se queixando: não tinha espaço para um negro ou latino que quisesse, ele, procurar um macho.
Assim, K. teve que abrir aos brancos só uma noite por mês. Quem quiser escutar sua voz, modulando anúncios diferentes para as diferentes atrações do Afrodeeziak (é o nome que ele deu a sua boate), pode telefonar, em Nova York, ao 212/996.2833.
Notar-se-á a mudança de estilo e tom: as noites interraciais são anunciadas com um forte sotaque negro e prometem uma virilidade negra absoluta, direta, decidida. Seu melhor anúncio destes, dizia: "Aqui temos o sabor para vocês, café preto, sem creme, sem açúcar... Todas as outras noites do mês, para pessoas de cor, são anunciadas como qualquer festa gay, prometendo disc-jóqueis brilhantes e muita animação.
Para confirmar a opinião de K., um outro telefone pode servir. Existe em Nova York um serviço telefônico de encontros gays: 212/550.6666. Seguindo as devidas instruções, pode-se gravar um anúncio que será escutado imediatamente por quem chamar, e pode-se, naturalmente, escutar a lista dos anúncios das últimas horas. Os anúncios são organizados por categoria: negros, latinos e "aqueles que os querem. Nos anúncios de negros, escutar-se-ão anúncios de ``bottoms" (os que preferem estar em baixo) e ``tops" (os que estão em cima) em equilíbrio razoável. Mas os brancos são um desfile de ``bottoms". Faltam ``tops". Os negros ``bottoms", aliás, entenderam e geralmente declaram, preventivamente: "Brothers only.
Pergunto a K. se o bordel heterossexual das segundas é frequentado também por brancos. Como resposta, manda-me um convite (o que não significa que não deva pagar o ingresso -K. tem o senso dos negócios). Presto para minha mulher um juramento de fidelidade que, na verdade, o amor torna desnecessário, e vou. É um bordel pobre, como há tantos no mundo. As mulheres vêm de fora, só pagam US$ 5 a K. para usar os quartos no terceiro andar.
São todas de cor, mulatas, negras, indianas. Os homens todos negros, em uniforme do Harlem. Ninguém, aliás, tira o gorro de lã, nem o anoraque, apesar da calefação. No térreo, está o bar, com a televisão, uma sala de vídeo (pornô) e um quarto para as mulheres se vestirem, ou se despirem; no primeiro, uma vasta sala vazia, talvez para dançar, e outra menor com, ao centro, uma espécie de alta cama ``king size"; no segundo, os quartinhos particulares, onde se sobe, querendo, com uma das mulheres.
Uma música toca sem parar: "We want pussy, work that pussy... (queremos b..., trabalhem esta b...). Sobre a cama do primeiro andar, as mulheres, alternadamente, se despem e torcem, enquanto os homens interessados, de pé ao redor da cama, enfiam notas de US$ 1 por aqui e por ali. K. fornece o troco. De vez em quando, as mulheres sentam a cavalo em um homem um pouco indolente e se agitam em um frenético ``lap-dancing".
No bar, a atmosfera é amigável. Para quem me pergunta, apresento-me como brasileiro novo na cidade, para não parecer branco demais. O clima não é nem tenso, nem tórrido; fala-se das esposas ciumentas, do prazer de uma cerveja entre amigos. A sala de vídeo é deserta. Às vezes, uma mulher desce ao bar, para despertar o desejo de algum rapaz. Os homens assim fogosamente cavalgados e sacudidos parecem sobretudo preocupados em salvar sua cerveja e não perder de vista, na televisão (segunda é dia de futebol), o ``quarterback" dos 49ers.
Começo a me perguntar por que K. me convidou, quando, já tarde, aparece uma figura inesperada. Um homem branco -mais de 50 anos, nenhum esforço para esconder sua origem e status social- desce ao bar. Parece conhecer já alguns dos presentes. Bebe uma cerveja, fala de futebol, fuma. A razão de sua presença se explica poucos minutos depois, quando sobe para o primeiro andar uma mulher completamente diferente das outras.
