Durante muito tempo, pensava que fôssemos todos vítimas de um ideal inalcançável: a visão de um casal gloriosamente feliz no amor e no sexo. Os casais concretos fracassariam por almejarem tamanha perfeição. Cada dificuldade deixaria os parceiros inconsoláveis ao descobrirem a distância entre seu dia-a-dia e o ideal. Logo eles procurariam outras chances.
Imaginava, portanto, que a vida dos casais se tornaria mais praticável se fosse possível baixar a bola de nossas aspirações. A dificuldade, em suma, parecia ser o próprio ideal romântico de felicidade amorosa e sexual.
Precisava criticar esse ideal, desmontá-lo -Jurandir Freire Costa fez isso admiravelmente em "Sem Fraude nem Favor" (Rocco, 221 págs., R$ 22,50)- e ajudar os casais a conviver com suas imperfeições. Sugestão: "Renunciem a ser o príncipe e a Cinderela, destinados a viverem felizes para sempre, e encarem as trapalhadas que vierem".
À primeira vista, esse projeto deveria funcionar. É o que pensava, sem dúvida, a maioria das pessoas que se reuniram, no fim de semana passado, em Orlando, Flórida, para a convenção anual Smart Marriages, Happy Families (Casamentos Inteligentes, Famílias Felizes), uma grande reunião de terapeutas, padres, pastores, pesquisadores e outros preocupados em defender o casamento periclitante -tudo num clima "tradição, família e propriedade".
Parece que o destaque foram os cursos de preparação para o casamento, dos quais são esperadas maravilhas. Nos EUA, em certas igrejas, um curso em mediação de conflitos já é requisito obrigatório para os noivos. E alguns Estados subvencionarão programas educativos para futuros cônjuges, com o propósito de diminuir o número de divórcios.
Afinal, se o problema for amenizar os efeitos de um ideal impiedosamente exigente, é bem possível que uma mistura de crítica cultural e terapia preventiva funcione, ou seja, consiga tornar mais razoáveis as exigências que impomos a nós mesmos e a nossos parceiros amorosos.
Infelizmente, acredito que esse esforço pedagógico venha a ter efeitos mínimos. Pois me pareceu que, contrariamente ao que achava no passado, o convívio amoroso e sexual não é nosso ideal cultural dominante. O casal moderno não sofre de um excesso de idealização da felicidade casamenteira. Ao contrário, ele luta (batalha bem mais ímpar) contra uma falta de idealização: o casal não tem onde encontrar inspiração, pois seus percalços não fazem sonhar ninguém.
Como cheguei a essa nova conclusão?
Pense no repertório moderno das condutas apetitosas e dos heróis que gostaríamos de ser: o cinema. Aparentemente Hollywood não pára de idealizar a paixão amorosa, de "Casablanca" a "Titanic", não é?
Ora, em "Casablanca", você se identifica com quem? Com Bogart, que renuncia a viver seu grande amor e -macho para caramba- entra na resistência clandestina? Ou com Ingrid Bergman, que viverá um casamento chocho, sempre saudosa dos momentos mágicos passados com Bogey em Paris e Casablanca? Seja como for, são idealizadas a renúncia e a saudade, não a felicidade de um casal.
Em "Titanic", você prefere ser DiCaprio salvando sua bela ao preço da vida? Ou Kate Winslet, guardiã da lembrança de um amor que nunca teve o tempo de vingar? Seja como for, são idealizados o sacrifício e o luto, não o convívio de um casal apaixonado.
Repita esse tipo de análise com qualquer filme. Por exemplo, na linha "Love Story"-"Moulin Rouge" (que estréia no Brasil em 24 de agosto), a paixão vem com a garantia de uma morte anunciada. O ideal não é o convívio amoroso, mas o charme da viuvez inconsolável ou então a idéia de sobreviver como lembrança indelével na memória de quem fica.
Às vezes a história acaba bem, com o casal encaminhando-se para amanhãs radiosos. Como em Cinderela, viverão felizes para sempre. Mas você reparou que isso acontece sempre fora da tela? Quando um casal consegue se juntar, a história acaba.
Em suma, o que é idealizado nunca é o convívio, mas a perda, a saudade, o luto ou, no máximo, a procura. Para saber como continua a história depois de um final feliz, precisa mudar de canal, passar do filme ao seriado de televisão, do estilo épico e dramático ao burlesco.
