Não vi "Crash", o novo filme de David Cronenberg. Aqui, nos Estados Unidos, ele ainda está lutando para uma classificação que lhe permita a distribuição em salas normais. Mas li o livro homônimo de J.G. Ballard _que de fato é um dos melhores escritores britânicos do pós-guerra, muito apreciado por Anthony Burgess (''Laranja Mecânica'')_, que está na origem do filme. E, naturalmente, percorri as páginas da Internet em que encontram-se fotografias do filme, entrevistas de Ballard e Cronenberg, mais um estranho ensaio que junta Baudelaire, Ballard e Baudrillard (deve ser por causa do ''B'' inicial). Para quem quiser ler, é só procurar, passando por Altavista: ''Ballard Crash''.
"Crash!", o livro (e parece que o filme, deste ponto de vista, é bastante fiel), me deixou com uma dupla insatisfação. A idéia, ou melhor, a fantasia que anima Ballard é ao mesmo tempo psicologicamente improvável e, lida hoje, velha, datada. O livro, aliás, é de 1973.
Por que psicologicamente improvável? A tia Adelina nem era propriamente uma tia. Ela estava naquela zona cinza na qual, em um vilarejo, parentes, amigos e conhecidos se misturam em uma espécie de extensa família. Morreu sem nunca casar e com reputação de virgem. "Coitada, Adelina, era tão religiosa... que até toalhas de mesa compridas usava, para não deixar aparecer as pernas das mesas".
Escutei esta frase, murmurada sem nenhuma intenção cômica, aos cinco anos, na tropa vociferante do enterro.
Aprendi assim que as mesas têm pernas. E concluí que as poltronas têm braços. Por isso mesmo, aliás, Adelina devia também pudicamente cobrir os braços e os encostos (as costas) das poltronas com guardanapos de renda. Descobri, enfim, que o assento era de fato o bumbum das poltronas e das cadeiras. Mas foi só uma intuição.
Muito mais tarde, sem mesmo me lembrar de Adelina, concebi o projeto de um romance que nunca escrevi: entrando em uma casa desconhecida e abandonada precipitadamente por seus habitantes, o narrador reconstruiria a presença de seus corpos e de seus gestos a partir das marcas por eles deixadas. A cena crucial era na verdade o exame da cama: o narrador poderia, examinando com atenção (e fantasia) a superfície da cama desfeita, descobrir detalhadas preferências sexuais dos habitantes desaparecidos.
Na verdade, vivemos em um mundo quase inteiramente modelado segundo as formas de nossos corpos. Além dos objetos cuja vocação é mesmo a de combinar diretamente com algum órgão nosso, como maçanetas, cabos, roupas, torneiras, penas, armas etc., todo o espaço é à medida de nossos corpos. É necessário e salutar, aliás, que a gente esqueça e acabe lidando naturalmente com os objetos cotidianos como se eles devessem suas proporções ao acaso. Como seria nossa experiência do cotidiano se a cada passo ou gesto fôssemos conscientes da pegada de outros corpos? Se cada gesto nos evocasse o encontro com outras carnes, inevitavelmente eróticas?
Seria no mínimo desconfortável ou mesmo insuportável. O que se verifica, por exemplo, cada vez que sentamos em uma poltrona ainda quente: o desconforto, quando não o nojo, é que nos afeta, afasta de nós qualquer especulação sexual. O mesmo homem que sonhará noites adentro com a redondeza de uma bunda, achará repugnante sentar num assento de cinema esquentado por uma misteriosa espectadora que o precedeu.
Em suma: o mundo dos objetos é moldado nos corpos, mas é indispensável esquecer esta propriedade. Quem se aventura a reconhecer a marca dos corpos nos objetos cotidianos e _por consequência_ a erotizá-la não consegue mais lidar nem com os objetos nem com os corpos. Acaba como tia Adelina, virgem e forçada a cobrir as pernas das mesas com toalhas despropositadamente grandes.
Freud já reparara, naturalmente, o fenômeno, afirmando que a inibição é efeito de erotização. Ou seja, quando a gente erotiza o cotidiano, acaba se inibindo em sua prática. Por exemplo: quem vê em cada letra "m" três perninhas, acaba com problemas de ortografia. A coisa vai mais longe, e é até de se perguntar se algumas impotências sexuais não são efeito justamente de uma erotização excessiva do próprio sexo. Tipo: "Estou tão excitado que não consigo".
Em "Crash!", J.G. Ballard descobriu que o carro também, como as mesas da tia Adelina, é moldado em nossos corpos, uma espécie de prótese global que se encaixa em nossas curvas, desde as mais óbvias até as mais indiscretas. Quando, em uma concessionária, experimentamos um carro novo, sentamos, pegamos a direção, verificamos que os comandos estejam não só ao alcance, mas _por assim dizer_ na proporção certa para nosso corpo. Procuramos, em suma, um encaixe corporal. Depois, evidentemente, esquecemos. Dirigir seria impossível se fosse uma aventura explicitamente erótica.
Ora, Ballard imagina que o acidente de carro seja um momento privilegiado, orgástico, no qual seria revelada ao acidentado a íntima relação entre seu corpo e o carro que ele molda e que o molda. No acidente, enfim, o corpo e o instrumento se encontram, se compenetram e de uma certa forma se fundem em um gozo novo, excepcional, uma espécie de estupro sublime, em que a complexidade do habitáculo casa finalmente com a do corpo do passageiro. E os corpos parecem por sua vez se revelar só no acidente, como se tia Adelina só acabasse sabendo de sua própria sexualidade o dia em que batesse na perna de uma mesa.
Os protagonistas do "Crash!" são prolongamentos de seus carros, ou vice-versa, pouco importa. E os carros, por sua vez, não são fetiches, mas elementos de uma máquina circulatória maior, feita de estradas que se cruzam e massas mecanizadas que se deslocam.
É um mundo fantasiado, em que intensidades de desejo erótico, sem afetos, correm a procura de um último e mortífero momento de gozo. A tentação é grande de evocar Deleuze/Guattari e Paul Virilio, e outras grandes ou pequenas referências. Mas a verdade é que o charme sinistro do livro reside sobretudo na implícita ameaça de um futuro em que teríamos abdicado nossa humanidade e gozaríamos em uma orgia maquínica e mortífera.
Talvez por isso mesmo o livro pareça velho. Não só porque o carro já não é mais a máquina destes anos (o computador seria melhor vindo para exercícios futurológicos). Não só porque Elizabeth Taylor (com quem Vaughan, o herói do livro, sonha fundir-se, acidentado) é hoje uma velha senhora. Não só porque os drive-ins fecharam, e o carro é cada vez menos um lugar de encontros eróticos. Parece velho sobretudo porque ficou velho qualquer discurso apocalíptico antitecnológico. Cansamos, ou pelo menos cansei, de ser ameaçado com a perda da humanidade cada vez que olho a televisão, acendo o computador, uso um microondas ou passo um fax.
Não sei bem por que aqui nos EUA parecem considerar o filme um pouco ousado. Ao contrário, seu efeito principal deveria ser politicamente correto, pois o que me resta de positivo da leitura do livro é sobretudo a idéia de que, apesar de cicatrizes e próteses, um corpo de acidentado pode continuar sendo desejado. O que é ótimo.
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