11 junho 2000

Uma elite funcional

Os "bobos", com o conjunto de sua ideologia social ecologista, progressista e tolerante, são os responsáveis pelo extraordinário sucesso da economia americana na última década

Se fecho os olhos e penso nas elites americanas, duas caricaturas me afligem imediatamente. A primeira é a cara de J.P. Morgan, com suas suíças e seu nariz excessivo. Mas poderia ser um Vanderbilt ou um Rockefeller: qualquer um dos plutocratas que, na virada do século 19, constituíram-se em uma verdadeira aristocracia do dinheiro. São os protagonistas da "Idade da Inocência", de Edith Wharton, que competiam à força de "cottages" monstruosos e suntuosos em Newport ou nas colinas ao norte de Nova York. É neles que pensava Thorstein Veblen, descrevendo uma elite que afirmava e mantinha seu poder pela ostentação de sua (incrível) riqueza.

Os colarinhos afrouxaram, surgiram novos nomes, alguns se mataram em 1929, a ostentação se acalmou um pouco, mas, até três décadas atrás, substancialmente, a elite americana continuava a mesma. Nesse período, seu traço mais notável foi a disposição para dividir um pouco o bolo, inventando um capitalismo que, para garantir o crescimento, aposta no consumo de todos.

Caricatura apavorante
De repente, chega uma segunda caricatura, apavorante. Poderia ser o protagonista de "American Psycho" ou qualquer yuppie dos anos 80. Não é um plutocrata. É muito pior: trata-se de alguém que tenta desesperadamente compor a imagem de um plutocrata.

Sua vida e seu consumo têm, como única finalidade, a demonstração e confirmação de seu status. Veblen teria gostado do yuppie ainda mais do que de J.P. Morgan. Como então, no espaço de dez anos, foi possível passar de uma elite aristocrática constituída e fechada à cafonice arrivista do yuppismo dos anos da Presidência Reagan? Uma explicação consiste em pensar que tudo aconteceu por causa de uma brincadeira dos intelectuais e acadêmicos que, a partir dos anos 60, decidiram se vingar do proverbial antiintelectualismo dos plutocratas americanos. Um belo dia, eles mudaram os critérios de admissão das grandes universidades. Estas, até então, eram internatos onde os rebentos das "boas famílias" passavam o tempo necessário para selar as amizades e os contatos que lhes seriam úteis mais tarde. Eram, em suma, clubes mirins.

De repente, tornaram-se instituições meritocráticas, oferecendo uma educação de verdade a estudantes selecionados não por via hereditária, mas por sérios e complexos exames de admissão. Os yuppies foram uma consequência imediata, temporária e pouco interessante dessa mudança. E foram apenas um parêntese. Inseguros por serem a primeira leva de elites meritocráticas, eles não souberam inventar nada, mas ficaram com a estúpida ambição de se parecerem com os plutocratas precedentes. Ou de emulá-los. Levaram um tempo debatendo qual seria o relógio, o carro, a camisa e o restaurante certos para isso. E já quase não existem mais.

Agora, chega a terceira e mais recente versão das elites americanas: uma elite culta, descontraída, "cool". É essa que David Brooks descreve com muito brilho em seu livro. São os "bobos", que realizam o projeto meritocrático do qual os yuppies foram apenas um percalço. Os "bobos" eram esperados e indispensáveis. Esperados por quê? Afinal, é difícil acreditar que a mudança nas elites americanas seja apenas o fruto da frustração de acadêmicos que, para se fazer de importantes, se deram o direito de selecionar candidatos aos estudos superiores. O pós-guerra enriqueceu os americanos de todas as classes, criando um consumo de massa inédito.

Muito cedo, já nos anos 50, o marketing americano desconfiou dessa massificação, antevendo que dificilmente ela poderia sustentar para sempre os desejos dos consumidores. Com a ajuda da contracultura, Madison Avenue produziu e promoveu então um ideal de consumo oposto à massificação. Por isso, a partir dos anos 60, consumir não é mais nem tanto uma maneira de ser como os outros, de integrar uma classe social ou de adquirir status. Consumir, ao contrário, é apresentado como uma tarefa mais nobre, autêntica e quase espiritual: é o processo de invenção e produção de nossa singularidade, de nossa diferença.

A busca de auto-realização
Ora, para que essa visão do consumo triunfasse e viesse garantir um crescimento econômico que está hoje em seu auge era necessário uma elite que propusesse ideais mais complexos e variados do que festas à la "Great Gatsby" ou ternos sob medida de Paul Stuart. Os "bobos" respondem a essa exigência: eles se apresentam como uma elite que persegue não simplesmente riqueza ou status, mas sobretudo auto-realização.

O termo inventado por Brooks para descrevê-los -contração de burguês e boêmio- indica que eles pretendem resolver de vez o antigo dilema da alienação, conciliando sucesso financeiro e social com os valores existenciais mais sublimes (o português frustra um pouco essa aspiração dando a "bobo" um sentido provavelmente merecido, mas ausente em inglês).

Já nos séculos 16 e 17 as elites européias começam a se perguntar se no fundo os índios (brasileiros, por exemplo) não teriam o segredo da vida boa. No século 19, com os românticos, aos índios acrescentam-se os pobres. Wordsworth afirmava corajosamente que "os homens mal vestidos são suscetíveis a profundos sentimentos". De lá a perguntar se os maltrapilhos não vivem uma vida melhor do que os ricos há apenas um passo.

Em suma, a elite capitalista, mesmo em suas versões mais sinistras, sempre se perguntou se, acumulando dinheiro e riqueza, ela não estava perdendo algo essencial: algum prazer, algum saber ou mesmo algum sentido recôndito da existência.

Aliás, essa dúvida é responsável pela simpatia que ainda inspiramos ao olhar exótico das elites dos países ditos desenvolvidos. Por sermos índios e pobres, aparecemos facilmente como maltrapilhos dançarinos e primitivos que poderiam conhecer segredos essenciais da existência. Segundo o caso: o segredo do gozo da vida -escondido no fundo dos copos de carnavalescas caipirinhas- ou então o segredo do perfeito acordo com a natureza -escondido no saber iniciático de curandeiros amazônicos.

Seja como for, os "bobos" resolvem essa dúvida professando que o trabalho é para eles expressão íntima, vocação, arte. Em todo caso, ele é parte integrante de uma vida concebida como eterno esforço de aprender, conhecer, melhorar. Com isso e com o conjunto de sua ideologia social ecologista, higienista, progressista e tolerante, os "bobos" são a elite responsável pelo extraordinário sucesso da economia americana nesta última década. E o "bobismo" é a filosofia de "management" do momento -a mais bem adaptada à nova economia.

Por isso, é normal que os "bobos" sejam fundamentalmente americanos, eventualmente um pouco europeus e certamente não-brasileiros. Traços de ideologia "boba" circulam entre nós como modismos. Mas nosso capitalismo não está pronto para os "bobos". Ainda não negociamos o acesso a um consumo de massa e podemos, portanto, nos contentar com elites plutocráticas.

Estas podem eventualmente ser metidas a "bobos". Mais frequentemente, pelo atraso que sempre se dá na dinâmica do estrangeirismo, elas são hoje compostas por plutocratas metidos a yuppies. O que as torna especialmente caricaturais.

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