O príncipe encontrou a princesa: acabou o tempo dos heróis com os quais gostávamos de nos identificar, aquela coisa de matar dragões, sofrer privações e feridas pensando na bela (ausente, por favor) e vice-versa. O que segue é vaudeville, o tempo dos palhaços.
O ideal não é o convívio com o outro amado, mas sua falta (atual, antecipada ou saudosa). A figura de nossos devaneios não é um casal, mas o sujeito solitário dignificado pela perda, pelo anseio ou pela renúncia -e, por isso, sedutor.
Não estranha que não sonhemos com a presença do outro. Afinal, a insatisfação e a falta estão sempre inscritas em nossos corações, e o contentamento com o que temos é destinado a parecer ridículo. Essas são as condições subjetivas mínimas para o bom funcionamento (econômico e social) do mundo moderno.
28 junho 2001
21 junho 2001
Separados e maduros
Cada vez que escrevo sobre relações conjugais, recebo alguns e-mails perguntando-me: "Afinal, qual é a sua? Será que você quer que as pessoas fiquem casadas, sacrificando sua autonomia e sua singularidade? Deveríamos renunciar a nós mesmos para continuarmos juntos?". Certo que não. Conheço a tristeza das relações falidas que continuam por inércia. Não quero (nem poderia) promover a volta a uma primazia da instituição do casamento sobre e contra os amores e os humores dos indivíduos.
Mas meus correspondentes têm razão: quase sempre me parece que vale a pena fazer o esforço de colar os cacos de uma relação em crise. Ou, no mínimo, que vale a pena tentar.
Essa atitude é uma medida preventiva, que me protege dos poderes de um lugar-comum: muitas ideologias terapêuticas contemporâneas idealizam as separações (não só de casais) como se fossem sempre provas de força e de saúde mental. Separar-se é bom, juntar-se é ruim. Separar-se é forte, juntar-se é fraco.
As relações ditas saudáveis seriam aquelas em que cada um poderia, sem problema, licenciar o outro -sempre mantido a uma distância prudente. Nessa ótica, respeitar o amigo, o amante, o cônjuge ou o parente significa não pretender que ele mude por causa da relação. Do mesmo jeito, respeitar a nós mesmos é não aceitar que sejamos transformados pela relação.
Paradoxo: a relação de sucesso acaba sendo definida não como aquela que descobriu um jeito de dois ou mais ficarem juntos, mas como aquela que pode quebrar tranquilamente, porque cada um ficou na sua.
Nenhuma surpresa. Nossa cultura valoriza o indivíduo. Portanto medimos a maturidade de um sujeito pela sua independência dos outros. Ou seja, nossa concepção da maturidade é botânica: "Amadureceu? Então, tem de cair do ramo". A isso acrescenta-se que, contrariamente à regra botânica, quem se separa vinga e cresce, enquanto quem fica preso murcha ou apodrece.
Tornar-se adulto significa saber renunciar ao seio e à presença da mãe, logo sair de casa e dispensar a mesada dos pais. Enfim, desejar sem concessões ou compromissos com o desejo dos outros. Aliás, o contrário da separação para nós não é a relação, mas imediatamente a fusão, em que toda individualidade será esmagada. O moto é: separe-se ou perca-se.
Nunca é bom contrariar um leitmotiv cultural. Dispomos de infinitos exemplos dos efeitos catastróficos de fusões não resolvidas entre mães e crianças, entre pais e filhos ou então entre amantes e entre cônjuges.
É claro que é melhor que a vida de um casal não seja uma sauna úmida onde todos se perdem e quase sufocam. Também é bom para as crianças que saiam do útero materno, que se afastem da mãe e, eventualmente, que deixem a casa dos pais e façam sua vida. Mas talvez não seja necessário que todo esse processo seja quase sempre descrito e apresentado como uma separação, e não como a constituição ou a invenção de laços diferentes e viáveis. Parece que, em nossa cultura, amadurecendo, todos devem aprender a separar-se, mas ninguém deve aprender a relacionar-se.
A separação como ideal subjetivo inspira nossos comportamentos em todas as relações que, por serem cruciais, parecem ameaçar nossa autonomia. Por exemplo, muitos pais queixam-se de que, ao lançar qualquer discussão, eles encontram uma recusa brutal dos filhos adolescentes. Quando o papo esquenta um pouco, os jovens saem de perto. "Fazer o quê? Amarrá-los?" Numa cultura em que o afastamento é o caminho ideal que dá acesso à maturidade, não há por que estranhar que os jovens gostem de bater as portas.
Quando uma relação está doente ou em crise, é frequente que a culpa seja atribuída à escassa autonomia dos sujeitos, e não à sua dificuldade em relacionar-se. Os problemas seriam efeitos da infantilidade dos envolvidos, os quais não seriam suficientemente independentes, pediriam demais, contariam demais com o outro etc.
Nessa linha, os problemas de um casal seriam resolvidos quando fossem resolvidos os problemas de seus integrantes. Mesma coisa para uma família ou para qualquer outra relação em crise. Há uma verdade nisso: imagine, por exemplo, que alguém seja constantemente animado pela fantasia inconsciente de produzir gritos e lágrimas na hora de sua saída. É inevitável que suas relações sejam repetidamente tempestuosas e fracassadas. E, se ele resolver seu problema, as relações nas quais ele se envolverá serão beneficiadas.
Mas as dificuldades de relacionamento não são apenas a suma das dificuldades dos parceiros que se relacionam. Nem são sempre uma consequência da falta de autonomia deles. Elas podem ser, banalmente, o efeito de uma insuficiente disponibilidade ou da incapacidade de travar amores, amizades e convívios.
Ora, minha simpatia pelos esforços para manter e conciliar relações é uma maneira de apostar que a maturidade não só seja a capacidade de tolerar as separações mas também consista em inventar uma arte de relacionar-se.
Não terminei. Continua numa próxima coluna
Mas meus correspondentes têm razão: quase sempre me parece que vale a pena fazer o esforço de colar os cacos de uma relação em crise. Ou, no mínimo, que vale a pena tentar.
Essa atitude é uma medida preventiva, que me protege dos poderes de um lugar-comum: muitas ideologias terapêuticas contemporâneas idealizam as separações (não só de casais) como se fossem sempre provas de força e de saúde mental. Separar-se é bom, juntar-se é ruim. Separar-se é forte, juntar-se é fraco.
As relações ditas saudáveis seriam aquelas em que cada um poderia, sem problema, licenciar o outro -sempre mantido a uma distância prudente. Nessa ótica, respeitar o amigo, o amante, o cônjuge ou o parente significa não pretender que ele mude por causa da relação. Do mesmo jeito, respeitar a nós mesmos é não aceitar que sejamos transformados pela relação.
Paradoxo: a relação de sucesso acaba sendo definida não como aquela que descobriu um jeito de dois ou mais ficarem juntos, mas como aquela que pode quebrar tranquilamente, porque cada um ficou na sua.
Nenhuma surpresa. Nossa cultura valoriza o indivíduo. Portanto medimos a maturidade de um sujeito pela sua independência dos outros. Ou seja, nossa concepção da maturidade é botânica: "Amadureceu? Então, tem de cair do ramo". A isso acrescenta-se que, contrariamente à regra botânica, quem se separa vinga e cresce, enquanto quem fica preso murcha ou apodrece.
Tornar-se adulto significa saber renunciar ao seio e à presença da mãe, logo sair de casa e dispensar a mesada dos pais. Enfim, desejar sem concessões ou compromissos com o desejo dos outros. Aliás, o contrário da separação para nós não é a relação, mas imediatamente a fusão, em que toda individualidade será esmagada. O moto é: separe-se ou perca-se.
Nunca é bom contrariar um leitmotiv cultural. Dispomos de infinitos exemplos dos efeitos catastróficos de fusões não resolvidas entre mães e crianças, entre pais e filhos ou então entre amantes e entre cônjuges.
É claro que é melhor que a vida de um casal não seja uma sauna úmida onde todos se perdem e quase sufocam. Também é bom para as crianças que saiam do útero materno, que se afastem da mãe e, eventualmente, que deixem a casa dos pais e façam sua vida. Mas talvez não seja necessário que todo esse processo seja quase sempre descrito e apresentado como uma separação, e não como a constituição ou a invenção de laços diferentes e viáveis. Parece que, em nossa cultura, amadurecendo, todos devem aprender a separar-se, mas ninguém deve aprender a relacionar-se.
A separação como ideal subjetivo inspira nossos comportamentos em todas as relações que, por serem cruciais, parecem ameaçar nossa autonomia. Por exemplo, muitos pais queixam-se de que, ao lançar qualquer discussão, eles encontram uma recusa brutal dos filhos adolescentes. Quando o papo esquenta um pouco, os jovens saem de perto. "Fazer o quê? Amarrá-los?" Numa cultura em que o afastamento é o caminho ideal que dá acesso à maturidade, não há por que estranhar que os jovens gostem de bater as portas.
Quando uma relação está doente ou em crise, é frequente que a culpa seja atribuída à escassa autonomia dos sujeitos, e não à sua dificuldade em relacionar-se. Os problemas seriam efeitos da infantilidade dos envolvidos, os quais não seriam suficientemente independentes, pediriam demais, contariam demais com o outro etc.
Nessa linha, os problemas de um casal seriam resolvidos quando fossem resolvidos os problemas de seus integrantes. Mesma coisa para uma família ou para qualquer outra relação em crise. Há uma verdade nisso: imagine, por exemplo, que alguém seja constantemente animado pela fantasia inconsciente de produzir gritos e lágrimas na hora de sua saída. É inevitável que suas relações sejam repetidamente tempestuosas e fracassadas. E, se ele resolver seu problema, as relações nas quais ele se envolverá serão beneficiadas.
Mas as dificuldades de relacionamento não são apenas a suma das dificuldades dos parceiros que se relacionam. Nem são sempre uma consequência da falta de autonomia deles. Elas podem ser, banalmente, o efeito de uma insuficiente disponibilidade ou da incapacidade de travar amores, amizades e convívios.
Ora, minha simpatia pelos esforços para manter e conciliar relações é uma maneira de apostar que a maturidade não só seja a capacidade de tolerar as separações mas também consista em inventar uma arte de relacionar-se.
Não terminei. Continua numa próxima coluna
14 junho 2001
Desigualdades intoleráveis
"Desigualdade e Felicidade: os Europeus e os Americanos São Diferentes?" é uma recente pesquisa do National Bureau of Economic Research, realizada por A. Alesina, R. di Tella e R. MacCulloch. O texto está acessível em www. nber.org.
A pesquisa mostra que os cidadãos dos EUA e os europeus sentem e pensam de maneira diferente em matéria de desigualdade social. Na Europa, a desigualdade é um fator de insatisfação, por isso ela é combatida por várias políticas de redistribuição de renda. Nos EUA, a indigência é considerada um mal social, mas a desigualdade não -as políticas assistenciais são, portanto, mais limitadas.
Na Europa, quanto mais um sujeito é pobre, tanto mais ele está insatisfeito com a desigualdade social. Parece óbvio: os desfavorecidos devem se sentir melhor numa sociedade mais homogênea, não é? Surpresa: nos EUA, o bom humor dos pobres é insensível à desigualdade. Os únicos americanos que parecem ficar tristes com as diferenças sociais são os ricos de esquerda.
Como explicar essa diferença? Os autores sugerem uma causa: a mobilidade social. Os Estados Unidos apresentam uma mobilidade social maior do que a da Europa. Por isso os pobres americanos vêem na desigualdade a promessa de seus privilégios futuros. Moderar a desigualdade seria limitar seus sonhos.
Ao contrário, na Europa, onde há menos mobilidade social, a desigualdade é percebida pelos pobres como uma situação dificilmente alterável, um destino infeliz.
A pesquisa tem relevância política. A esquerda americana protesta porque o país prospera, mas a desigualdade aumenta descaradamente. Segundo a pesquisa, isso não tem importância nenhuma. Robert Samuelson, colunista da "Newsweek", ao comentar a pesquisa, afirmou que, como qualquer americano, ele não se sentiria melhor se Bill Gates ficasse pobre.
E nós com isso? No Brasil, a desigualdade social é maior do que nos EUA (da Europa nem se fala). E ela é constantemente invocada como uma razão da infelicidade nacional. Não paramos de medir quantos salários mínimos e quantas cestas básicas cabem no custo de qualquer luxo de classe alta. A falta de segurança de nossas cidades nos parece ser um efeito "merecido" da desproporção entre ricos e pobres. A distância entre os mais e os menos favorecidos é "a" praga nacional.
