Leio as estatísticas recentes da epidemia da Aids nos EUA. Aparece uma desproporção: 52% dos homens que se contaminam por práticas homoeróticas são hoje negros ou latinos.
Aparentemente os programas de prevenção não funcionaram com os membros dessas minorias. Segundo os comentários, a culpa estaria nas diferenças culturais: negros e latinos bissexuais se consideram heterossexuais e acham que essa história não é com eles. A explicação faz sentido, mas fico com a impressão de que negros e latinos se cuidam menos também por serem aqui minorias desfavorecidas.
Há outras realidades em sintonia com essa impressão. Por exemplo, o cigarro: entre os que não largam, os pobres são os mais numerosos. Aliás, as companhias de tabaco agradecem ao Terceiro Mundo, que é menos sensível às campanhas contra o fumo. A mesma coisa vale para os hábitos alimentares e outras práticas saudáveis ou, ainda, para o respeito às regras do trânsito etc. Parece existir uma proporção inversa entre cuidado com a vida e com a pobreza: não vale a pena se apegar à vida pobre. É uma lógica chata, com um pressuposto incômodo: a vida que merece ser vivida seria a de brancos classe A, com conta no banco e futuro garantido.
Os outros não têm por que se preservar. Por mais que esse argumento seja corriqueiro, há uma velha piada que diz o contrário, ou seja, que a vida sem excessos nunca vale a pena. Esse chiste acompanha há mais de um século os avanços dos ditados da boa saúde. Sua mola cômica é a seguinte: as condutas saudáveis podem prolongar a vida, mas a gente não sabe mais direito se a vida, uma vez limitada ou organizada por essas condutas, ainda vale a pena.
Ou seja, se não posso cometer nenhum excesso, por que viver tanto? Nos anos 50, quando Baco, tabaco e Vênus eram estigmatizados como inimigos da saúde, ríamos de uma cumplicidade implícita na transgressão: podem falar, mas não vamos parar por isso. Ultimamente, essas piadas perderam a graça porque não há mais cumplicidade implícita que nos faça rir. Aceitamos a prescrição: você precisa mesmo parar com os excessos. Parece que o ideal de vida não é mais uma aventurosa queima de forças e paixões, mas uma espécie de repetida vacina contra a morte.
Os excessos, que consomem a linfa, ficam com os pobres que podem se dar a esse luxo por não ter nada a perder. É a versão contemporânea da história hegeliana do mestre e do escravo. Para Hegel, o mestre clássico era aquele corajoso cavalheiro que desafiava a morte, pois não fazia de sua sobrevida um valor essencial. O escravo era, ao contrário, aquele que preferia sobreviver. O mestre procurava ocasiões para mostrar a sua valentia. O escravo trabalhava. O mestre defendia o escravo com sua espada, mas lhe devia a sua subsistência. Hegel antevia que, com isso, o mestre perderia a capacidade de plantar, fabricar, produzir etc.
Um belo dia, ele estaria tão alienado do mundo que o escravo acabaria tomando posse. As coisas não foram por esse lado. O escravo não se apoderou da produção. Mas talvez a previsão de Hegel não estivesse de todo errada, pois está acontecendo outra coisa parecida. O mestre achou graça nos privilégios de seu status e parou de desafiar a morte. Aliás, ele não quer nem ouvir falar em morrer.
Ao contrário, passa seu dia se preocupando com o que se preservar. Sua definição da vida é a prevenção do risco e da doença. Emaciado devido aos regimes, abstratamente exercitado por bicicletas e esteiras que não vão a lugar nenhum, adverso à promiscuidade, incerto entre preservativo, masturbação e abstinência, ele é uma figura triste: um parcimonioso de si mesmo.
De tanto se preocupar em sobreviver, talvez ele esteja perdendo a capacidade de gozar. O escravo poderia ficar com o prazer de viver, pois, por ter pouco ou nada a perder, talvez ele se aventurasse a gozar a vida como um bem que poderia ser gasto. As coisas ainda não chegam a tanto, até porque é difícil o escravo gozar a vida sem comida no prato.
Mesmo assim, o mestre se antecipa e já inveja esse escravo que se permite perigosos e proibidos prazeres. Nos desfiles de Paris da semana passada, Dior apresentou uma coleção costurada de trapos e de imitação de jornais velhos, tentando vestir as modelos como sem-tetos nas ruas da cidade. Como conhecer o "frisson" da vida escrava sem perder a bússola? Simples: US$ 25 mil compram uma roupinha de sem-teto. Mais baratas, mas não de graça, são as calças da Calvin Klein, tratadas para parecer sujas.
Nada de novo. Afinal, pobre se mata nos guetos, e rico tenta imitá-lo com paintball e video game. Pobre se perde na cracolândia, e rico cheira uma coca social no sábado à noite. Sugestão para alguma agência de turismo: por que não propor um fim-de-semana em barraco de favela autêntico, com tiroteio garantido? P.S.: Para evitar um mal-entendido: parei de fumar, não como gordura e desaconselho promiscuidade sem camisinha. Mas me consterna a idéia de que se manter em vida esteja se tornando a principal razão de viver.
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