Loira, olhos azuis, nos 30 anos, um corte de cabelos curto e elegante: a pouca roupa de baixo é de ótima qualidade, assim como os escarpins. Quase não usa maquiagem. Ela se deita na vasta cama e se oferece, ao som da mesma eterna música. "We want pussy, work that pussy. Os homens tocam, enfiam dedos e dólares, as coisas parecem esquentar, mais clientes se agrupam ao redor da cama, eles se fazem tocar, o jogo torna mais pesado. O homem branco está na penumbra, observa. Dois rapazes tiram a nova mulher da cama, dançam com ela, nua, e finalmente a possuem. Volto para a entrada, é a hora combinada para que um amigo passe para me pegar (desconfio da 128 à noite). K. me faz um grande sorriso e diz: "Got it?, entendeu?
Algo entendi, com efeito.
O bastão da lei
Na exposição do Whitney, uma outra obra de Mel Chin apresenta um cassetete da polícia americana, onde a empunhadura, perpendicular ao bastão, toma a forma de um pênis, preto naturalmente. Excrescência no bastão da lei, o negro se transforma em um consolo de sex shop. O símbolo mais banal da ordem social se erotiza: o bastão pode impor uma iníqua repartição social, mas ele se torna, na própria mão do policial, um instrumento erótico que talvez satisfaça a ambos, oprimido e opressor.
As fotografias de Robert Mapplethorpe, na mesma exposição, justamente expressam uma veneração do pênis negro, ou do negro como pênis. Atrapalham a boa consciência dos comentadores, pois falam de uma cumplicidade erótica onde, aparentemente, todos encontram uma parte do gozo, o fotógrafo e o fotografado.
Uma virilidade desprovida de poder social só pode se mostrar e medir em centímetros. Para dizê-lo com a psicanálise, ela é toda pênis e nada falo. Mas esta desvantagem social originária pode perfeitamente se reverter em seu contrário segundo o modelo da dialética hegeliana do mestre e do escravo. Nesta, o mestre delegou e assim perdeu para o escravo o poder e a capacidade de transformar a matéria e a natureza.
Aqui, o mestre, ocupado demais com as equivalências simbólicas de sua virilidade, parece perder para o escravo sua virilidade carnal. Vingança realizada da história: o escravo -feminizado por seu trágico destino, reduzido e forçado a demonstrar algum poder pela permanente ereção de seus músculos e de seu sexo- acaba encarnando a única imagem do desejo sexual. Ele se torna um, ou melhor, o fetiche social.
A ameaça não é, como se diz e pensa comumente, que eles possam possuir "nossas mulheres. A verdadeira ameaça, o medo, é que "eles já sejam a única imagem social de qualquer coisa que possa carnalmente possuir, ou seja, a imagem dominante da potência sexual. O homem negro seria, assim, desejado (e receado) por todos, homens e mulheres. Pois seria o próprio símbolo do sexo.
Como os clientes de K. excitados pela loira, o homem negro pode dificilmente resistir ao apelo: se o lugar que a sociedade lhe reserva é aquele de simulacro da virilidade, fetiche coletivo, como não ocupá-lo? Desempregado, denunciado como aproveitador assistido de um Welfare State generoso, o negro poderia acabar sendo um pênis de uso coletivo sustentado, como Sócrates queria ser, pelo dinheiro público, no pritaneu das fantasias sexuais.
Assim, o homem negro joga a carta que lhe é oferecida. O Black Power faz do estereótipo da virilidade do macho negro um cavalo de batalha, até a paródia. Leonard Jeffrey, em suas aulas enlouquecidas onde tenta demonstrar que Deus era negro e os sionistas inventaram a escravatura, se orgulha de ter sido chamado por homens brancos para satisfazer suas mulheres. E um ``homeless" negro, na calçada de meu prédio, investe mulheres brancas para pedir troco e, quando estas fogem assustadas, pergunta sardônico: "Por que têm tanto medo de mim?
A rua 128 e a ``brownstone" de K. não são o único observatório, mas a fixidez das relações interraciais nos EUA, vista daí, tem toda a viscosidade de um devaneio erótico.
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