13 abril 1997

SEXO

. Diferenças sexuais

Sexos biológicos ainda há dois: mulher e homem. Isso, se definirmos o sexo pelos órgãos externos e a função de reprodução. Mas parece estabelecido que os órgãos sexuais externos e internos dizem pouco sobre nossa futura vida sexual.

Há alguns anos, graças aos trabalhos de Robert Stoller, existe a distinção entre sexo biológico e identidade de gênero, sendo entendido que sexo e identidade podem não corresponder. A identidade de gênero (masculino, feminino) não depende (só) do sexo biológico, mas é o resultado de uma série de fatores: desde o desejo dos pais em suas manifestações mais concretas (o jeito de tocar e de falar do corpo do nenê) até _naturalmente_ determinações biológicas mais sutis do que os órgãos externos e reprodutores. Que sexo e identidade de gênero possam não corresponder significa que é possível se viver como mulher em um corpo de homem e vice-versa.

Mas, cuidado: existir como homem ou como mulher não implica nada no que concerne ao desejo sexual. Paradoxo: se tenho um corpo de mulher, mas vivo como homem, isso não quer dizer que eu prefira desejar mulheres.

A coisa atrapalhou, por exemplo, as clínicas americanas que têm a tarefa oficial de decidir quem estaria suficientemente em discordância com seu sexo anatômico para ter direito a uma operação de mudança de sexo (biológico). Justamente, uma mulher _embora preenchendo todos os requisitos psíquicos e físicos_ não conseguiu durante dois anos a dita autorização, porque preferia desejar homens. Assim, lhe era dito: ''Mas, se você gosta de homens, por que quer se tornar homem? Não vai ser um problema?''. Ela respondia: ''Nada disso, gosto de homens e seguirei gostando como um homem homossexual''.

Complicado, mas respeitável. Então: sexo biológico é diferente de identidade de gênero, que é diferente de orientação sexual.

Nesta recente altura da discussão, florescem pesquisas para mostrar que a orientação sexual tem fundamento biológico (logicamente diferente dos órgãos sexuais externos e reprodutores).
Os resultados não são conclusivos: algumas especificidades biológicas (cerebrais, por exemplo) parecem corresponder (não mecanicamente e com amplas margens de variação) a definidas orientações sexuais. Resta saber se estas diferenças são genéricas ou então produzidas pelo próprio comportamento sexual.

O debate assume tons propriamente ideológicos. Alguns acham que justificar, por exemplo, o homoerotismo por via biológica deveria aumentar a tolerância, outros acham que o jogo não vale a aposta.

A questão, na verdade, se formula melhor de outro jeito: certamente vai ser possível encontrar diferenças biológicas (cada vez mais finas) segundo as quais dividir os seres humanos. Mas, se as diferenças encontradas são sem dúvida biológicas, as categorias segundo as quais os humanos são divididos por estas diferenças são culturais. Para maior clareza: não se trata de discutir se o homoerotismo é determinado biologicamente ou não. O problema é que, para procurar uma especificidade biológica do homoerotismo, é necessário primeiro considerar (culturalmente) que o homoerotismo seja uma categoria relevante. Daí, procura-se ver se existe ou não algum traço biológico dos homoeróticos.

Então, por mais que encontremos uma especificidade biológica do homoerotismo que seja estatisticamente significativa, resta que a divisão da sociedade sexual em homoeróticos e heteroeróticos não tem nada de biológico. Ao contrário, é uma distinção cuja existência é extremamente recente, data do século 19 (os trabalhos de Jurandir Freire Costa a este respeito são dificilmente contestáveis).

Volta-se, assim, à estaca zero: o sexo não coincide com a identidade sexual (de gênero), que por sua vez não coincide com a orientação sexual. Desta orientação talvez seja possível encontrar uma marca biológica. Mas, de qualquer forma, as categorias, os grupos que acabaremos confirmando graças a estas marcas não serão nunca ''naturais'', mas sempre decididos previamente pelo estado de nossa cultura.

Assim, se ainda subsistem as categorias que dividem a sexualidade segundo o sexo do parceiro, de fato o cotidiano as desmente. A Associação Nacional do Couro, dos EUA, abre-se aos amadores de couro de qualquer ''orientação''. O que significa reconhecer que a verdadeira orientação é o couro, não o sexo do parceiro. Paralelamente, o debate sobre o casamento homoerótico força a similitude entre maneiras de amar, independentemente do sexo dos parceiros.

Assim, o movimento ''queer'' (estranho) _embora emanação do movimento gay_ parece defender uma pluralidade indefinida de sexualidades que se definem pelas fantasias e, de novo, não pelo sexo dos parceiros.

A problemática das diferenças sexuais se transforma, neste fim de século, em uma questão sobre as próprias categorias segundo as quais se colocariam as diferenças. A coisa vai mais longe do que as orientações sexuais.

As categorias (masculino e feminino) da identidade de gênero são também discutidas: com efeito, se tenho um corpo de mulher e me sinto homem, será que minha identidade de gênero (masculina) não concorda com meu corpo de mulher ou será que _nesta contradição_ minha identidade de gênero é diferente tanto do masculino quanto do feminino? Será que o transexualismo, o ''drag'', mesmo o travestismo, não são identidades de gênero específicas, diferentes de masculino e feminino?

. Práticas sexuais
A perda de relevância da orientação sexual ou _no mínimo_ das categorias tradicionais da orientação sexual (e mesmo da identidade de gênero) é o sinal de uma mudança mais decisiva. Desde o primeiro volume da ''História da Sexualidade'', de Michel Foucault _mal recebido na época, mas a meu ver, cada vez mais influente_, já começamos a reconhecer que a própria relevância do sexo em nossas vidas, e ainda mais em nossa fala, é um fenômeno cultural moderno, e não uma descoberta de alguma ''essência'' humana que seria sexual.

Aos poucos, a modernidade nos levou a falar de nossa vida sexual, a confessá-la, contá-la e, finalmente, erigi-la em peça chave de nossa verdade mais íntima. Me diz como trepas, te direi quem és. A psicanálise foi um momento decisivo nesse processo. É possível que, como teria dito Foucault, esse novo pegajoso sexualismo fosse e seja, fundamentalmente, uma técnica do poder, ou, mais deleuzianamente, do micropoder (''Fala, que saberei como lidar contigo'').

De qualquer forma, o crepúsculo das categorias inventadas pelo mesmo poder que nos levou a falar tanto de nossa sexualidade sugere que talvez o sexo esteja perdendo seu lugar de exceção.
A orientação sexual categorizada segundo fantasias e práticas (e não segundo, por exemplo, o sexo dos parceiros) parece implicar uma relação mais pragmática com o sexo. Seminários sobre práticas sexuais, manuais para invenção de práticas novas, lojas cada vez menos sinistras e mais ''high tech'' de auxílios para a vida sexual e, enfim, até a educação sexual nas escolas não são sinais da boa saúde do sexo moderno como mestre pretensamente secreto e, de fato, tanto falado de nossa verdade íntima.

Ao contrário, o sexo _falado sim, mas pragmaticamente_ talvez não seja mais o interpretante de nossas vidas, mas só o campo de uma prática (prazerosa, se possível).

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