Em 1997, no morro Dona Marta (Rio de Janeiro), João Salles filmou um documentário justamente famoso, "Notícias de uma Guerra Particular". Assim ele conheceu Marcinho VP, traficante, acusado de homicídio. Criou-se, se não uma amizade, uma curiosidade recíproca. João propôs para Marcinho uma bolsa de R$ 1.200 por mês se ele abandonasse o tráfico e tentasse escrever um livro sobre sua vida. Funcionou durante quatro meses.
Quando isso veio à tona, logo antes do Carnaval, deu um estorvo no governo carioca e pano para debate. João foi generoso ou ingênuo? Inventou uma passarela entre morro e asfalto ou apenas ajudou um foragido?
Um amigo, parado numa sinaleira carioca, olha ao redor circunspecto e comenta: "Precisa tomar cuidado por causa dos bolsistas...". Os chistes vingam, como sempre, para assinalar e esconder alguma verdade doída. No caso, trata-se da ferida que divide a "cidade partida". Mas também de contradições que não valem só para o Rio: paradoxos de nossa cultura. Eis quatro pontos, só para começar a pensar.
1. Nós, modernos, não acreditamos em essências subjetivas, mas na possibilidade de cada um mudar radicalmente. Com isso, nossas legítimas pretensões de segurança e de vingança se chocam com a suspeita de que, na hora da punição, o criminoso poderia não ser mais o mesmo sujeito que nos lesou. Como punir quem pode mudar? Imaginou-se um sistema penal paradoxal, que ofereceria ao mesmo tempo segurança e vingança para as vítimas e uma chance para os criminosos mudarem. Neste sistema, Marcinho se emendaria redigindo suas memórias atrás das grades. Tudo bem, mas como fica se de fato o sistema penal é só punitivo?
2. Alguns evocam a "ingenuidade" de João Salles. É engraçado, eu não vejo nenhuma ingenuidade na paixão moderna de reformar, educar e salvar aos outros. A modernidade começou batizando e convertendo à força índios, negros e judeus. Supostamente buscando o bem.
A fantasia de redenção segue ativa em nosso cotidiano: há o homem que casa com uma prostituta para tirá-la da rua e a mulher que sonha em seduzir um homossexual.
Esta vontade de mudar os outros é a face escondida de nossa tolerância: "somos ambos humanos", dizemos ao próximo, "mas quero te mudar. Aceito você, mas não assim como você está". Adoramos ser São Jorge liberando a donzela, mas evitamos de nos perguntar: e se a donzela gostasse de ficar cravada na rocha pelo bafo do dragão?
Pessoalmente, como João Salles, agiria para conquistar a alma de um Marcinho. Mas este esforço é eventualmente uma violência, não uma ingenuidade.
3. Por que querer salvar logo um bandido? Não há remédio: a modernidade é fadada a idealizar o fora-da-lei -cangaceiro ou hollywoodiano. Somos individualistas, vivemos proclamando que nossa liberdade estará acima de toda imposição social. Mas, para conseguir viver com os outros, tragamos -resignados e um pouco covardes- qualquer dose de conformismo. Com esta amargura na garganta, como não criar romances com a vida (miserável) de quem sai atirando nas margens?
4. Entrevistando João Salles para a revista "Veja", Thais Oyama observou: "Muita gente classificou sua atitude como uma tentativa de expiar uma culpa pelo fato de ser muito rico" (a família Salles é dona do Unibanco). João Salles: "É difícil que alguém neste país não tenha culpa social". Oyama de novo: "É melhor fazer algo movido a culpa que não fazer nada?".
Oyama se faz porta-voz de um lugar-comum de nossa cultura: o gesto que se origina na culpa perde sua nobreza, pois hoje é "cool" estar satisfeito consigo mesmo, sem reservas. A culpa está fora de moda.
O modelo dessa culpa culpada é: gostamos de geléia, a mãe decidiu que não, porque é quaresma. Desejamos a geléia, mas, por sentir culpa, aceitamos a frustração. Ou então roubamos uma colherada e, pela mesma razão, não aproveitamos direito. Em suma: a culpa seria submissão a valores que não são de nosso feitio e que nos impedem de gozar das coisas que desejamos.
Mas a história da geléia proibida é um modelo arcaico de culpa, afastado da experiência contemporânea. Com poucas exceções patológicas, nós, modernos, saboreamos a geléia sem lágrima nenhuma. Nossos apetites se legitimam sozinhos e se deixam dificilmente culpabilizar.
A culpa que João Salles reivindica é a culpa moderna: nesta, nossos desejos são a autoridade suprema, portanto é com eles que ficamos sempre em dívida. Não somos culpados de desobedecer a interdições de geléias variadas. Hoje nos sentimos culpados quando não conseguimos fazer o que desejamos.
Alguns de nós, como João Salles, têm anseios de justiça -uma vontade de mudar o mundo, de torná-lo melhor. É fácil ficar em dívida com este desejo, se sentir culpado de não conseguir realizá-lo.
Outros não conhecem esta culpa. Uma emergente, ao perceber olhares de inveja, comenta, feliz: "O povo me adora". Ela, por exemplo, não se sente culpada, porque não deseja, nunca desejou mudar nada.
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