15 junho 2000

O insustentável peso das palavras e das imagens




Em outubro de 1997, em Cambridge, um menino de 10 anos, Jeffrey Curley, foi estuprado e assassinado por dois homens. Ambos estão hoje condenados e presos. Espera-se que a chave seja esquecida de vez.

O caso volta para a crônica porque os pais de Jeffrey entraram na Justiça com uma ação civil contra a Nambla (traduzindo: Associação Norte-Americana para o Amor entre Homens e Meninos) e seus animadores.

A queixa dos pais de Jeffrey obriga a pensar seriamente numa questão hoje crucial: qual é a responsabilidade das palavras e das imagens públicas que parecem inspirar um crime?
Numa manhã chuvosa, que condizia com a tétrica lembrança dos fatos, fui até a corte federal de Boston para ler o texto da queixa da família Curley.

Ela alega que Charles Jaynes, o principal algoz de Jeffrey, "se tornou obcecado pela idéia de fazer sexo com meninos e de estuprá-los, como resultado direto e próximo da instigação e da promoção da atividade pedófila pela Nambla".

Foi como resultado da mesma instigação que Jaynes abordou o menino e "torturou, assassinou e mutilou o corpo de Jeffrey Curley". Tanto Jaynes quanto seu cúmplice possuíam material da Nambla. Jaynes tinha recentemente se inscrito na associação.

Detalhe sinistro: "Imediatamente antes do ato, Charles Jaynes teve acesso ao site da Nambla na Internet a partir da Biblioteca Pública de Boston". Como se procurasse uma última confirmação.
A queixa apresenta algumas publicações da Nambla para mostrar que esta encoraja seus membros "a estuprar meninos".

A associação pretende oficialmente promover o amor "consensual" entre homens e meninos. Mas os documentos exalam mesmo uma hipocrisia irrespirável.

Se você tiver estômago, considere esta citação que planeja uma expedição nos bosques com os meninos -se não tiver, pule este fim de parágrafo: "Aí queremos levá-los para a barraca e beijá-los e abraçá-los e acariciá-los e fodê-los e sentir seus pequenos corpos quentes fremir de prazer sexual".

A Nambla não inspira simpatia. Isso me ajuda a evitar a facilidade. Em geral, nas discussões sobre a responsabilidade criminal de imagens e de idéias que circulam na cultura e na mídia, é fácil defender a liberdade de expressão.

No caso, os animadores da Nambla não são necessariamente estupradores. Mesmo que eles façam a apologia do estupro e que sua vida sexual seja feita de masturbações com fantasias de estupro, a apologia do crime não é o próprio crime.

Além disso, agita-se como um espantalho a idéia de que estender a responsabilidade até os hipotéticos instigadores seria um pretexto para o exercício ilimitado da censura.

Por esse caminho, por exemplo, por que, junto com o Unabomber, não seriam perseguidos os professores de Harvard que, nos anos 60, formaram a ideologia antitecnológica radical do terrorista americano?

Ou, então, se de repente nas praças brasileiras chover não só ovos, mas tiros, será que quem hoje defende a necessidade da luta armada seria perseguido ao mesmo título do que o atirador? Queremos esse tipo de repressão? Claro que não.

Mas importa, enfim, admitir que as palavras e as imagens da mídia e da cultura influenciam pesadamente nossos atos.

Jaynes, até descobrir a Nambla, não manifestara nenhuma de suas fantasias. O encontro com essa associação lhe permitiu transformar fantasias até então silenciosas em planos e atos. De alguma forma, autorizou desejos que talvez ele nem admitisse para si mesmo.

Mas como? Pois bem, contrariamente ao que aparece em nossas frequentes lamentações, nós, modernos, dispomos de uma moral comum bem compartilhada. Concordamos facilmente sobre o que é certo ou errado. E o fundamento desta moral comum somos nós mesmos, nosso diálogo, nossa comunidade.

Por exemplo, estuprar meninos é errado porque concordamos que é. Não porque assim diria alguma autoridade acima da gente.

Nesta situação, em que a comunidade é a fonte da autoridade moral, é suficiente que uma opção ou uma conduta tenha destaque público para que ganhe alguma forma de legitimidade com isso.
Se algo está no cinema, na televisão, na Internet ou na imprensa, se está entre nós, se faz parte de nosso diálogo público, então tem algum direito de cidadania.

Que uma fantasia, uma conduta ou um desejo possam ser ditos, narrados ou defendidos publicamente, é suficiente para autorizá-los. Na cara perplexa de cada menor preso por homicídio, por exemplo, leio esta pergunta: "Mas não era isso que vocês gostavam de olhar na TV ou no cinema?".

E Jaynes, naquela última visita ao site da Nambla, pode ter pensado: "Pois é, se a Nambla está na Net, então dá para estuprar meninos, pois estuprar meninos é do nosso mundo".
Eu gostaria de um mundo onde todos, até os sinistros membros da Nambla, pudessem, no respeito da lei, trocar suas fantasias como figurinhas.

Mas também onde Jeffrey ainda pedalasse sua bicicleta tranquilo, porque nada encorajaria dois desgraçados a realizar suas fantasias até então inconfessáveis.

É uma contradição difícil. Talvez sem solução.

Um comentário:

  1. Não conheço a NAMBLA e também creio que o autor deste blog não a conheça; fazer juízo de valores sobre o que não se conhece me soa um tanto preconceituoso.

    ResponderExcluir