22 março 2000

A inocência das crianças



O horror da história de Jandira está obviamente na idade das vítimas e ainda mais na idade dos assassinos. O de 16 anos ainda passa. Mas como podem duas crianças de 9 e 13 anos matar colegas a pauladas, estuprar e ainda contar tudo sem nem choramingar?

As crianças, na verdade, são inocentes só graças aos esforços de nossa imaginação. Ou seja, nós imaginamos que elas sejam sem malícia e sem pecados, queremos preservá-las da pretensa corrupção da vida adulta e repetidamente declaramos que é assim que gostamos delas: puras e queridas.

É esse esforço de nossa imaginação que acaba civilizando as crianças. Elas se conformam com os anjinhos que nós imaginamos que elas sejam.

O porquê é simples: há uma série de vantagens para quem é amado. Ora, os adultos amam anjinhos. Portanto há vantagens evidentes em ser anjinho.

Nenhum cinismo nessa constatação: a educação moderna das crianças se faz desse jeito. Amando anjinhos para que as crianças tentem se identificar com eles.

Esse mecanismo é menos simples do que parece. Ele entra facilmente em crise de duas maneiras:
1. Quando não fica nada claro para as crianças como e quais são os anjinhos que os adultos gostam e amam.

2. Quando, aos olhos das crianças e de fato, os adultos não amam nenhuma imagem com a qual as crianças possam tentar se identificar. Em outras palavras, quando os pais não conseguem sonhar nem esperar nada para as crianças que produziram.

No primeiro caso, as crianças ficam com a tarefa de reconstruir ou mesmo de inventar o que os adultos querem que elas sejam.

Elas podem acreditar, por exemplo, que seja um bom negócio compor uma identidade feita de pedaços de violência hollywoodiana. Afinal, elas poderiam dizer: "Não é com isso que meus pais e a grande maioria dos adultos se divertem? Não é disso que eles gostam?".

É o que aconteceu, presumivelmente, com a série de menores americanos que nos últimos dois anos se transformaram em assassinos. A marca dessa confusão quanto ao que precisa para ser amado se revela no drama dessas crianças depois dos fatos. Não é que se sintam culpados.

Eles, sobretudo os mais jovens, se surpreendem, estranham que a mãe, por exemplo, não venha e não fique com eles. Nas entrevistas, há uma espécie de pergunta no ar: "Mas como, não era isso que vocês todos queriam de mim? Que eu fosse Rambo ou coisa que valha?".

Os três garotos de Jandira não colocam nenhuma pergunta desse tipo. Matam, estupram ou eventualmente perdem a vontade de matar. Mas em todo o caso nunca parecem ser cativos do amor. Não são reféns de nenhuma vontade de ser amados pelos adultos. Por isso eles estão fora da infância. E fora de nosso alcance

Nada de novo nisso: já sabíamos há tempo que nossa sociedade não se importa de excluir radicalmente um bom número de seus membros adultos e crianças. E ser excluído de uma sociedade moderna significa exatamente isso: ser privado da expectativa de ser amado ou gostado pelos outros. Ora, o horror de Jandira nos lembra que, num mundo que não é mais regrado por um Deus e pelo temor que ele inspira, o verdadeiro destemido, o mais perigoso de todos e para todos é justamente aquele que perdeu a esperança de ser amado.

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