Entre jocosas e frementes passeatas mascaradas nas noites de Halloween e natais milagrosamente nevados e tilintantes de ``Jingle Bells". Em grandes casas de madeira onde cada um tem seu quarto com papel floreado e, ao lado da cama de edredom, foto, taco e luva de beisebol com capacete de futebol americano. De jeans que não temem nem sujeira nem rasgões.
Fartas de coca-cola e ``chewing gum", milkshakes e monstruosas bananas-splits, empoleiradas nos bancos de um "diner de fórmica e aço inoxidável -o ``jukebox" cuspindo rock e folk-, moldadas por um desenho de Norman Rockwell: as crianças americanas eram o sonho do mundo inteiro. Pedalando para distribuir jornais antes da escola, confirmavam assim a promessa de um futuro tranquilo e próspero e outorgavam aos americanos a convicção de fazer a inveja de todos.
Os adolescentes já eram mais animados. Aos 16 anos -sortudos!- dirigiam pick-ups envenenadas. Circulavam na noite, de drive-in em drive-in, procurando uma loja de alcoólicos complacente. Podiam preocupar os pais europeus ou sul-americanos, mas como deviam se divertir... Ninguém, aliás, queria ser adolescente, só "teen-ager".
Certo, a realidade sempre foi outra. A "selva de asfalto" das cidades não podia se parecer com o estereótipo da utopia suburbana. A pobreza, as diferenças raciais sempre recortaram realidades diferentes. Mas, sobretudo nos últimos 15 anos, aos poucos, a infância e a adolescência americanas vieram perdendo seu brilho. Ao drama, que é normalmente para uma sociedade o extravio de seus jovens (o que será de nós?), se acrescenta aqui a perda de uma ilusão que contava no otimismo americano.
Em julho deste ano, enfim, saiu "Kids", obra-prima cinematográfica de Larry Clark, um fotógrafo de 52 anos, já conhecido por seus livros dedicados aos adolescentes marginalizados e às margens mais escabrosas da vida de adolescente ("Tulsa", de 1971, "Teenage Lust", de 1983 e "1992"). Clark passou um bom tempo em Washington Square, em New York, com os adolescentes skatistas e escreveu o roteiro de "Kids" com um jovem de 22 anos, Harmony Korine.
Na cena final de "Kids", Casper -um dos personagens principais- acorda no meio dos restos sinistros de uma festa -garrafas vazias, vômito, baganas e corpos adormecidos pelo álcool, a droga e um sexo violento e sem graça-, para exclamar, olhando direto para a câmara: "Jesus Cristo, mas o que aconteceu?"
É bem o que se perguntaram os espectadores americanos: o que aconteceu com os nossos adolescentes? O sonho parece que virou pesadelo.
"Kids" é um dia de verão na vida de um pequeno bando de adolescentes nova-iorquinos. Não são nenhuma gangue de marginais, só jovens de férias. Eles não constituem nenhum exagero, participam da banalidade cotidiana. Erram pela cidade, um deles seduz garotinhas virgens dando cantadas banais, mas eficientes, roubam uma cerveja e dois pêssegos, se drogam, nadam em uma piscina fechada, batem severamente, em grupo, num passeante que reage a suas provocações, fumam, bebem e alimentam uma fala que nunca, no dia inteiro, passa de uma litania de palavrões, mais feitos para confirmar a adesão de todos a um código comum do que para se expressar.
Uma delas acaba sabendo neste dia o resultado positivo de um teste HIV e procura o garoto que a contaminou. É este o fio narrativo.
O filme, qualificado NC 17 -proibido a menores de 17 anos, o que é comercialmente danoso para uma produção-, encontrou apesar disto um público numeroso, fascinado e perplexo. A imprensa, desde o ``The New York Times" até ``The New Yorker", passando por ``Newsweek", comentou o filme repetidamente. A dificuldade era entender por onde se dava o escândalo.
Alguns acusaram a ausência de comentário moral e a fascinação de Clark pelo tema e pela história. Mas outros notaram que justamente o consternante vazio destas vidas e o horizonte de morte apontado pela Aids constituíam um juízo moral.