Em suma, sofremos de uma desigualdade pior do que a americana e estamos insatisfeitos com esse descompasso, como os europeus. Somos americanos na desigualdade e europeus na insatisfação com a desigualdade. Parece fácil entender por quê: a desigualdade só é tolerável quando existe uma grande mobilidade social, como nos EUA. Numa sociedade com menos trânsito entre as classes, como a da Europa, a desigualdade, por menor que seja, é fonte de insatisfação. Ora, a representação que temos do Brasil é esta: uma desigualdade à americana com a escassa mobilidade dos europeus -portanto uma desigualdade intolerável.
Mas há um problema: essa representação do Brasil não corresponde plenamente à realidade. No ano passado, José Pastore e Nelson do Valle Silva publicaram "Mobilidade Social no Brasil". Mostraram que, de fato, desde os anos 40, a mobilidade social no Brasil é considerável. Por exemplo, hoje "apenas 20% dos integrantes da classe alta são filhos da própria classe alta". Num quadro comparativo, o Brasil é um dos países com mais mobilidade -acima dos EUA.
Pastore e Valle Silva atenuam esses dados observando que, no Brasil moderno, muitos crescem, mas crescem pouco. Mesmo assim, é curioso que a sociedade brasileira nos pareça imóvel. Os EUA encarnam para todos o mito da "terra das oportunidades". O Brasil, com uma mobilidade maior ou, no mínimo, equivalente, vê-se, ao contrário, como o paraíso das elites. Só encontro uma explicação para a permanência desse estereótipo: nossa percepção da mobilidade social depende da experiência cotidiana, ou seja, de como são vividas concretamente as diferenças sociais. Explico com exemplos.
Nos EUA, a mobilidade é confirmada a cada instante pelo estilo do comportamento social. Um americano pode ter infinitamente menos do que ricos e poderosos, mas ele acredita que subir seja sempre possível, pois é tratado pelos mais favorecidos como alguém que amanhã poderia entrar na turma de cima. "Cozinho seus ovos e sirvo seu café. Mas seu respeito indica que você não exclui a possibilidade de qualquer dia estarmos juntos do mesmo lado do balcão."
No Brasil, a mobilidade, embora exista de fato, é frequentemente desmentida pela prática dos estilos mais arcaicos de poder. "A sociedade pode me oferecer recursos e chances de subir na vida, mas como acreditarei nessa possibilidade, se, por eu ter menos do que você, serei tratado com a familiaridade condescendente que se destina normalmente aos servos?"
No Brasil, a mobilidade social, por mais que seja efetiva, não faz parte da experiência social cotidiana. Por isso ela não aparece no cartão-postal do país. Por isso também as desigualdades permanecem intoleráveis.
A pesquisa mostra que os cidadãos dos EUA e os europeus sentem e pensam de maneira diferente em matéria de desigualdade social. Na Europa, a desigualdade é um fator de insatisfação, por isso ela é combatida por várias políticas de redistribuição de renda. Nos EUA, a indigência é considerada um mal social, mas a desigualdade não -as políticas assistenciais são, portanto, mais limitadas.
Na Europa, quanto mais um sujeito é pobre, tanto mais ele está insatisfeito com a desigualdade social. Parece óbvio: os desfavorecidos devem se sentir melhor numa sociedade mais homogênea, não é? Surpresa: nos EUA, o bom humor dos pobres é insensível à desigualdade. Os únicos americanos que parecem ficar tristes com as diferenças sociais são os ricos de esquerda.
Como explicar essa diferença? Os autores sugerem uma causa: a mobilidade social. Os Estados Unidos apresentam uma mobilidade social maior do que a da Europa. Por isso os pobres americanos vêem na desigualdade a promessa de seus privilégios futuros. Moderar a desigualdade seria limitar seus sonhos.
Ao contrário, na Europa, onde há menos mobilidade social, a desigualdade é percebida pelos pobres como uma situação dificilmente alterável, um destino infeliz.
A pesquisa tem relevância política. A esquerda americana protesta porque o país prospera, mas a desigualdade aumenta descaradamente. Segundo a pesquisa, isso não tem importância nenhuma. Robert Samuelson, colunista da "Newsweek", ao comentar a pesquisa, afirmou que, como qualquer americano, ele não se sentiria melhor se Bill Gates ficasse pobre.
