No meu quarto, o espelho para enxergar-se de pé está ao lado da cama. Resultado: quando acordo, sento e vejo-me. Estranho um pouco, mas acabo reconhecendo a figura.
Poderia achar prazer em reencontrar-me. Mas, em geral, a experiência é de tédio ou de vaga decepção: não fui vítima de nenhuma metamorfose. Voltei do sono e sou o mesmo. Não virei barata, nem príncipe encantado. Que droga.
Essa sensação não me surpreende: há poucos traços tão relevantes na subjetividade moderna quanto a paixão pela mudança -e, por consequência, a ojeriza da mesmice. O gosto pela novidade é crucial em nossas vidas. Ele preside, por exemplo, à insaciável variedade dos objetos oferecidos a nossos apetites. Com isso, funciona como incentivo essencial para o sistema de produção e consumo no qual vivemos.
A paixão pelo novo e a ojeriza da mesmice não comandam apenas nossa relação com os objetos. Elas dominam também nossa experiência íntima. Queremos novidades não só nas ruas e nas vitrinas, mas em nossas vidas. Chegamos a medir a qualidade de uma existência pela variedade das experiências que ela proporciona. Lamentamos uma vida definida pelo tranquilo preenchimento de uma função. Preferimos a aventura.
Gostaríamos de ser Indiana Jones, mas à condição de passar direto de um filme da série para o seguinte, sem os intermezzos da rotina que -supõe-se- deve constituir a vida "normal" (estudo e ensino) do professor Jones.
Achamos mil culpados pela mesmice que nos assola. Mas logo a lista dos acusados chega a parceiros e parceiras -como se fossem bolas amarradas no pé, correntes que nos travam. O cônjuge torna-se a encarnação dos motivos pelos quais desistimos do novo e da aventura. Ele é responsável por nosso tédio, culpado de toda estagnação. Ele carrega, aos nossos olhos, os estigmas da mesmice: imaginamos dever-lhe tudo o que parece nos prender -um domicílio, a responsabilidade de sermos pais, mais uma família que se acrescenta ao peso da nossa família de origem etc.
De fato, o cônjuge é acusado injustamente: geralmente ele é apenas o porta-voz do medo que acompanha e modera nossa paixão pelo novo. Somos filhos de uma cultura que, ao mesmo tempo, promove o pequeno núcleo familiar fundado no amor e idealiza a liberdade de quem não pára de se reinventar sozinho. Queremos aventura, mas receamos esse nosso desejo e procuramos portos seguros. Culpar o cônjuge é uma maneira de evitar a contradição.
Respeitando esse dilema, a literatura de ajuda, descrição e análise do casamento segue duas tendências. Há os aventureiros, que encorajam homens e mulheres a -expressão consagrada- "realizarem seu potencial" perseguindo novos horizontes. E há os casamenteiros, partidários de compromissos e negociações que permitiriam atravessar a vida de mão dada.
Na última década, os casamenteiros parecem prevalecer. Como medida preliminar, todos eles pedem que não esperemos eternos transportes de felicidade amorosa e sexual. Ou seja, sugerem que não contemos encontrar no casamento as mesmas fortes emoções que procuramos em nossas aventuras (sonhadas ou verdadeiras). Infelizmente, não há como colocar muita fé nos efeitos desses conselhos bem-intencionados: fracassam como convites para uma festa chocha. Mas eis que acabo de ler "Surrendering to Marriage" (Entregar-se ao Casamento), de Iris Krasnow, jornalista. É um livro breve, divertido, repleto de depoimentos e de confidências corajosas sobre o casamento da autora. Krasnow é exemplar de uma interessante tendência casamenteira, segundo a qual lidar com a imperfeição do casamento poderia ser, paradoxalmente, uma aventura extraordinária. Engraçado: o esforço para conviver com a mesmice, levado a sério, nos reservaria uma novidade a cada esquina.
De fato, o livro de Krasnow descobre (ou inventa, tanto faz) uma épica possível do casamento laborioso. Indiana Jones e Lara Croft (seu homólogo feminino) que procurem glória e tesouros não pelo mundo afora, mas nos pequenos esforços para manter unido um casal. Afinal, para muitos, mesmo após décadas de convivência, o cônjuge e a própria relação seguem sendo continentes inexplorados.
Se os esforços para manter ou reinventar o casamento nos parecessem tão emocionantes quanto a procura e o risco da novidade, o casamento encontraria um fôlego extraordinário, pois conciliaria a paixão pelo novo com a nostalgia de um porto seguro.
Em suma, o casal tornou-se descartável como a esferográfica e o isqueiro. "Não funciona mais? Jogue fora." A metade dos casamentos americanos quebra e acaba em divórcio. Mas nos últimos anos há certamente muitas pessoas querendo colar os cacos. Para alistar mais alguns, Krasnow pretende que esse empreendimento pode constituir um desafio complexo e envolvente como um bom sonho de aventura. Por que não? Há pletora de candidatos (prova disso: desde 1970, nos EUA, o número de profissionais licenciados como terapeutas de família e de casal multiplicou-se por 50).
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