Elián González é o menino cubano que perdeu a mãe no naufrágio do barco que o levava à Flórida. Os parentes e a comunidade cubano-americana de Miami querem que ele fique nos EUA. O pai quer que ele volte a Cuba.
Passei por várias fases. Uma fase pró-cubanos de Miami, na qual desconfiava do pai. Pedindo o filho de volta e falando para a pátria ultrajada, ele não estava sendo coagido por Fidel?
Depois, houve a fase indignada com o pós-feminismo: parecia-me evidente que, se fosse o inverso, ou seja, se o pai tivesse se afogado e a mãe estivesse em Cuba pedindo o filho de volta, o rapaz já estaria no avião para casa.
Houve a fase legalista: respeitemos as leis americanas de imigração. Elián, sendo menor, nem pode pedir asilo. O resto é politicagem. Deixei essa fase para a proposta tanto de Bush quanto de Gore: por decreto, outorguem direito de residência a Elián, assim a questão de saber com quem ele fica sairá do direito de imigração e irá para a vara de família, onde prevalece o interesse da criança. Mas qual é o interesse da criança?
Aí outra fase pró-cubano-americanos, simplesmente porque tenho alergia a todo regime que impede seus sujeitos de viajar livremente. Lembro-me dos 63 civis desarmados que tentavam emigrar de Cuba em 1994 e foram assassinados por agentes do governo cubano. Havia 12 crianças entre eles. Por que Elián voltaria para isso?
Por outro lado, um cubano de Miami levanta este cartaz: "A liberdade antes da paternidade". Ou seja, ser livre é mais importante do que ter um pai. É uma versão da regra moderna: crescer não é se conformar aos pais. Mas estamos dispostos a desconsiderar os laços de família por ideais políticos? O que diríamos de uma criança que, em Cuba, denunciasse as simpatias subversivas dos pais seguindo o mesmo princípio?
Imaginei uma solução: devolvam Elián para o pai e autorizem que ele volte para os EUA mais tarde, quando ele quiser visitar seus tios ou mesmo para ficar -só para dizer que americano não rejeita criança que naufragou. Feito. Vamos cuidar da vida.
Mas a figura de Elián segue reinando na imprensa americana e nas conversas sociais. Por quê? A luta ao redor de Elián é uma parábola que propõe uma explicação de quase meio século de nossa história.
Uma comentadora teme que, de volta para Cuba, Elián passe por uma lavagem cerebral. Outros perguntam então como a gente chama a reeducação americana pela qual Elián está passando agora pelas mãos de seus parentes de Miami. Não é lavagem também?
Elián é a derradeira aposta da Guerra Fria. A batalha pela sua guarda e sobretudo pela sua alma é que justifica a Baía dos Porcos, o Vietnã e a Coréia.
A luta é e sempre foi, de fato, entre Mickey Mouse e Fidel Castro ou entre Stakhanov e o Pato Donald. Nessa luta, o Che foi o campeão da esquerda, mas não tinha como ganhar -mais sozinho contra Hollywood do que contra o Exército boliviano.
Eis que Elián volta de sua primeira visita a Orlando, onde foi beijado pessoalmente por Mickey. Na primeira página dos jornais, Fidel, em Cuba, rivaliza e beija a testa do irmãozinho de Elián. Quem beija com mais carinho: Fidel ou Mickey?
Sempre soubemos que a Guerra Fria era sobretudo cultural. Graças a Elián, aparece enfim que, de fato, era uma competição onírica para ver quem conseguiria encarnar o sonho das crianças.
Pouco importa quem organiza melhor a produção, pouco importa quem é mais rico e quem é mais justo, já que, afinal -considerando o lugar extraordinário das crianças e dos jovens no imaginário ocidental moderno-, a questão derradeira é: com quem e com o que sonham as crianças? Pois para lá iremos ou, no mínimo, irão nossos corações.
Os EUA sempre se definiram como a terra das oportunidades. Ora, as crianças e os jovens, para nós modernos, são exatamente isso: os depositários das oportunidades que desperdiçamos. Logo, os EUA são o campo dos sonhos dos jovens. Não deu outra. Os jovens podem contestar o projeto hegemônico americano, discordar, opor-se. Mas seus sonhos são americanos. Assim foi perdida a Guerra Fria, a golpes de rock and roll, calça Levis e batata Pringles (por exemplo).
Provavelmente Elián voltará para a ilha junto com o pai dele e sob o olhar atônito da comunidade cubana de Miami, que não entende como esse homem possa querer voltar para casa.
Vejo a acumulação de brinquedos no pátio de Elián em Miami. Surpreendo o brilho no olhar de Elián sorrindo para os manifestantes na frente de casa: está gostando de seus 15 minutos de celebridade. Constato, por outro lado, a estética austera do outdoor que o governo cubano começou a desdobrar em Cuba: "Devolvam Elián à sua pátria", dizem.
Só falta que, na volta para Cuba, Elián tenha de escutar um discurso de Fidel de três horas. Vai acabar pulando no mar à procura de sua mãe e da Flórida.
Um oficial republicano da guerra da Espanha inventado por Hemingway, observando seus aviões indo para mais uma batalha perdida, dizia: "Como sempre, estamos fodidos". E olhem que, ao ser inventado, ele nem sabia que Hemingway era americano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário