01 março 2001
Darwin virando-se na tumba
Na coluna da semana passada, comentei que as recentes revelações sobre o genoma humano confirmam a hipótese da evolução das espécies. Darwin tinha razão.
Esse triunfo da teoria da evolução é um bom momento para lembrar que, desde seus começos, o darwinismo é perseguido por uma ameaçadora caricatura de si mesmo.
Fundamentalmente, Darwin observou que os animais com traços biológicos que facilitam a sobrevivência e a reprodução transmitem seus genes e mantêm sua espécie. Os outros acabam sumindo. A partir disso, ele tentou explicar a evolução das formas de vida em nosso planeta. Não me parece que essa visão suponha a idéia de um plano de Deus ou da natureza. Apenas há o esforço dos seres vivos que querem sobreviver. A evolução e a seleção acontecem, o que não significa que sejam um bem. Ou seja, por estarmos aqui, a teoria diz que somos "superiores" a outras espécies extintas, mas essa superioridade não tem sentido moral, ela indica só uma eficácia biológica maior.
Ora, logo depois da publicação de sua obra prima, "A Origem das Espécies" (1859), Darwin se queixou de uma resenha segundo a qual seu livro demonstrava "que a força vale como direito, que portanto Napoleão estava certo e também que qualquer comerciante desonesto tem sempre razão". A resenha fundou uma longa dinastia que acompanha o darwinismo como uma maldição. Nessa dinastia, as descobertas de Darwin justificam qualquer status quo. É simples: a evolução é apresentada como uma intenção da natureza. Portanto as espécies e os indivíduos que sobrevivem são justificados na ordem do mundo: o sucesso está sempre moralmente certo.
O capitalismo selvagem encontrou no pseudodarwinismo sua justificação moral explícita: a competição e a exploração seriam apenas formas "normais" da seleção natural.
Nas últimas décadas, a coisa piorou. Floresceu a dita sociobiologia ou psicologia evolucionista: uma série de biólogos, sociólogos e psicólogos aplicou a teoria da evolução ao comportamento social humano. Eles consideram que as disposições culturais, as escolhas morais e políticas, as condutas amorosas etc. devem ser avaliadas em função de seus efeitos na seleção natural. Sendo que, nessa ótica, sobreviver à seleção é o bem supremo.
Edmund Wilson escreveu a bíblia do novo campo: "Sociobiology" (1975). Esse livro (respeitadíssimo) já é contaminado pelo espírito da resenha da qual Darwin se queixava. Wilson, por exemplo, considera com perplexidade a idéia de que a sociedade ajude os mais miseráveis. Numa perspectiva pseudodarwinista, os mais desfavorecidos perderam a corrida da seleção natural. Mantê-los em vida significa se expor ao risco de que seus genes se misturem com os nossos -péssimo para nós, os favorecidos. Essa observação, além de moralmente repugnante, é simplória. Pois é provável que a força da espécie humana e nossa capacidade de sobreviver dependam também dos afetos que nos distinguem dos outros animais.
Contrariamente aos dinossauros, a gente enterra os mortos, se atrasa para ajudar os que não conseguem andar, alimenta os incapacitados e as crianças abandonadas. Talvez seja por isso mesmo que os homens ainda estejam nessa terra.
Desde o livro de Wilson, o pseudo-darwinismo tornou-se uma disciplina acadêmica na moda. Sua receita é fixa: se um comportamento existe, é porque foi aprovado pela seleção natural, que é o grande projeto da natureza. Com isso, o comportamento é legitimado com a aparente bênção da ciência.
A disciplina cresce a cada dia. Leio assiduamente, mas ainda não encontrei uma obra que não fosse fútil. Houve o sucesso do livro de Robert Wright, "The Moral Animal" (1994), que queria formular a moral da seleção natural.
Aprendi, no caso, que o arrivismo é natural e justo porque ele é necessário ao sucesso em nosso mundo e portanto está de acordo com as necessidades da seleção natural.
No ano passado, fizeram barulho dois acadêmicos, Thornhill e Palmer, com "A Natural History of Rape" (uma história natural do estupro), em que quiseram mostrar que, para o homem, estuprar é uma conduta natural e bem adaptada. A tese era deduzida das seguintes premissas: a evolução (o famoso plano da natureza) favoreceria a promiscuidade dos homens (que devem espalhar seus genes) e a modéstia das mulheres (que devem se guardar para os homens geneticamente mais brilhantes e reproduzir só com eles).
Ou seja, para o bem da espécie, o homem deve cuidar da quantidade e a mulher da qualidade (boa maneira machista de autorizar o adultério masculino e manter a fidelidade feminina). Os autores concluem então que, com essa contradição "natural", é inevitável que, de vez em quando, as mulheres apanhem. Bom, falem isso para as mulheres que foram estupradas na guerra da Bósnia.
Uma coisa é certa: à vista do sucesso do pseudodarwinismo, é possível afirmar que vender bobagens como verdades científicas deve ser moralmente justo, posto que parece ser útil e frutífero na seleção natural (e acadêmica) dos autores.
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