27 julho 2000

Os caça-propaganda, outras figuras da nova revolta

Sigo indagando o espírito da revolta de Seattle e Washington.

Encontro assim uma fotografia: é a sala da máquina para fotocopiar de um escritório. Um jovem, de camisa e gravata, está esperando que a copiadora faça seu trabalho. À direita, uma citação: "Antevejo o dia em que árabes e americanos, latinos e escandinavos mastigarão seus crackers tão entusiasticamente quanto eles já bebem Coca-Cola ou escovam os dentes com Colgate". Assinado: o presidente da Nabisco Corporation.

A imagem produz tristeza e irritação. A tristeza é pela conformidade repetitiva imposta a nossas vidas: alguém está esperando que saiamos todos conformes, como fotocópias. A irritação é com o autor da citação, que confessa sua ambição de planejar nossos gostos. Mistura de triunfalismo ingênuo com cinismo: ele parece apostar que todos, corporações e consumidores, antevejamos um mesmo futuro feliz de salgadinhos, refrigerantes e pasta de dentes.

Outra fotografia: um cubículo anônimo sem janelas. Atrás de uma escrivaninha ordenadamente coberta por papéis, um jovem executivo está na frente de um computador, teclando. Mais uma citação: "Olhando para o futuro, vibro com a excitação dos negócios. Isto porque a companhia da sopa Campbell está engajada numa cruzada para o consumidor global", citado do Relatório Anual de 1994 da Campbell's Soup Company. Desta vez o efeito é cômico pelo contraste absurdo entre a banalidade deprimente do escritório e as (incríveis) vibrações dos cavalheiros cruzados da sopa enlatada.

Ambas imagens fazem parte de um ensaio fotográfico publicado pela "Adbusters" -uma revista canadense que milita contra o funcionamento ordinário de nossa cultura. Os "adbusters" são os caça-propaganda, traduzindo por analogia com "ghostbusters", os caça-fantasma.
O mentor da revista, Kalle Lasn, publicou, no ano passado, um livro programático: "The Uncooling of America". Ele propõe tornar inaceitáveis, deselegantes e sem graça todas as coisas (mercadorias, marcas, estilos) que são promovidas como "cool", ou seja, na moda, "legais". Isso é o "un-cooling".

O esforço para associar publicamente a Nike com a exploração de mão-de-obra infantil na Ásia é um exemplo clássico de "uncooling". Se coloco dois caubóis no pôr-do-sol e escrevo: "Bem-vindos ao país do enfisema", também é uma forma de "uncooling".

Uma outra revista, "Stay Free!" (Mantenha-se livre!), propõe uma série de fotografias de crônica (talvez modificadas, não sei dizer) nas quais personagens desagradáveis aparecem vestindo roupa de marca. Uma simpatizante da Ku Klux Klan, ao ser presa, está de moletom Gap; um molestador de crianças vai para a cadeia com um casaco de Perry Ellis etc.

Exemplo brasileiro: "Época" publica uma fotografia do juiz Nicolau com uma bolsinha Louis Vuitton na mão. Com todo o dinheiro desviado, o homem ainda recorre a este símbolo de status emergente. Ele é patético, e Vuitton perde todo seu "cool".

Mas cuidado: os caça-propaganda não estão criticando os produtos. Nada contra uma caixa de Nabisco, uma sopa Campbell e um moletom quente da Gap numa noite de inverno.

O projeto dos caça-propaganda é mais ambicioso. Lasn considera que a propaganda das grandes corporações é o instrumento pedagógico constitutivo da subjetividade contemporânea e, por isso, o maior projeto psicológico de todos os tempos. É provável que, nas últimas décadas, no mundo inteiro, os gastos com publicidade sejam maiores do que os gastos com a educação básica. Faz sentido: adquirir e consumir é hoje o caminho pelo qual somos convidados a inventar nossas identidades. Sem isso, o neoliberalismo pára.

Ora, os caça-propaganda gostariam de forçar uma nova subjetividade, que não fosse só identificação com bens, estilos e marcas. Mas há um problema: até agora o neoliberalismo se mostrou capaz de recuperar qualquer anseio de mudança. Ser revoltado tornou-se mais um estilo, uma maneira de consumir.

A contracultura, por exemplo, se transformou num ótimo negócio. Você odeia ecologicamente a vida urbana? Vendo a você um Timberland ou um casaco North Face. Com isso, você se define como um sujeito aventuroso, natural, e lá vai besteira. Por que o projeto dos caça-propaganda não seria recuperado do mesmo jeito?

Um acontecimento inesperado me sugeriu uma perspectiva mais otimista. Nos EUA, há uma marca de roupa adotada por muitos adolescentes de classe média: Abercrombie & Fitch. São roupas envelhecidas, esfarrapadas para produzir um efeito de "não estou nem aí". A marca vende o desleixo do adolescente como estilo (para os próprios adolescentes). Um dia, meu filho Ramiro, 17, incomodado com a presença invasiva desta marca entre seus colegas de escola, criou e adotou firme uma peça de vestuário original: pegou uma camiseta branca furada (modelo "esta eu guardo só para dormir") e, com uma caneta indelével, escreveu em letras capitais, no peito: Abercrombie & Fitch.

Talvez a zombaria seja a arma eficaz da revolta futura.
P.S.: Para ler mais veja os sites: www.adbusters.org e www.stayfreemagazine.org

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