13 julho 2000

O segredo de Harry Potter

Na sexta passada, à meia-noite, o quarto volume das aventuras de Harry Potter estava enfim solto pelo mundo. Tinha minha reserva numa livraria de Brookline -tranquila cidade residencial. Como muitas outras livrarias nos EUA, nesta ocasião a loja abriria brevemente de madrugada. Assim, meia-noite se aproximando, fui procurar meu exemplar de "Harry Potter and the Goblet of Fire" (Harry Potter e o Cálice de Fogo). Imaginava que haveria pouca gente: de regra, em Brookline o pessoal janta cedo, as crianças vão para a cama às 21h e não é raro que os adultos antecedam seus rebentos. Ficariam acordados por causa de um livro?

Surpresa: a livraria estava cheia. Por pequenos grupos que pareciam conspiradores apressando o passo na noite, o lugar ia se abarrotando. Eram centenas de pais sonolentos e felizes, trazendo crianças que, como revelavam os olhos avermelhados, haviam lutado até então contra o sono. Outras pareciam já ter dormido e chegado direto da cama: era um desfile de pijamas, camisolas e pantufas. Também havia adultos sem crianças. Atrás de mim na fila, um senhor arvorava uma cicatriz ziguezagueando na testa, como Harry Potter.

Um rapaz fantasiado de mago abria a porta e desejava boa-noite. Mas o clima não era de festa mascarada. As pessoas estavam lá para comprar o livro.

Na minha frente, duas irmãs (12 e 13 anos) acompanhadas pelo pai, ambas de camisola. Cada uma ganha um exemplar. Seria difícil convencê-las a dividir. Ambas abraçam o livro, um tijolo de 730 páginas, como se fosse um ursinho de pelúcia. Passam com delicadeza uma mão na capa, acariciando Harry ou as palavras que produzem o mundo mágico de Hogwarts. Logo começam a ler, enquanto o pai espera o cartão ser processado: a cada frase levantam o rosto, sorriem uma para a outra, apertam forte o volume, suspirando. E voltam a ler.

Os livros de J.K. Rowling são um fenômeno. No Brasil, o primeiro volume, "Harry Potter e a Pedra Filosofal", ocupa os primeiros lugares nas listas dos mais vendidos. Este quarto volume é a maior primeira tiragem da história da edição: 3,8 milhões nos EUA e 1,5 milhão na Grã-Bretanha. Entre meia-noite e 1h, a livraria de Brookline vendeu quase mil exemplares.
Uma sondagem feita pela Internet sugere que, até terça-feira, 38% dos jovens que compraram o livro no sábado já terminaram de ler as 730 páginas. Na mesma sondagem, quase 40% dos entrevistados afirmam que seus pais também lêem Harry Potter.

Não sei se Potter subirá ao firmamento da literatura juvenil como Tom Sawyer, Huckleberry Finn, Lord Fauntleroy, o Pequeno Príncipe, Dorothy do mundo de Oz e os outros. O entusiasmo geral depõe a seu favor. Pois, ao redor de todas essas figuras, leitores adultos e jovens sempre se encontraram como hoje acontece com Potter.

Desde que há literatura no sentido moderno, muitos best sellers foram livros ditos infanto-juvenis, que obviamente não eram lidos só pelos jovens. Na verdade, eram sobretudo livros nos quais uma criança ou um adolescente é o herói.

A maioria das pessoas, quando lhes perguntam quais livros foram mais marcantes em suas vidas, lembram de alguma leitura de infância. A literatura juvenil é tão importante em nossa cultura porque as histórias que ela conta repetem uma espécie de mito fundador da modernidade: um conto de criança que trata do heroísmo de crescer, se tornar independente, se afastar do amparo dos adultos, descobrir e inventar um destino diferente, autônomo. Em suma, é na literatura juvenil que aprendemos a ser modernos.

Para significar e garantir a liberdade infantil e adolescente, as crianças protagonistas -de Tom Sawyer a Tarzan, passando por Narizinho- são sempre órfãs ou quase.

Harry também é órfão. Os pais mortos por Valdemort lhe deixaram um pecúlio suficiente para não se preocupar. Do amor materno, lhe sobra uma proteção permanente contra todo sortilégio assassino. Do pai, uma lição de coragem. Assim, Harry está certo de ter sido amado, mas pode e deve crescer sozinho e livre. Os pais lhe transmitiram apenas o que é preciso, ou seja, as condições de sua autonomia.

Mas há algo mais, que faz de Potter o herói do momento. As circunstâncias levam Harry a lutar contra o malvado Valdemort. O órfão se transforma assim em vingador de seus pais e salvador do mundo. Ou seja, ele encarna um paradoxo: é livre para realizar exatamente os sonhos mais ambiciosos de seus pais. Que liberdade é essa? A contradição faz de Harry um compêndio da glória, das dores e das ilusões de nossa subjetividade contemporânea.

P.S. Livre, mas condenado a vingar os pais e a lutar contra o mal, Harry é uma espécie de Batman jovem.

Mago reprimido, criado pelos tios que odeiam a magia, Harry evoca (numa versão cômica) a triste adolescência dos X-men mutantes da Marvel Comics.

As histórias em quadrinhos (nos quais também leitores adultos e jovens se encontram) fornecem a Rowling vários elementos para atualizar o mito do órfão da literatura juvenil. Essa é mais uma explicação da popularidade de nosso herói.

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