De novo, na semana passada, um adolescente norte-americano saiu atirando. Perto de San Diego, Califórnia, Andrew Williams, 15 anos, matou dois colegas e feriu 13 pessoas.
Logo surgem vozes contra a violência na cultura popular. Talvez Andrew não tivesse matado num mundo onde o "rapper" Eminem não cantasse "bleed, bitch, bleed" (sangre, sua puta, sangre). Ou num mundo em que cinema e televisão deixassem de glorificar a morte e em que os videogames parassem de estourar miolos.
Ninguém acredita que a cultura popular seja a única causa da violência real. Mas é fácil mostrar que ela fornece uma espécie de retórica pronta. Você quer se expressar de maneira decisiva? Quer se posicionar como uma exceção à regra social? Pois é, as representações da violência na cultura oferecem uma prontuário para isso.
De fato, a psicologia experimental não demonstrou de maneira conclusiva que uma criança assistindo a filmes de porradas teria um comportamento mais violento do que uma criança que passasse o tempo lendo "O Pequeno Príncipe". No entanto as experiências lembram aquelas pesquisas dos anos 50/60 sobre os efeitos do fumo, quando não estava comprovada a relação entre cigarro e câncer...
Ora, logo nesses dias, encontrei um argumento novo em defesa da hemoglobina, dos socos e das metralhadas de nossa cultura de massa. Deve sair este ano, pela BasicBooks, "Power Play" (jogo de poder/força), de Gerard Jones (escritor de quadrinhos e de roteiros -"Batman", "Homem-Aranha" etc) e Melanie Moore (que pertenceu ao centro de estudos sobre adolescência da Universidade de Stanford). Num trecho já publicado na Internet, Jones conta que aos 13 anos ele era um menino sozinho e apavorado. Foi salvo pelos quadrinhos: conheceu o Incrível Hulk, que lhe forneceu um ego alternativo para expressar sua "raiva reprimida".
Uma vez adulto, conversando com os jovens que gostavam de suas produções, Jones encontrava sempre a mesma história: eram "pessoas que saíam de armadilhas emocionais imergindo em histórias violentas". Ou seja, "graças a fantasias de combates e destruições", os leitores ou espectadores conseguiam uma nova integridade em que podiam admitir (e domesticar) fragmentos reprimidos de sua própria violência.
Em suma, Moore e Jones afirmam que histórias e fantasias violentas são positivas para o desenvolvimento de crianças e jovens. Por exemplo, a fantasia de "ter poderes super-humanos serve às crianças para vencer o sentimento de desamparo que deriva inevitavelmente do fato de elas serem jovens e pequenas". A dupla identidade dos super-heróis ajuda a conciliar os imperativos da socialização com a necessidade de proteger segredos e intimidade. Enfim, a "violência criativa" permite que as crianças conheçam e controlem sua raiva.
Talvez a violência na cultura popular motive alguns a serem violentos. Em compensação, segundo eles, para cada um influenciado desse jeito, milhares devem seu desenvolvimento harmonioso a fantasias violentas.
A tese de Jones e Moore faz sentido. Despedaçar alienígenas na tela do computador pode não ser uma instigação assassina, mas válvula de segurança para não despedaçar nossos camaradas.
Mas, cuidado, a tese implica este pressuposto, quase sempre aceito como uma obviedade: a violência seria uma propriedade humana inata. Dedução: se somos "naturalmente" violentos, temos de fazer algo para que nossa violência não nos impeça de conviver em sociedade.
Reprimi-la inteiramente, sugere a tese, não é possível: ela explodiria como uma panela de pressão. Portanto devemos brincar, fantasiar com a violência para exorcizá-la. Conclusão: é necessário e bom que a cultura popular seja violenta. Festa em Hollywood.
Ora, o pressuposto em questão não é nada certo. Quem diz que a violência seria nossa maneira natural de ser? De onde vem a suposição de que seríamos originariamente violentos -e apenas num segundo tempo contidos, reprimidos ou exorcizados? É um traço constitutivo da modernidade: nós imaginamos que na origem de tudo esteja o indivíduo sozinho, sem pactos, sem comunidades e sem amigos -valendo, portanto, apenas por sua força. Por isso a violência tem, aos nossos olhos, o glamour da natureza indômita. Ela nos fascina como uma espécie de autenticidade perdida.
As representações da cultura popular permitiram que um adolescente franzino sonhasse em ser Hulk -verde, irascível e brutal. Graças a esse sonho, ele imaginou fazer-se valer e sentiu-se melhor. Andrew (também franzino), com a ajuda de uma arma, tornou-se em Hulk de verdade. Eles agiram de maneiras diferentes, mas ambos com a convicção de que a violência (real ou fantasiada) é o caminho natural para fazer-se valer -pois, atrás de camisa e gravata, somos todos verdes.
Essa convicção não jorra da natureza. Tampouco ela precisa, para se consolidar, dos "pow-pow", "ratatatá", "boom" e outros gritos de telas e telinhas. Basta o fato de que o individualismo moderno, inevitavelmente, quase por definição, idealiza a violência.
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