09 março 2000

Viva o Carnaval na Sapucaí

A Sapucaí tem um lado cruel. Na avenida não há ninguém para editar piedosamente as imagens.

Impossível não ver o apoio de destaque e harmonia ou os empurradores atrás dos carros alegóricos. Os diretores de ala puxam, empurram, mandam parar ou correr. Há fantasias que se desfazem antes da hora. Aquele lá perdeu um sapato. Outro foi para a avenida com um tênis preto que destoa e brilha no meio das sandálias douradas. Aí há dois que, em vez de sambar, não param de conversar.

As mulheres e os homens mais bonitos, nus, ou quase, no destaque, enchem a tela da televisão. O telespectador pode imaginar que os corpos de todos sejam formosos e apetecíveis. Mas na Sapucaí, de perto, entre as lantejoulas, aparecem muitas carnes brancas e trêmulas, um pouco enjoativas.

Em suma, pode surgir uma dúvida: não era melhor na TV, tudo bonito, tudo aparentemente espontâneo, um milagre de alegria, sem falhas e sem erros?

Há quem ache isso mesmo. Tarde na noite de domingo, num camarote, há três homens (turistas) e três meninas. Enquanto as meninas sambam, um dos homens, bêbado, deitado no chão, contempla na TV a versão Globo do desfile que está passando logo atrás dele. Os dois restantes preferem fazer sua própria edição. Um olha para a avenida pela telinha de sua videocâmara. Ele prepara a versão uso família: nudez permitida, mas sem provocações. O outro prepara a versão dura: só fotografa as mulheres que respondem obscenamente às suas tentativas (eficazes, aliás) de chamar a atenção.

Afinal, eles estão vivendo um bom momento, quem sabe um sonho. Por que não editá-lo na hora? Na mesma linha, não me estranharia que, um dia destes, um prefeito do Rio colocasse telões gigantes no sambódromo para que possamos, estando na Sapucaí, ver nossa alegria já editada e, portanto (dirão), mais perfeita.

Na fila para comprar os ingressos para o baile do Scala, um jovem quer o baile de sábado, que é o bom. Cinquenta reais é muito, ele diz, mas desta vez ele vai, seja qual for o preço. Confessa: "Não aguento mais ver isto só na televisão".

Ele não vai se decepcionar. Afinal, está já com a experiência editada por anos de Scala na TV. Sua lembrança será igual a seu sonho televisual acumulado, mais a certeza de que ele esteve lá de verdade.

Mas voltemos à Sapucaí. O milagre é que a avenida ganha da TV. Gosto das imperfeições, dos ventres moles, dos sambas de pato bêbado e das fantasias quebradas. É isso que me comove. Reconheço-me no esforço de todos justamente porque é um esforço heróico, obstinado e fracassado.

Mas de qual esforço estou falando?

Sábado à noite, desfilando na avenida, às vezes a harmonia enfraquece, a mágica parece estar prestes a se desfazer. Aprendo logo que o remédio é levantar os braços e os olhos para a arquibancada ou os camarotes, pedindo um retorno: dancem, se mexam, se empolguem conosco.
Nas noites seguintes, como espectador, verifico que é difícil recusar este apelo. Uma vez encontrado um olhar lá embaixo, fica impossível não sacudir e acompanhar. O samba é de todos, porque é de todos o esforço de se ver felizes. É para isso que serve o desfile: a arquibancada se vê na escola e a escola se vê na arquibancada. Juntas se confirmam na vontade de alegria.

Afinal, todos precisamos nos ver de alguma forma. Isso pede invenção e manutenção. O Carnaval é como a malhação anual coletiva necessária para manter a imagem, o "look" que a gente quer. E a imagem aqui na Sapucaí é honesta: não é alegria televisiva ou babaca. Ao contrário, é a própria imagem do esforço que custa passar pela vida mantendo o sorriso e o samba no pé.

Ninguém aqui confunde a fantasia com a roupa de cada dia e todos sabem que a fantasia é imperfeita e embaraçosa.

Há outras maneiras de ver, certamente. As mais patéticas são as que tentam passar por outra coisa que não fantasias.

Por exemplo, alguns anos atrás, um psicanalista francês passou o Carnaval no Rio. De volta à França, declarou a uma assembléia admirativa que o Carnaval carioca era, como ele se expressou, "uma experiência de gozo especular". Até aí tudo bem.

Mas era óbvio, na fala, um desprezo para os índios que gostam de ser alegres e de se olhar nesta alegria. Na verdade o desprezo era pelo simples fato de os índios gostarem de se olhar - ponto. Subentendido: "A gente aqui em Paris não brinca com espelhinhos; a gente nem precisa se ver; a gente, aliás, prefere ser do que se ver". O engraçado é que ele falava numa situação absolutamente parecida com a Sapucaí: ele falava e sua arquibancada só queria se espelhar nele. A única diferença é que, naquele caso, todos queriam se ver não alegres e felizes, mas metidos a besta. Conseguiam muito bem.

Breves:
Por que a bandeira estampada em camiseta ou sutiã pode, mas desenhada no corpo não pode?
Adorei Roberta Close como símbolo da liberdade de escolha. São as verdadeiras "Diretas Já".
As impressões de Carnaval são como um bloco que deveria se chamar A Cada Ano Sai Diferente.

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