30 março 2000

O álibi do mar de lama

Pitta vai e Pitta vem. Maluf sujou, mas quer voltar para limpar. Também houve vereadores cassados e presos, mas (a menos que se confunda com Jânio Quadros em algum delírio) será que alguém acredita mesmo que conseguimos passar uma vassoura? Perguntem para o presidente da Associação dos Camelôs Independentes de São Paulo...

As notícias se sucedem e mal conseguem se organizar em um parágrafo com pé e cabeça.
Enfim, a metáfora do mar de lama segue atual e quase perfeita.

A lama é enganadora: quem se ilude achando poder pisá-la como se nada fosse logo perde os sapatos, chupados pela viscosidade melequenta; no segundo passo, lá se vão as meias, e, no terceiro, o sujeito começa a afundar. Para flutuar e se salvar, é necessário se deitar, se esticar numa espécie de abraço impossível de se preservar limpo. Ou seja, a moral é: "te enlameia ou afoga". A única outra possibilidade consiste em manter-se afastado de qualquer pântano. Ou seja, "esqueça a vida pública e fique rigorosamente na tua".

Pela virtude de sua consistência líquida, o mar de lama extravasa, transborda e acaba preenchendo a maior parte do globo, tornando-se assim um espaço privilegiado de trocas e contatos mundiais: a lama é cosmopolita e globalizada.

Por mais que eu viaje, esse mar é uma presença inevitável, banha todos os países. A lama estava por todo lado na Itália do pós-guerra. Mais ou menos vistosa, estava também na Suíça, na França e nos Estados Unidos.

Qualquer americano sabe que os custos astronômicos das campanhas eleitorais constituem um dos ambientes no qual a lama vive e se reproduz melhor. Ora, embora ele tenha perdido, a campanha de John McCain para ser escolhido como candidato republicano à Presidência foi surpreendentemente forte e significativa. Mas essa façanha foi possível graças ao caráter de McCain, ao seu passado heróico e à sua moderação: o cavalo-de-batalha de sua campanha -o projeto de reforma do financiamento das campanhas eleitorais- ficou na sombra. Ou seja, todos os eleitores democratas e republicanos parecem achar que é uma necessidade absoluta, uma questão de saneamento básico da vida pública. Mas não se entusiasmaram com isso. Reagiram, simplesmente, como se não acreditassem.

Talvez seja melhor ceder ao cansaço, devolver as armas e, sem vãs indignações e agitações, aceitar enfim que no mundo ocidental inteiro a lama tornou-se parte da paisagem. Ela está naturalizada, um apêndice mais ou menos inflamado, mas sempre inoperável da modernidade democrática. Ninguém acredita que seja possível moralizar a vida pública.

Na semana retrasada em São Paulo, peguei quatro táxis numa mesma tarde. Logicamente, conversamos sobre lama e enchentes. Todos os motoristas se declararam antimalufistas. Coisa impensável três anos atrás.

Mas as quatro conversas acabaram todas numa forma de ceticismo resignado do qual eu mesmo participei. Não era o antigo cinismo de "deixa ele, pois rouba, mas faz". Era assim: "Se ele rouba, então afasta ele, tenta até prender. Mas não esquenta: fica sem ilusões que não tem jeito". A lama é como a bolha assassina, não há como pará-la.

No fim de cada uma das quatro conversas, resultava o seguinte: a lama sufocou nossas esperanças, enterrou nossas ingenuidades corajosas. De decepção em decepção, perdemos a confiança. Agora só não entramos na dança (tipo: "olha, eu vou roubar, pois quem não rouba é trouxa") porque somos do bem. Então pegamos nossa bola e voltamos para casa: aqui não jogo não, está sujo demais, vou cuidar do meu jardim.

Em suma, a lama justifica nosso particularismo, a fraqueza de nossos engajamentos políticos e mesmo a mediocridade de nosso sentimento cívico.

A lama é uma desculpa moral, um álibi perfeito -uma verdadeira racionalização chamada a justificar nossa desistência cívica. Se a lama não existisse, precisaria inventá-la. Pitta, Maluf, os vereadores etc. não nos tornaram inertes e egoístas por excitar nosso ceticismo. Ao contrário: somos inertes e egoístas e -graças a Pitta, Maluf e companhia- podemos acusar a lama.

Suspeito que ainda não tenhamos conseguido assimilar completamente a virada dos anos 70, quando começou a ficar claro (permita a ironia) que os ideais sociais e políticos eram critérios incertos demais para orientar nossas vidas. Aliás, eles alimentavam discussões e discórdias intermináveis. Agora as coisas estão bem melhor: todos concordamos facilmente que nosso bem-estar individual físico, psíquico e financeiro merece ser o farol de nossas existências. É o sonho de Adam Smith realizado: cada um pensa em si mesmo, e, oh, milagre!, todos concordam (que é ótimo pensar em si mesmos)

Mas essa é uma novidade de duas ou três décadas apenas. De vez em quando, alguma nostalgia das quimeras do bem comum ainda deve trotar por nossos cérebros. Quando isso acontece, é bom matar logo qualquer veleidade política, pensando em Maluf, em Pitta ou na Câmara de vereadores. E concluir que é melhor mesmo ficar em casa, pois a lama respinga.

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