E nós com isso? No Brasil, a desigualdade social é maior do que nos EUA (da Europa nem se fala). E ela é constantemente invocada como uma razão da infelicidade nacional. Não paramos de medir quantos salários mínimos e quantas cestas básicas cabem no custo de qualquer luxo de classe alta. A falta de segurança de nossas cidades nos parece ser um efeito "merecido" da desproporção entre ricos e pobres. A distância entre os mais e os menos favorecidos é "a" praga nacional.
Em suma, sofremos de uma desigualdade pior do que a americana e estamos insatisfeitos com esse descompasso, como os europeus. Somos americanos na desigualdade e europeus na insatisfação com a desigualdade. Parece fácil entender por quê: a desigualdade só é tolerável quando existe uma grande mobilidade social, como nos EUA. Numa sociedade com menos trânsito entre as classes, como a da Europa, a desigualdade, por menor que seja, é fonte de insatisfação. Ora, a representação que temos do Brasil é esta: uma desigualdade à americana com a escassa mobilidade dos europeus -portanto uma desigualdade intolerável.
Mas há um problema: essa representação do Brasil não corresponde plenamente à realidade. No ano passado, José Pastore e Nelson do Valle Silva publicaram "Mobilidade Social no Brasil". Mostraram que, de fato, desde os anos 40, a mobilidade social no Brasil é considerável. Por exemplo, hoje "apenas 20% dos integrantes da classe alta são filhos da própria classe alta". Num quadro comparativo, o Brasil é um dos países com mais mobilidade -acima dos EUA.
Pastore e Valle Silva atenuam esses dados observando que, no Brasil moderno, muitos crescem, mas crescem pouco. Mesmo assim, é curioso que a sociedade brasileira nos pareça imóvel. Os EUA encarnam para todos o mito da "terra das oportunidades". O Brasil, com uma mobilidade maior ou, no mínimo, equivalente, vê-se, ao contrário, como o paraíso das elites. Só encontro uma explicação para a permanência desse estereótipo: nossa percepção da mobilidade social depende da experiência cotidiana, ou seja, de como são vividas concretamente as diferenças sociais. Explico com exemplos.
Nos EUA, a mobilidade é confirmada a cada instante pelo estilo do comportamento social. Um americano pode ter infinitamente menos do que ricos e poderosos, mas ele acredita que subir seja sempre possível, pois é tratado pelos mais favorecidos como alguém que amanhã poderia entrar na turma de cima. "Cozinho seus ovos e sirvo seu café. Mas seu respeito indica que você não exclui a possibilidade de qualquer dia estarmos juntos do mesmo lado do balcão."
No Brasil, a mobilidade, embora exista de fato, é frequentemente desmentida pela prática dos estilos mais arcaicos de poder. "A sociedade pode me oferecer recursos e chances de subir na vida, mas como acreditarei nessa possibilidade, se, por eu ter menos do que você, serei tratado com a familiaridade condescendente que se destina normalmente aos servos?"
No Brasil, a mobilidade social, por mais que seja efetiva, não faz parte da experiência social cotidiana. Por isso ela não aparece no cartão-postal do país. Por isso também as desigualdades permanecem intoleráveis.
07 junho 2001
A paixão pelo novo e o casamento
No meu quarto, o espelho para enxergar-se de pé está ao lado da cama. Resultado: quando acordo, sento e vejo-me. Estranho um pouco, mas acabo reconhecendo a figura.
Poderia achar prazer em reencontrar-me. Mas, em geral, a experiência é de tédio ou de vaga decepção: não fui vítima de nenhuma metamorfose. Voltei do sono e sou o mesmo. Não virei barata, nem príncipe encantado. Que droga.
Essa sensação não me surpreende: há poucos traços tão relevantes na subjetividade moderna quanto a paixão pela mudança -e, por consequência, a ojeriza da mesmice. O gosto pela novidade é crucial em nossas vidas. Ele preside, por exemplo, à insaciável variedade dos objetos oferecidos a nossos apetites. Com isso, funciona como incentivo essencial para o sistema de produção e consumo no qual vivemos.
A paixão pelo novo e a ojeriza da mesmice não comandam apenas nossa relação com os objetos. Elas dominam também nossa experiência íntima. Queremos novidades não só nas ruas e nas vitrinas, mas em nossas vidas. Chegamos a medir a qualidade de uma existência pela variedade das experiências que ela proporciona. Lamentamos uma vida definida pelo tranquilo preenchimento de uma função. Preferimos a aventura.