Outros ainda acusaram o caráter descritivo, fotográfico do filme, seu estilo "cinéma vérité", não só pela falta de crítica da realidade filmada, mas por mostrar esta adolescência não como um momento de transição para o dia da volta ao canil, não como uma promessa, mas como ``a vida como ela é" e presumivelmente vai continuar sendo. Os clássicos filmes americanos sobre adolescência, desde "Juventude Transviada" (de Nicholas Ray, 1955), sempre insistiram sobre o caráter inadaptado do adolescente, deixando-lhe a escolha: morrer ou se tornar adulto. No filme de Clark, os adolescentes morrerão eventualmente. Mas quanto a "se tornar adultos" nem se fala. Talvez, como veremos, porque eles já sejam.
Ninguém contestou o quadro que o filme oferece dos adolescentes de classe média baixa de Nova York.
Valeu a pena perguntar para dezenas de espectadores americanos suas impressões: sempre uma sensação de evidência -"é isso mesmo!"- acompanhava um mal-estar profundo, quase um certo nojo, a irritação, o desconforto, a preocupação, a indignação. As reações eram mais vivas nas pessoas de 40 anos para cima, com filhos adolescentes. Mas, à pergunta sobre o porquê do mal-estar, respondia uma perplexidade evidente.
Os adolescentes de ``Kids", os kids -chamemos eles assim-, bebem e se drogam. E daí? Até o presidente Clinton fumou marijuana (embora afirme não ter tragado).
Eles fumam, e a gente não fumava aos 15 ou 14 anos? E quem não roubou em uma loja nesta idade? Quem não sonhou transar, ou melhor, traçar meninas na nossa adolescência? Dão uma surra coletiva em um passeante. E quem não fez grupinho de defesa e ataque com seus amigos, quem não se deliciou, sonhando com a coesão agressiva e protetora das gangues de motoqueiros?
Então, o que os kids têm de tão diferente de nós? Por que o filme nos apavora ou indigna?
Uma pergunta surda acompanha o espectador de "Kids": cadê os adultos? Sua presença no filme é irrisória: o passeante surrado, um mendigo aleijado, loucos sem casa perdidos na cidade, assistentes sanitárias anônimas, uma mãe fumando em cima de seu bebê, vidrada na televisão, um sapato paterno onde roubar dinheiro... A fala dos adultos é ausente.
A constatação, em um primeiro momento, conforta o espectador em tudo que já acredita saber. Nossos adolescentes se perderam porque não cuidamos deles como deveríamos. Entona-se a música do declínio da civilização americana. A culpa é um grande consolo: achamos os responsáveis, e somos nós.
É esta a vantagem das explicações sociológicas: a família se desagregou, nos divorciamos demais. A mulher, que entrou maciçamente no mercado do trabalho durante a guerra, gostou e continuou nele, preferindo sua afirmação social aos cuidados maternos. A corrida social se fez mais dura e os pais não têm mais tempo. Uma economia menos triunfante e mais seletiva (porque mais ávida) expõe os jovens americanos a novas dúvidas sobre seu futuro. E vai andando. Mas aqui dois problemas.
Primeiro: a relação é precária entre estas lamentadas mudanças sociais das quais seríamos responsáveis e o aumento de violência, prisões e outros extravios adolescentes. Como mostra o artigo de Gilberto Dimenstein neste Mais!, a sociedade americana não é nenhum clube de auto-ajuda. Mas, embora os números sejam impressionantes, eles não acompanham diretamente as transformações sociais lamentadas.
Segundo: o que acompanha, sim, estas transformações é nossa crescente preocupação, nossa culpa. Com a consequência que, quanto menos nos ocupamos dos kids, tanto mais nos sentimos culpados e queremos, exigimos, que eles sejam de novo felizes.
Não há dúvida que os kids escutam direito esta nossa exigência. Usam dela, aliás, para pedir indulgência, desculpa, dinheiro, liberdade. Como recusaríamos?
A dúvida é outra: será que a felicidade que eles tentam se dar (para acalmar nossa culpa) é bem aquela que gostaríamos?
