No fim dos anos 70, em Paris, conheci um casal de jovens que, embora mediamente felizes, brigavam com determinação e frequência. As brigas se resolviam regularmente por uma renovada declaração de amor recíproco. Curiosamente, esta era a cada vez oficializada por uma espécie de fórmula sagrada: "C'est juré pour le Brésil!", "Juro pelo Brasil!".
Ambos adotaram essa invocação porque, na mágica da paixão inicial, decidiram brincando que um dia iriam juntos para o Brasil. Não tinham sequer lido um guia turístico do país, e o Brasil não era o lugar mais exótico disponível para seus sonhos. Como muitos, eles passavam férias no Marrocos ou na Tunísia, que, entre odaliscas, camelos e beduínos, são para um europeu lugares mais exóticos do que o Brasil.
No entanto, o Brasil era para eles o nome do lugar improvável onde se amariam e seriam felizes. Nunca testaram a idéia.
Lembro-me desse casal a cada vez que penso no Brasil como sonho ou pesadelo da consciência européia. As imagens européias do Brasil me interessam, pois elas contêm uma parte do segredo das imigrações (aliás, a começar pela minha própria). Com isso, explicam um pouco o Brasil de hoje, que, como todas as colônias, certamente deve um tributo às fantasias dos que para cá viajaram.
Neste estado de espírito e para começar a celebrar os 500 anos, fui visitar a exposição da Pinacoteca do Estado de São Paulo "Coleção Brasiliana". É um conjunto de obras de viajantes do século 19 reunidas por um colecionador que nunca veio ao Brasil (o catálogo, preparado por C. Martins e V. Piccoli, é ótimo).
Saí pensando que os sonhos europeus que deram forma à realidade brasileira são de três categorias.
Primeiro, há os sonhos antes e ao redor do Descobrimento, aqueles que Sérgio Buarque descreveu em "Visões do Paraíso". Na exposição da Pinacoteca essas fantasias estão presentes numa divertida alegoria da América com índios paradisíacos e infernais. Sorridentes canibais que convidam: "Venham explorar, ficar ricos e ser comidos, ou mesmo devorados. A começar (verifiquem) pela bunda".
Depois, há o Brasil romântico dos pintores viajantes. Suas paisagens dão uma espécie de dor no peito. Transmitem a sensação de uma dupla paz entre os homens e a natureza. É como se o Brasil de Gilberto Freyre tivesse conseguido resolver toda contradição dolorosa: o escravo e o senhor estariam felizes numa democracia racial. A aparição noturna do senhor na senzala não anunciaria um estupro a mais, só prometeria prazeres eróticos compartilhados. A dor no peito é uma languidez insustentável, o fascínio e a nostalgia por um mundo inadmissível e que de qualquer forma nunca existiu. Na exposição, contemplem, por exemplo, o quadro de Charles Landseer: o erotismo dos corpos escravos que descansam de tanto caçar borboletas pela paz quase audível da estrada do Silvestre.
Os EUA acham que são responsáveis pela liberdade no mundo, por encarnarem o ideal de democracia. O Brasil poderia se declarar responsável por uma boa parte das fantasias mundiais -sonhos de gozo e de lânguidos prazeres.
Enfim, até a exposição da Pinacoteca me faltava um termo para designar a terceira categoria, a do exotismo mais vulgar e redutor. Achei: papel de parede. Na exposição da Pinacoteca há um extraordinário papel de parede, 15 metros de "Vistas do Brasil". Foi fabricado em 1830 e reproduzido até a Segunda Guerra Mundial. Milhares de exemplares ornaram o "quarto brasileiro" de palacetes parisienses ou provincianos. Segundo o desenhista, o papel devia permitir "viajar sem sair de casa". Tem de tudo: uma caça ao touro selvagem na baía de Guanabara, índios pendurados em ramos como macacos, negros fiéis trucidados por índios infiéis, por sua vez mortos a tiros, caça à onça e ao jacaré e, enfim, paz e felicidade numa fazenda litorânea.
Proponho chamar de papel de parede o caleidoscópio dos lugares comuns mundiais sobre o Brasil. Bem diferente dos sonhos de gozo e das nostalgias sublimes das primeiras duas categorias de imagens, o papel de parede inclui fotos de férias, folders turísticos e desinformação às vezes mal-intencionada.
No aniversário dos 500 anos, poderíamos instituir um prêmio anual Papel de Parede. Serão premiadas as piores besteiras produzidas pela fantasia européia e americana sobre o Brasil.
P.S.: Começo a anotar. Um sociólogo italiano de passagem foi assistir ao Carnaval. Segundo "O Globo", ele decretou que o Carnaval encenava a luta de classe com o objetivo de evitá-la (eta!). E achou "absurdo que não se discuta o Carnaval da forma que ele merece". Em suma, o tal sociólogo não só ignora o básico da sociologia brasileira, mas também se torna ator de um quadro temático do papel de parede: convencer os índios que o que eles têm (o Carnaval) é de grande valor, mas eles não sabem o que fazer com isso (pois eles não têm sociólogos, não é?). É o espírito das grandes companhias petrolíferas: "Deixa que te ajudo a explorar esse óleo bruto". O concurso Papel de Parede está aberto.
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