Gostaríamos de ser Indiana Jones, mas à condição de passar direto de um filme da série para o seguinte, sem os intermezzos da rotina que -supõe-se- deve constituir a vida "normal" (estudo e ensino) do professor Jones.
Achamos mil culpados pela mesmice que nos assola. Mas logo a lista dos acusados chega a parceiros e parceiras -como se fossem bolas amarradas no pé, correntes que nos travam. O cônjuge torna-se a encarnação dos motivos pelos quais desistimos do novo e da aventura. Ele é responsável por nosso tédio, culpado de toda estagnação. Ele carrega, aos nossos olhos, os estigmas da mesmice: imaginamos dever-lhe tudo o que parece nos prender -um domicílio, a responsabilidade de sermos pais, mais uma família que se acrescenta ao peso da nossa família de origem etc.
De fato, o cônjuge é acusado injustamente: geralmente ele é apenas o porta-voz do medo que acompanha e modera nossa paixão pelo novo. Somos filhos de uma cultura que, ao mesmo tempo, promove o pequeno núcleo familiar fundado no amor e idealiza a liberdade de quem não pára de se reinventar sozinho. Queremos aventura, mas receamos esse nosso desejo e procuramos portos seguros. Culpar o cônjuge é uma maneira de evitar a contradição.
Respeitando esse dilema, a literatura de ajuda, descrição e análise do casamento segue duas tendências. Há os aventureiros, que encorajam homens e mulheres a -expressão consagrada- "realizarem seu potencial" perseguindo novos horizontes. E há os casamenteiros, partidários de compromissos e negociações que permitiriam atravessar a vida de mão dada.
Na última década, os casamenteiros parecem prevalecer. Como medida preliminar, todos eles pedem que não esperemos eternos transportes de felicidade amorosa e sexual. Ou seja, sugerem que não contemos encontrar no casamento as mesmas fortes emoções que procuramos em nossas aventuras (sonhadas ou verdadeiras). Infelizmente, não há como colocar muita fé nos efeitos desses conselhos bem-intencionados: fracassam como convites para uma festa chocha. Mas eis que acabo de ler "Surrendering to Marriage" (Entregar-se ao Casamento), de Iris Krasnow, jornalista. É um livro breve, divertido, repleto de depoimentos e de confidências corajosas sobre o casamento da autora. Krasnow é exemplar de uma interessante tendência casamenteira, segundo a qual lidar com a imperfeição do casamento poderia ser, paradoxalmente, uma aventura extraordinária. Engraçado: o esforço para conviver com a mesmice, levado a sério, nos reservaria uma novidade a cada esquina.
De fato, o livro de Krasnow descobre (ou inventa, tanto faz) uma épica possível do casamento laborioso. Indiana Jones e Lara Croft (seu homólogo feminino) que procurem glória e tesouros não pelo mundo afora, mas nos pequenos esforços para manter unido um casal. Afinal, para muitos, mesmo após décadas de convivência, o cônjuge e a própria relação seguem sendo continentes inexplorados.
Se os esforços para manter ou reinventar o casamento nos parecessem tão emocionantes quanto a procura e o risco da novidade, o casamento encontraria um fôlego extraordinário, pois conciliaria a paixão pelo novo com a nostalgia de um porto seguro.
Em suma, o casal tornou-se descartável como a esferográfica e o isqueiro. "Não funciona mais? Jogue fora." A metade dos casamentos americanos quebra e acaba em divórcio. Mas nos últimos anos há certamente muitas pessoas querendo colar os cacos. Para alistar mais alguns, Krasnow pretende que esse empreendimento pode constituir um desafio complexo e envolvente como um bom sonho de aventura. Por que não? Há pletora de candidatos (prova disso: desde 1970, nos EUA, o número de profissionais licenciados como terapeutas de família e de casal multiplicou-se por 50).
Poderia achar prazer em reencontrar-me. Mas, em geral, a experiência é de tédio ou de vaga decepção: não fui vítima de nenhuma metamorfose. Voltei do sono e sou o mesmo. Não virei barata, nem príncipe encantado. Que droga.
Essa sensação não me surpreende: há poucos traços tão relevantes na subjetividade moderna quanto a paixão pela mudança -e, por consequência, a ojeriza da mesmice. O gosto pela novidade é crucial em nossas vidas. Ele preside, por exemplo, à insaciável variedade dos objetos oferecidos a nossos apetites. Com isso, funciona como incentivo essencial para o sistema de produção e consumo no qual vivemos.