Claro que não, parecem responder em massa os espectadores de "Kids". Droga, cerveja e meninas não fazem a felicidade que queremos. Observa um amigo: é uma felicidade deserta, sem cultura ou seja, com aspirações, pensamentos, projetos, complexidade. Certo, mas, se o filme nos perturba, é bem porque a vida dos kids realiza ao pé da letra, além de nossas civilizadas pretensões, um ideal de massa que é o nosso.
Perguntando-me para onde foram os adultos do filme, encontrei assim uma resposta. Me ajudou constatar que uma das críticas mais constantes do trabalho de Clark (tanto do filme como de seu trabalho anterior) acusa sua fascinação com a adolescência, como se dela nunca o autor tivesse saído apesar de seus 52 anos.
Não é difícil constatar que os fascinados pelos kids do filme somos nós. Se os adultos parecem ausentes do filme, é por estarem demasiado presentes, por serem -como Larry Clark- aqueles que sonham com esta adolescência extraviada. Os kids nos fascinam e perturbam por revelar a face crua e miserável de nosso próprio desejo.
A adolescência é sempre um momento de interrogação: qualquer kid se pergunta nesta altura o que querem os pais. Frequentemente estes acham que o kid só quer fazer o contrário do que eles desejam. Mas nunca é assim. Quer queira quer não, o kid interpreta, lê atrás das linhas, procura encontrar o desejo dos pais atrás do que eles declaram. Por exemplo, o que importa na separação dos pais e mães não é tanto a subsequente dificuldade de cuidar de crianças para mães e pais solteiros, nem as complicações intrínsecas de maternidades e paternidades adquiridas. Importa que os pais aparecem como privilegiando suas paixões amorosas e sexuais sobre a família. Que seu discurso explícito seja de respeito aos valores do lar pouco vale, comparado com a constatação de que -para eles, de fato- mais valeu procurar e seguir procurando parcerias ou encontros mais alegres. Como estranhar então que os kids vivam sexos e amores mais leves, se é esta a escolha dos pais?
Os kids lêem o desejo parental além do que os pais imaginam. E hoje, nesta leitura, eles dispõem como nunca de indícios explícitos. A simples adesão de seus pais aos valores sociais de massa destina os kids ao ideal de vida que os orienta (ou desorienta) no filme de Larry Clark.
Nos anos 60, um famoso filme de ficção científica, "O Planeta Proibido", nos apavorava com um monstro que era a pura emanação energética do desejo inconsciente de um cientista. No fim, na frente de uma porta de aço já quase fundida pela criatura, o próprio cientista, ajoelhado, gritava: "Pára, não é isso que quero", mas a energia animada por ele mesmo continuava sua obra, insensível a suas declarações e fiel ao desejo inconsciente que a animava. Os kids funcionam do mesmo jeito: insensíveis à nossa indignação e às nossas críticas explícitas, continuam certos de seguir de fato nosso desejo e realizar nossos sonhos.
É este então, aquele de "Kids", o futuro da adolescência aqui nos Estados Unidos? Seria, se a cultura de massa triunfasse, acompanhada, como sempre, pela negação explícita de seus próprios efeitos.
Nestes dias, Calvin Klein, por exemplo, teve que retirar uma campanha publicitária inteira, mórbida pelo explícito apelo ao desejo dos corpos adolescentes dos modelos. Triste episódio: tanto -do lado dos censores- pela negação obstinada da sexualidade adolescente quanto -na campanha- pelos estereótipos da sexualidade que os adolescentes eram chamados a encarnar.
Mas também nestes dias abriu ao público, na Houk Friedman Gallery de Nova York (851, Madison Ave.), uma exposição das mais recentes fotografias de Sally Mann. Emmett, Jessie e Virgínia, os modelos (e filhos) de Sally Mann, posam como caricaturas de nossos desejos: em suas atitudes, a imitação forçada de nossos sonhos é revelada (mimam, por exemplo, alguns quadros famosos de nossa galeria erótica). Eles, sobretudo, lançam para a câmera um olhar de desafio, que afirma, como no retrato dos três juntos, a vontade de vir a ser outra coisa do que a pálida e tristonha realização de nossos sonhos. Pelo olhar de Sally Mann, há esperança. Como há esperança, se a cultura americana sabe produzir "Kids" e, com Casper, se interrogar: ``O que aconteceu?".
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