Quase 30 anos atrás, na minha primeira visita aos Estados Unidos, viajei de Londres para Nova York. O vôo pegou, de saída, um dia de atraso por razões técnicas. Perdemos assim o momento reservado para nossa aterrissagem. Depois de uma longa espera no ar, acabamos pousando, por falta de gasolina, em Bangor, Maine, onde todos descemos e passamos pelos serviços de imigração, antes de voltar para o avião e, finalmente, para Nova York.
O hangar de Bangor, Maine, onde permanecemos um certo tempo, não tinha janelas, salvo por uma abertura vertical e estreita, no banheiro masculino. Ela deixava entrever um impasse malcuidado onde repousava a quase carcaça de um Chevrolet. Esse retângulo cinza (era um dia chuvoso e abafado de agosto), aparentemente inexpressivo e tristonho, foi a minha primeira visão da América. Fato curioso -tive a impressão clara de reconhecer esse impasse perdido do Novo Mundo como se desde sempre ele fizesse parte de minha imaginação. Mais: em sua desolação, e apesar de sua insignificância, ele aparecia como a confirmação de um motivo literário ou cinematográfico.
Certo, a literatura e o cinema norte-americanos, nos anos 60, já vinham há tempo configurando o repertório da fantasia ocidental. Mesmo assim, em lugar e de jeito nenhum, eu podia ter visto, ou fantasiado, até então o impasse desolado de Bangor, Maine.
Os quadros de Edward Hopper, certamente o maior pintor americano figurativo deste século, produzem o mesmo efeito: neles, o cotidiano e o banal são imediatamente literários ou mesmo épicos. Ou seja, teatros e momentos de histórias que mereceriam ser contadas. Por isso, a exposição proposta (até 15 de outubro) pelo Whitney Museum of American Art de Nova York, tem o título: "Edward Hopper e a Imaginação Americana. Por isso também, o catálogo (criticado por alguns) é uma coletânea não de ensaios sobre o pintor, mas sobretudo de contos e poesias. Acompanha também a exposição, no andar inferior do museu, um programa permanente de filmes americanos, cujas imagens se aparentam com os quadros de Hopper, e, no centro da sala de exposição, é proposta uma montagem de vídeo que sublinha habilmente as similitudes. (Por informação: o primeiro repertório completo da obra de Hopper é publicado ao mesmo tempo e vendido por subscrição no próprio museu).
Os curadores evitaram assim a armadilha que consistiria em perguntar como Hopper influenciou ou foi influenciado pelo imaginário de Hollywood ou então de escritores que, por sua vez, decidiram o imaginário americano. Com efeito, será que o Hemingway dos 49 contos viu Hopper ou foi Hopper quem leu Hemingway? Será que Hitchcock pensou na "House By the Railroad de Hopper quando escolheu a casa de "Psicose? Ou será que Hopper pensava em "A Turba, filme de King Vidor (que é de 1928), quando pintou "Room In New York, em 1932?
Considere-se um dos quadros mais famosos, "Nighthawks, de 1942: dois homens e uma mulher, de noite, em um "diner. Certo, Dashiell Hammet e Humphrey Bogart não estão longe, passaram ou passarão por aí. Mas não importa muito saber quem passou primeiro. O problema não é de influência. O que eles têm em comum com Hopper? Afetos improváveis e abstratas solidões urbanas? Bogart não gostaria destas. Nem Hammett, aliás. O que eles têm em comum é a realidade americana. E esta realidade é, de antemão, uma espécie de patrimônio imaginário, que, aliás, se tornou universal.
E não adianta acusar o famoso imperialismo cultural ianque. Ao contrário, precisa antes explicar por que e como a realidade americana se transformou em repertório cenográfico da fantasia universal. O que eventualmente permitiu que a cultura americana se difundisse. Não existe espaço americano, urbano ou rural, rico ou miserável, que não apareça já como o cenário de uma possível história em curso.
Por curioso que pareça o paralelo: assim como as pedras de Veneza falavam para Ruskin de um fabuloso inesgotável passado, o "diner, a bomba de gasolina, a casa de madeira da paisagem americana são momentos de uma narração onipresente na imaginação ocidental.
A cultura americana, sua força, é feita da capacidade de atribuir a cada instante, canto e indivíduo uma possível épica. É uma épica de tipo novo: não precisa de estilo solene, nem de nobreza e grandeza das personagens; não procura sua inspiração em enigmáticas dívidas com o passado, nem em infindáveis profundezas das consciências. O corriqueiro é imediatamente épico.
É exatamente esse mistério, aliás, que se contempla nos quadros de Hopper: a transfiguração imediata do cotidiano em momento suspenso de uma narrativa épica, a transformação em valor estético de uma banalidade silenciosa e transparente.
Essa mágica -tão visível em Hopper- faz provavelmente que a cultura americana se torne universal. Por ser o protótipo de uma cultura individualista, na qual a suposição da insustentável liberdade dos indivíduos basta para transformar cada um -uma mulher sozinha em um motel, uma secretária atrás da janela de um escritório, ou um cansado funcionário lendo silenciosamente o jornal- em herói moderno.
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