A paixão pelo novo e a ojeriza da mesmice não comandam apenas nossa relação com os objetos. Elas dominam também nossa experiência íntima. Queremos novidades não só nas ruas e nas vitrinas, mas em nossas vidas. Chegamos a medir a qualidade de uma existência pela variedade das experiências que ela proporciona. Lamentamos uma vida definida pelo tranquilo preenchimento de uma função. Preferimos a aventura.
Gostaríamos de ser Indiana Jones, mas à condição de passar direto de um filme da série para o seguinte, sem os intermezzos da rotina que -supõe-se- deve constituir a vida "normal" (estudo e ensino) do professor Jones.
Achamos mil culpados pela mesmice que nos assola. Mas logo a lista dos acusados chega a parceiros e parceiras -como se fossem bolas amarradas no pé, correntes que nos travam. O cônjuge torna-se a encarnação dos motivos pelos quais desistimos do novo e da aventura. Ele é responsável por nosso tédio, culpado de toda estagnação. Ele carrega, aos nossos olhos, os estigmas da mesmice: imaginamos dever-lhe tudo o que parece nos prender -um domicílio, a responsabilidade de sermos pais, mais uma família que se acrescenta ao peso da nossa família de origem etc.
De fato, o cônjuge é acusado injustamente: geralmente ele é apenas o porta-voz do medo que acompanha e modera nossa paixão pelo novo. Somos filhos de uma cultura que, ao mesmo tempo, promove o pequeno núcleo familiar fundado no amor e idealiza a liberdade de quem não pára de se reinventar sozinho. Queremos aventura, mas receamos esse nosso desejo e procuramos portos seguros. Culpar o cônjuge é uma maneira de evitar a contradição.
Respeitando esse dilema, a literatura de ajuda, descrição e análise do casamento segue duas tendências. Há os aventureiros, que encorajam homens e mulheres a -expressão consagrada- "realizarem seu potencial" perseguindo novos horizontes. E há os casamenteiros, partidários de compromissos e negociações que permitiriam atravessar a vida de mão dada.
Na última década, os casamenteiros parecem prevalecer. Como medida preliminar, todos eles pedem que não esperemos eternos transportes de felicidade amorosa e sexual. Ou seja, sugerem que não contemos encontrar no casamento as mesmas fortes emoções que procuramos em nossas aventuras (sonhadas ou verdadeiras). Infelizmente, não há como colocar muita fé nos efeitos desses conselhos bem-intencionados: fracassam como convites para uma festa chocha. Mas eis que acabo de ler "Surrendering to Marriage" (Entregar-se ao Casamento), de Iris Krasnow, jornalista. É um livro breve, divertido, repleto de depoimentos e de confidências corajosas sobre o casamento da autora. Krasnow é exemplar de uma interessante tendência casamenteira, segundo a qual lidar com a imperfeição do casamento poderia ser, paradoxalmente, uma aventura extraordinária. Engraçado: o esforço para conviver com a mesmice, levado a sério, nos reservaria uma novidade a cada esquina.
De fato, o livro de Krasnow descobre (ou inventa, tanto faz) uma épica possível do casamento laborioso. Indiana Jones e Lara Croft (seu homólogo feminino) que procurem glória e tesouros não pelo mundo afora, mas nos pequenos esforços para manter unido um casal. Afinal, para muitos, mesmo após décadas de convivência, o cônjuge e a própria relação seguem sendo continentes inexplorados.
Se os esforços para manter ou reinventar o casamento nos parecessem tão emocionantes quanto a procura e o risco da novidade, o casamento encontraria um fôlego extraordinário, pois conciliaria a paixão pelo novo com a nostalgia de um porto seguro.
Em suma, o casal tornou-se descartável como a esferográfica e o isqueiro. "Não funciona mais? Jogue fora." A metade dos casamentos americanos quebra e acaba em divórcio. Mas nos últimos anos há certamente muitas pessoas querendo colar os cacos. Para alistar mais alguns, Krasnow pretende que esse empreendimento pode constituir um desafio complexo e envolvente como um bom sonho de aventura. Por que não? Há pletora de candidatos (prova disso: desde 1970, nos EUA, o número de profissionais licenciados como terapeutas de família e de casal multiplicou-se por 50).
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