Quarta-feira, nas comunidades brasileiras dos EUA, é o dia em que chegam as fitas da Globo: a semana de novela das oito ou das sete, o resumo do "Jornal Nacional" e os seriados.
Os capítulos das novelas são gravados sem propaganda. Acelerando títulos, retomadas e diálogos repetitivos, um espectador bem treinado assiste a uma semana de novela em duas horas. Nesse processo, aliás, a novela se enxuga e ganha, como se recebesse uma editoração final.
Passo na minha loja brasileira preferida, Terra Brasilis, em Brookline, e pego a dose semanal de "Terra Nostra". Por coincidência, acabo de comprar "The Arcades Project", de Walter Benjamin (Harvard University Press). É a tradução das notas que Benjamin deixou na Biblioteca Nacional de Paris quando, em 1940, fugiu da França invadida pelos nazistas, foi detido na fronteira da Espanha e acabou se suicidando.
Acidentalmente, o volume fica sobre o balcão da loja, junto com a última fita de "Terra Nostra". Os dois objetos parecem compor uma metáfora surrealista. De um lado, mil páginas de fragmentos, fichas, reflexões e citações, uma sublime polifonia filosófica sobre a sociedade moderna. Do outro, um produto televisivo, que certamente Adorno e Horkheimer -outros filósofos da escola de Frankfurt- teriam desprezado como dejeto da "indústria cultural".
O fato é que gosto dos dois. Sou muito feliz por ir para casa com meus dois pacotes.
Preciso esclarecer: assisto "Terra Nostra" sem pretextos. Não planejo nenhum pós-doutoramento sobre a Rede Globo e a ideologia da classe média brasileira. Nada disso. Se fico um tempo com Gumercindo, Francesco, Paola, Giuliana, Matteo etc., não é na esperança de surpreender um novo aspecto da cultura de massa. Ao contrário, faço parte da massa: gosto de seguir a história, gritar de horror contra a pérfida dona Janete ou exortar José Alceu a aceitar, enfim, Antenor como pai. Torço e comento com amigos e parentes.
Aliás, esta é a façanha das (melhores) novelas: invadem a conversa cotidiana, mobilizam afetos, crenças e opiniões, ou seja, elas nos transformam no coro de uma tragédia grega. Impondo-nos esse exercício, elas enriquecem ou mesmo inventam nossa cultura popular. E a cultura popular é o conjunto (grande ou pequeno) das verdadeiras razões pelas quais temos um destino comum como povo: mitos, lendas, histórias que compartilhamos.
"Terra Nostra" não puxa as lágrimas só no Brás ou na Mooca. A coragem, as penas e as alegrias da imigração italiana em São Paulo valorizam para todos a narrativa da cidade, do Estado e, enfim, do Brasil. Em suma, "Terra Nostra" torna essa terra "nossa" para todos os brasileiros.
Ora, eu gosto de Benedito Ruy Barbosa e de Benjamin no mesmo dia, sem problema e sem dilemas. A contradição vem de fora, dos vários Adornos que policiam as ruas da cultura. Perguntam-me: se você se deixa seduzir, como você mantém sua distância crítica, como se guarda das armadilhas "made in Globo"?
Ocorre-me que essas eram também as objeções que Benjamin recebia de Adorno. Benjamin queria escrever sobre as "arcades", ou seja, as passagens ou galerias de lojas onde, na Paris do século 19, as mercadorias se propuseram pela primeira vez como o verdadeiro arcano da modernidade. A variedade dos objetos oferecidos e dos passeantes descobrindo o prazer das compras lhe pareciam compor um rébus cuja solução diria quem somos hoje.
Ora, para Adorno já devia ser problemático que Benjamin procurasse a verdade do mundo moderno na fantasmagoria do consumo, e não na porta das fábricas. Pior ainda que ele desse mais importância aos sonhos dos modernos lambendo vitrines do que às condições reais de existência no mundo industrializado. E devia parecer catastrófico que Benjamin fosse ele mesmo um sonhador, "flâneur" sonâmbulo, seduzido pela cidade e as luzes das lojas.
Por pressuposto (dos Adornos), a massa, seja ela de telespectadores ou de consumidores, é alienada. E, para salvá-la (tarefa nobre), é necessário, primeiro, sair dela.
Ora, reivindico o direito de pensar sem me excluir da massa. Escrevo esta coluna para conquistar o direito de falar de "Terra Nostra" sem encontrar o sorriso de comiseração dos amigos intelectuais.
Pergunta: por que será que a partir do século 18 pensar passou a exigir um desprezo do comum? Logo quando caem as barreiras de casta do antigo regime, quando a igualdade de direitos ameaça pôr fim aos privilégios, eis que a inteligência promete um novo privilégio: uma aristocracia de gostos e de saberes. Curioso, não é?
P.S.: Os críticos americanos que escrevem nestes dias sobre o livro de Benjamin perguntam ironicamente: "Meu Deus, o que Benjamin diria dos shopping centers de hoje?". Subentendido: ficaria horrorizado, ele que apreciava as elegantes "arcades" de Paris. Tentam, em suma, adornizar Benjamin. Ora, eu acredito que ele se perderia em nossos shoppings como nas "arcades" de Paris.
Pois ele seguiria achando que são esses os lugares onde se desdobra a complexidade sedutora de nosso mundo.
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