20 julho 2000

A nova revolta: responsabilidade ilimitada

Angela Davis é um ícone da militância comunista, feminista e negra dos anos 60 e 70.

Numa recente entrevista, ela declarou: "Estou impressionada com o trabalho que os jovens estão fazendo e me irrito com muitas pessoas de minha geração que se consideram veteranos de lutas passadas e que tendem a depreciar o trabalho dos jovens e contribuem para manter a imagem dos anos 60 como a única era revolucionária".

Concordo com ela. A nostalgia do ex-combatente serve para justificar cinismo e desistência.
É mais interessante olhar com respeito para a babel de revoltas e de esperanças que animaram as ruas de Seattle e de Washington, que promete muitas outras badernas pelo mundo afora.
Dos agricultores franceses ao Greenpeace, os novos revoltados têm ao menos um inimigo comum: as grandes corporações. O projeto de um novo estatuto jurídico para as corporações está no centro da pauta de vários grupos. Parece um combate reformista que não vai mudar nada, não é?

Mas, como sugere Angela Davis, não vamos desconsiderar tão rapidamente o trabalho dos jovens.

Nesses últimos dias, as produtoras americanas de tabaco foram condenadas por um júri popular a pagar indenizações punitivas de US$ 144,8 bilhões.

O júri nem se perguntou se os fumantes que adoeceram são ou não também responsáveis por suas doenças. O que importou é que as corporações sabiam que seu produto era nocivo e produzia dependência. Com isso, seguiam caladas vendendo, promovendo e lucrando.

Quando foi formulado o pedido bilionário, as companhias afirmaram que, se fossem condenadas a pagar tal montante, iriam à bancarrota. O júri não se inibiu. Ao contrário, quis condenar as companhias à morte, assim como na Flórida (onde o processo aconteceu) seria condenado à morte alguém que matasse 400 mil pessoas por ano durante 50 anos.

Claro, é provável que o apelo acabe reduzindo substancialmente o montante. Mesmo assim, a reação da Bolsa foi curiosa. As ações da Philip Morris, da R.J.Reynolds e de outras companhias caíram apenas um pouco. Os acionistas não se indignaram e não se assustaram. Como é possível?
É graças a uma lei feita justamente para que as pessoas possam ser pacifistas e comprar Raytheon ou Lockheed, ser verdes e comprar Exxon. A lei diz e garante que, enquanto investidores, nossa responsabilidade é limitada. Muito limitada.

Naturalmente, essa isenção de responsabilidade civil e penal enferruja também nossos sentimentos morais. Se não somos responsáveis legalmente, por que nos sentiríamos culpados?
De repente, como investidores, somos outros sujeitos, além do bem e do mal -alienados num mundo abstrato onde só conta o lucro.

Veja só: se você for dono de um prédio, junto com outros proprietários, e se este prédio ruir matando um transeunte, você, junto com seus sócios, será pessoalmente responsável por essa morte. Provavelmente você também se sentirá culpado, no mínimo triste.

Isso não acontece com os investimentos acionários. A Philip Morris é condenada a pagar US$ 73 bilhões aos fumantes da Flórida. Se ela for à falência, você perderá seus investimentos: seus R$ 2.000 de ações da Philip Morris (imaginemos) não valerão mais nada.

Mas -mesmo no caso em que os bens da corporação não alcancem- os fumantes e seus herdeiros não poderão exigir que seus bens (apartamento, carro, lençóis e bicicleta) sejam vendidos para pagar os danos. Com isso, torna-se fácil investir em Philip Morris sem sequer levantar a questão da responsabilidade moral.

Os fundos de ações aperfeiçoam o sistema: o pessoal investe e não precisa saber no quê. Tudo graças ao princípio da responsabilidade limitada.

Pois bem, um dos projetos da nova revolta anticorporativa americana é este: abolir a responsabilidade limitada. Quem possui ações deveria ser pessoalmente responsável pelos atos das corporações nas quais investe.

Se essa mudança do estatuto de responsabilidade do investidor viesse a acontecer, seria certamente uma catástrofe para as bolsas -uma crise econômica incontrolável.
Mas os efeitos sociais seriam interessantes. A responsabilidade limitada é uma licença para matar: hoje as corporações supõem, com razão, que os investidores só querem lucrar.
Mas, se estes fossem responsáveis civil e penalmente, as corporações se imporiam freios morais. Pois, mesmo para lucrar, não se arriscariam a fazer algo cujas consequências afugentariam os investidores.

Você pensa em comprar ações da Petrobras. Ora, um júri popular poderia decidir que a conta da poluição é mais alta do que a Petrobras pode pagar. Neste caso, os bens dos acionistas seriam leiloados para limpar as praias da baía de Guanabara ou do rio Iguaçu. Você ainda quer comprar ações da Petrobras?

Os pruridos dos investidores assustados imporiam, enfim, algum tipo de controle democrático na atividade de monstros que hoje contam com nossas vidas mais do que os governos eleitos.
Talvez Angela Davis tenha razão: esses novos revoltados são mais radicais do que parecem.

P.S.: Quer ver um projeto de novo estatuto jurídico das corporações? Veja o da Alliance for Democracy (www.afd-online.org).

Nenhum comentário:

Postar um comentário