06 março 2000

Atenção: homens e mulheres trabalhando



Na segunda-feira, o Nasdaq -índice das ações da dita nova economia- fechou em forte queda. Na terça, a coisa piorou. Será que a bolha explodiu?


Não sei, mas a pausa na euforia dá um alívio. Pois é duro aguentar a presença maciça da Bolsa de Valores na vida cotidiana americana e, aos poucos, mundial.


Lembra-se do Brasil dos anos 80? Era difícil passar um dia sem debater o que fazer hoje: comprar dólares, colocar no curto prazo, abrir uma caderneta ou entrar num consórcio? Parecia uma manobra de diversão, para que a gente esquecesse as urgências sociais e políticas. "Revolução? Pode ser, mas deixe primeiro passar no banco."


Hoje, nos EUA, fala-se de investimentos tanto quanto no Brasil daquela época. Só que positivamente: o problema não é como evitar a corrosão inflacionária, mas como não perder o trem da alegria. E o trem é um só: a Bolsa de Valores.


Não foi sempre assim. Até recentemente, a Bolsa era coisa de profissionais -caricaturas de terno e charuto, condensadas ao redor de Wall Street.


Como o capitalismo americano conseguiu produzir uma nação de investidores? Simples: confiando a cada um a tarefa de investir livremente o dinheiro de sua aposentadoria. Um pouco como se, no Brasil, todos tivessem a liberdade de administrar seu fundo de garantia.
Consequência: uma massa de dinheiro fluiu para a Bolsa, valorizando o mercado. A isso acrescenta-se, nos últimos anos, a possibilidade de investir por computador, ou seja, de comprar e vender ações com comissões irrisórias e de dispor das mesmas informações que um profissional.


Por que se queixar? Não é esse o milagre de uma sociedade em que cada cidadão (ou quase) seria diretamente interessado na prosperidade do sistema inteiro? Não é bonito que os trabalhadores invistam suas economias apostando num futuro do qual eles são todos sócios (embora minoritários -desculpe a ironia)?


Talvez seja preconceito de velho esquerdista, mas receio que, com, isso tenhamos sobretudo atingido o fundo do poço. Nunca a experiência da economia foi tão afastada das condições concretas do trabalho, da produção e da vida.


Por exemplo, imaginemos que em janeiro você tenha feito a contribuição (obrigatória nos EUA) a seu fundo de aposentadoria -sei lá, US$ 1.000 . Logo precisa investi-los. Você está sabendo que a biotecnologia é quente e investe nessa direção. Em um mês, seus US$ 1.000 se tornam US$ 1.700. Mas eis que 15 dias atrás Clinton declara que não é bom nem legítimo patentear fragmentos do genoma humano sem nem saber para que servem. As perspectivas de lucro da biotecnologia parecem de repente menores do que se pensava. O setor despenca.


Questão: você consegue aceitar que é moralmente justo que o genoma não seja objeto de patentes e que não se lucre com informações preciosas para a vida de milhões de pessoas? Ou você só pensa que essa brincadeira política de Clinton lhe custou US$ 500 em poucas horas? E, caso você se reconheça na primeira possibilidade, como fica se, em vez de US$ 500, fossem US$ 50 mil?


Na verdade, a popularização do investimento na Bolsa não inventa nenhum tipo novo de participação social. Ao contrário, ela vulgariza o espírito de tubarão, ou seja, a substituição de qualquer problemática moral por interesses particulares e imediatos. O homem da rua adotou o espírito do banqueiro de Londres, como diria Mário de Andrade. Para o trabalhador transformado em investidor, a economia torna-se um jogo abstrato. Uma fábrica que fecha ou uma fila de desempregados são indícios para a compra ou venda de títulos, os quais lhe aparecem paradoxalmente como sendo a economia real. Pergunta-se como o trabalhador, tomado na rede das cotações, concebe seu próprio trabalho, seu lugar no mundo e eventualmente seu próprio lugar na fila dos desempregados.


Por medida de saúde pública, proponho que, nos sites de investimento, seja imposto o uso de um programa pelo qual, a cada vez que o usuário clica para comprar ou vender ações, opções ou outros instrumentos desse tipo, apareça uma janela piscando: "ATENÇÃO: HOMENS E MULHERES TRABALHANDO".


PS: Com a queda do Nasdaq, muitos se perguntarão se a nova economia acabou.
A nova economia se distingue porque nela o valor de uma ação não está ligado à previsão de lucros da empresa. Ora, ela não vai acabar tão cedo, pois é nossa filha legítima. Em nossa cultura, vale o que é desejado, invejado, procurado. Isso é o caso dos produtos e dos sujeitos. Por que não seria o caso das empresas?


Quando o público se torna investidor, a Bolsa funciona como um mercado ordinário: a imagem de uma empresa prevalece sobre sua qualidade intrínseca.


Ninguém se preocupa em saber se, de fato, a intervenção de Clinton modificou as perspectivas de lucros da biotecnologia. O que importa é que assim pensou o público, ou melhor, importa que se preveja que o público pensará assim.


O expert em investimentos é cada vez mais o expert em marketing, pois a nova economia é uma economia de massa e de opinião.

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