23 janeiro 2000

Acusação sem endereço

Acusação sem endereço


No caderno Mais! do último 9 de janeiro, João Cezar de Castro Rocha propõe algumas críticas ao meu ensaio "Do Homem Cordial ao Homem Vulgar", publicado neste mesmo caderno em 12 de dezembro de 99. Na verdade, concordo com quase todas as suas críticas, só não entendo a quem elas se endereçam. Fico olhando por cima de meu ombro para ver se há alguém atrás de mim com quem meu crítico estaria falando, pois não me reconheço no que ele parece ler em meu texto. Faço parte de uma geração que, no catálogo das boas maneiras, aprendeu a descartar o acusatório "você não entendeu" e preferir o mais humilde "não me expressei direito". Então é isso: devo ter-me expressado mal e aproveito agora para melhorar.

Herança genética
Segundo meu crítico, eu compreenderia "a cordialidade como índice de um hipotético caráter brasileiro". É engraçado: nunca desisti de mandar brasa contra a caracterologia nacional e agora acabo convencendo João Rocha de que é nisso mesmo que acredito. Eta imperfeição da linguagem humana! Dito com clareza: não acredito, nunca acreditei, nem acredito que acreditarei um dia na existência de um caráter nacional brasileiro que desceria do céu como uma herança genética ou mesmo histórica. Nenhuma brasilidade garante uma continuidade cordial atrás dos percalços da história brasileira. A cordialidade não é um traço inato da personalidade brasileira (a qual, por sua vez, não é uma entidade nem física nem metafísica). Ser cordial é um hábito (no sentido aristotélico) que resulta de um tipo dominante de relações sociais. Portanto a sociedade brasileira não é o efeito de nossa congênita cordialidade. Ao contrário, podemos nos servir da cordialidade para descrever de maneira colorida e sensível as formas de vida que resultam de uma organização social em que (resumindo) a ordem privada se impõe à ordem pública. Não sei por que Rocha também considera que a cordialidade seria para mim só brasileira ou que eu compreenderia Sergio Buarque "exclusivamente como uma interpretação da formação social brasileira", negligenciando a relevância teórica de suas análises. Sigo olhando por cima de meu ombro esquerdo e direito: ninguém, então é comigo mesmo. Mas não vejo de onde essa impressão chega até meu crítico. Talvez seja porque tenho a reputação de nunca ter viajado fora do Brasil. Bom, trégua de ironia: o hábito da cordialidade resulta de uma configuração social que é banal.

Máfia e mortadela
No quadro limitado e ("hélas!", relativamente) breve de minha vida já me deparei com algo análogo: foi na Itália, no pós-guerra. A mesma herança de um mundo rural que o fascismo não mudou. A mesma constituição dos traços "cordiais" em uma espécie de fetiche (o termo de Teresa Sales é insubstituível) nacional. Em vez de carnaval, samba e futebol, na Itália foi mandolina, pizza, mortadela, máfia, "mare chiaro" e "sole mio". Curiosamente, quando o milagre dos anos 50 e 60 impôs uma modernização política e produtiva, as elites também evoluíram para a vulgaridade (que tampouco é uma prerrogativa do espírito brasileiro). O ensaio trata do Brasil de hoje e descreve uma transição social que poderia ser apresentada em termos suficientemente abstratos para fazer feliz qualquer weberiano. Melhor ainda, ela poderia facilmente ser encontrada em outros momentos e lugares. No Brasil de hoje, como na Itália do milagre, a vulgaridade acontece quando uma modalidade moderna da divisão social e do exercício do poder é adotada pelas elites sem que o tecido social se altere em consequência. Mais especificamente, a vulgaridade acontece quando a ostentação -peça-chave da organização social moderna- é acatada sem seu corolário de mobilidade social. A ostentação perde assim sua função de alimentar a inveja generalizada como motor da competição e, portanto, do desenvolvimento. Ela se torna a caricatura ou o travesti de uma forma arcaica de opressão. Não é difícil entrever que essa conjuntura é tão banal quanto o fato de que as elites da periferia do neoliberalismo se globalizam facilmente sem renunciar às formas (eventualmente arcaicas) de domínio que garantem seus privilégios.

Brutalidade abstrata
Enfim, entre João Rocha e eu há pelo menos um ponto de discordância, sem mal-entendido. Meu crítico se surpreende que, na conclusão do ensaio, eu aposte numa cordialidade brasileira anterior à vulgaridade. Nessa esperança, ele vê mais uma complacência em relação à brasilidade que não existe.

Ora, sem fascínio pelo fetiche do caráter nacional e sem saudosismo, parece-me possível desejar que resíduos da formação social nacional permaneçam como hábito de comportamento e, quem sabe, aliviem a brutalidade abstrata que a modernização globalizada promete a todos.
É possível que, como escreve Carlos Drummond, citado por meu crítico, "os brasileiros" não existam. Razão a mais para tentar inventá-los direito. Como nenhuma invenção se faz a partir de zero, se der para escolher, gostaria delevar para o futuro um pouco da "cordialidade generosa" do povo que eu evocava -confesso, sim, com ternura e simpatia- no fim de meu ensaio.

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