03 agosto 2000

Roubaram (também) o sonho liberal

Até terça-feira , quando escrevo esta coluna, o dito escândalo Eduardo Jorge poderia ser uma espécie de tempestade em copo d'água.

Como resumiu Clóvis Rossi, a acusação parece consistir em "índices de comportamento pouco santo". O procurador Luiz Francisco não acrescentou muita coisa ao declarar que EJ teria dado prova de "omissão e má-fé na apresentação de seu patrimônio".

Em particular, não está comprovado que EJ tenha vendido seu acesso privilegiado ao presidente. Talvez ele tenha somente exercido muito a influência de sua função.

Imaginemos que as coisas permaneçam nesse patamar. Ou seja, que não haja nada para abafar e que EJ tenha se mostrado apenas "pouco santo".

O engraçado é que, mesmo assim, sua história me dói mais do que, por exemplo, as sinistras peripécias do foragido Nicolau.

Tento entender o porquê. Supostamente, Nicolau roubou e esbanjou de maneira revoltante. A quantidade monstruosa de dinheiro público do qual ele teria se apropriado, comparada com a indigência do povo e do Estado, leva a cálculos assustadores: quantas casas, quantos hospitais, quantos remédios teriam pago os tristes luxos de Nicolau?

EJ, se nada mais for comprovado, não se entregou a nenhum excesso de ganância de estilo Nicolau. Seu caso apenas enfia nosso nariz na fronteira mal-cheirosa entre Poder Executivo e Legislativo. Revela assim o fedor da banalidade cotidiana do poder.

EJ "pouco santo" mereceria nossa indulgência pois sua culpa maior seria apenas ter sido um político e ter trabalhado nos bastidores do governo. E seria uma culpa globalizada, nem pitoresca, nem especificamente brasileira. Não precisa recorrer ao mito do malandro ou da lei de Gerson. Os corredores do poder não conhecem latitude nem fuso horário, eles estão sempre, e em qualquer lugar, na mesma hora: a do lusco-fusco.

Por isso, a história de EJ me indigna menos do que o atrevimento de quem rouba as galinhas dos pobres. Mas, repito, paradoxalmente me dói mais. Por quê?

A democracia não é apenas uma instituição feita de livres eleições, separação e independência dos poderes etc.

Ela é também um estado de espírito, um sentimento que talvez seja complexo, mas no qual nunca faltam (ou nunca poderiam faltar) três pilares. A sensação de que, com mais ou menos sorte e com méritos diferentes, somos todos feitos do mesmo pano (no Brasil este já é um pilar rachado). A sensação de que os sonhos não têm limites e ninguém nos tirará a liberdade de sonhar. E a convicção de que nosso pensamento e nossas ações podem ter efeito sobre a vida da comunidade. Ou seja, que as decisões sociais e políticas são nossas. É graças a esta convicção que nos animamos a participar, votar, cooperar, opinar.

Ora, no mundo democrático inteiro ouve-se hoje uma mesma queixa. Parece que quase mais ninguém quer saber de política. Os jovens não participam dos ritos democráticos (partidos e eleições). Os adultos não estão muito melhor: onde o voto não é obrigatório, os cidadãos pouco se deslocam para as urnas.

Com isso, brotam as críticas: os jovens de hoje seriam cínicos e hedonistas. Os adultos seriam acomodados, submissos, alienados etc.

Tente recapitular a história do caso EJ. Talvez, como eu, você também acabe sem grande indignação, mas perseguido pela pergunta seguinte: "O que eu tenho a ver com isso tudo?". Não que as decisões tomadas com a contribuição influente de EJ não tenham repercussões em nossas vidas. Obviamente têm, basta lembrar o caso da Encol. Mas a zona cinza do poder, onde essas decisões são tomadas, parece totalmente alheia a nossa intervenção, afastada de nós ao ponto de tornar ridículas nossas cédulas eleitorais.

Pergunta: se jovens e adultos se afastam hoje das práticas democráticas será que isso é efeito de sua cínica alienação? Ou de um sistema que de fato dispensa a participação de seus cidadãos?
Dizem que o sonho socialista está morto -destruído pelos doutrinários, que confundiram o socialismo com a uniformidade das aspirações de todos, e pelas burocracias, que se transformaram em classes dominantes. Concordo.

Agora, suspeito que o sonho liberal também esteja morto. Ou no mínimo moribundo. Socialismo e liberalismo são obviamente sonhos concorrentes, mas além de suas diferenças eles compartilham (compartilhavam?) algo: são os dois sonhos modernos de todos poderem participar da invenção da vida social e política.

Ora, assim como as burocracias roubaram o sonho socialista, também o sonho liberal parece estar sendo roubado por entidades imprevistas que se tornaram dominantes, as corporações. Entre lobbying e financiamento de campanhas, somos forçados a constatar que perdemos até o sentimento de poder influenciar nosso destino coletivo. A história de EJ dói tanto justamente porque confirma esta perda.

Não é de estranhar se a esperança -última deusa, como dizia um poeta- parece hoje desertar as grandes ambições de governo. Ela encontra refúgio em quem luta em espaços circunscritos e concretos, onde a ação e a opinião de cada um ainda parecem contar. De novo, falo das novas revoltas.

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