10 agosto 2000

Pão, circo e corruptos na cadeia


Luiz Francisco de Souza é nosso herói do momento. E com ele todos os procuradores que corajosamente prendem os corruptos e tentam recuperar o dinheiro público saqueado.
É curioso. Há eleições importantes à vista. A propaganda política nos lembra de que, afinal, os eleitores devem contar para alguma coisa, pois os candidatos precisam de seus votos. Esta seria a hora de escolher o melhor porta-voz de nossas esperanças e projetos. No entanto, hoje nos sentimos representados muito mais pela Justiça do que por vereadores, prefeitos, governadores, deputados etc.


Parece que o desfile interminável de políticos traindo seus eleitores levou a gente a desistir da democracia representativa. A corrupção não produz apenas perdas do patrimônio público, ela também acarreta uma progressiva destruição de nossa confiança no sistema.


Se falo de política no boteco da esquina, num táxi ou num jantar com amigos, encontro sobretudo comentários indignados. Está ficando difícil discutir, pois as idéias e os engajamentos políticos de cada um mal são mencionados. Passamos direto ao consenso imediato: a raiva com a corrupção e o desejo de que ela seja enfim reprimida. Quase não há mais discussão política, porque concordamos quanto ao essencial: é necessário perseguir e punir os corruptos.


Ora, os membros eleitos do Poder Legislativo deveriam representar positivamente nossas vontades políticas. Os brasileiros teriam, sei lá, aposentadorias dignas, saúde pública e ensino básico de qualidade, novas formas de participação democrática, porque a maioria elegeu representantes que poderiam dar forma de lei a essas vontades. É assim que, a princípio, a coisa deveria funcionar. Mas quem quer discutir vontades políticas concretas? Qual ensino, qual saúde, qual democracia? Por que se preocupar com a complicação de projetos políticos e sociais com os quais acabaríamos discordando? Não vale a pena, pois dispomos de um projeto policial e jurídico com o qual, oh, maravilha, todos concordamos: que prendam e condenem os ladrões. O resto, parecemos pensar, será uma simples e mágica consequência.


Faça a prova: lance uma conversa sobre a escolha entre Marta Suplicy, Erundina e Maluf. No caso mais simples, logo o papo chegará às conclusões seguintes: Erundina não roubou, Marta não vai roubar e Maluf... bom, a gente sabe. Os interlocutores às vezes saberão apresentar provas, números, histórias de obras superfaturadas, ou não. Mas tente levar a conversa para os programas: o que os candidatos prometem fazer e como. Quase ninguém sabe ou dá bola.
O Poder Judiciário, que não é eleito, tornou-se paradoxalmente nosso representante mais autêntico, porque a variedade de nossos pensamentos políticos e sociais tende a se resumir ao simples e unívoco pedido de que a justiça seja feita.


Nas mesmas conversas em que a discussão política foi substituída pela indignação unânime, também tornou-se difícil debater os caminhos concretos pelos quais a economia do país poderia voltar a crescer. É como se não valesse a pena comparar escolhas e modelos fiscais, produtivos ou administrativos. Resgatar o dinheiro roubado é uma condição prévia tão importante que o resto perde interesse. Parecemos acreditar que, estancando a hemorragia da corrupção, logo nos tornaremos ricos. Teremos tudo o que precisamos para criar uma sociedade melhor.


Em suma, o Judiciário encarna nossa vontade política e promete os meios de nosso futuro econômico. Com isso, ele se torna o garante e o verdadeiro depositário da democracia. O Legislativo e o Executivo não nos respeitam, mas ainda estamos numa democracia porque o Judiciário nos vingará.


Claro que não é nada disso: lutar contra a corrupção não constitui uma plataforma política, assim como recuperar o dinheiro roubado não salva a economia do país.


Acontece, porém, que a corrupção produz uma perda bem maior do que as quantias que ela rouba. Ela desacredita a democracia e, instaurando uma falsa unanimidade, nos convida a desistir de pensar.


Poderíamos imaginar que isso seja um percalço brasileiro. A corrupção, doença endêmica, estaria condenando nossos trópicos a uma miséria política na qual pegar ladrão apareceria como a essência do exercício democrático.


Mas não é assim. A corrupção dos políticos (real ou suspeita) é um argumento conservador, antigo e global, feito para cortar entusiasmos. "Não se meta com política que é coisa suja, os políticos são todos iguais..." Quase 40 anos atrás, na Itália, eu escutava isso ao manifestar minhas simpatias socialistas juvenis.


Bonita armadilha: os eleitos enchem seus bolsos ou servem aos interesses dos que financiaram suas campanhas. Ou, no mínimo, suspeita-se que assim seja. Isso é uma razão para que o cidadão desista de seus sonhos políticos e se divirta festejando prisões e CPIs de corruptos. Ótimo. Só não gostaria que estas se tornassem o equivalente das execuções públicas que o soberano antigo oferecia a seu povo miserável. Tipo: o que o povo quer (para ficar calado)? Pão, circo e corruptos na cadeia.


Será que queremos só isso mesmo?

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