31 maio 2001

"Pearl Harbor" pode ser uma meditação sobre a decadência

"Pearl Harbor" chega às salas brasileiras amanhã. A estréia americana, no fim de semana passado, não foi um triunfo -apenas um sucesso. Não estranhei, pois o filme é um pouco amargo para os espectadores dos EUA.

Assisti duas vezes a ele: queria retomar o pulso da platéia que me pareceu, certo, comovida com os amores, as amizades e os heroísmos, mas, sobretudo e paradoxalmente, triste e pensativa.
Não sei se "Pearl Harbor" será um sucesso no Brasil. Talvez os efeitos especiais e o dramalhão toquem um refrão universal, do tipo "Titanic". De qualquer forma, o filme é interessante para quem queira entender o momento atual da consciência americana.

"Pearl Harbor" é o último fogo de artifício de uma década que idealiza intensamente a geração de americanos que lutaram na Segunda Guerra Mundial.

São chamados "the greatest generation", a maior das gerações: a eles são consagrados livros, programas de televisão, documentários, filmes e monumentos. Segundo a cultura popular, esses pais ideais foram capazes de paixões, amores e amizades sublimes. Mesmo vivendo tão intensamente, sabiam reconhecer seu dever e identificar a hora do sacrifício. Eram sempre voluntários, sem choramingar. Cresceram nos anos 20 e 30, uma época em que (sempre segundo a fantasia ideal) o problema não era como ostentar luxos, mas como colocar na mesa o pão de cada dia. Tinham instrução média, sem "frescuras" intelectuais, mas com orgulhosa independência de espírito. Tinham ambições saudáveis e limitadas. Eram idealmente de origem rural -por isso sabiam caçar, pescar, arrumar seus carros, construir casas e, enfim, souberam lutar.

Não sei se os homens da "grande geração" foram mesmo desse jeito. Mas é certo que nem sempre a cultura popular imaginou que fossem assim. Ao contrário. Os cinéfilos lembram-se de "From Here to Eternity" ("A um Passo da Eternidade"), Oscar de 53. Sem efeitos especiais, é "Pearl Harbor" imaginado 50 anos atrás por um olhar impiedoso. Esse olhar durou até os anos 80. Em 79, num remake do filme de 53, os protagonistas são ainda mais sinistros. Os homens destinados à eternidade da glória são um soldado que se apaixona por uma prostituta e um sargento que consegue transar com a mulher do capitão (que é uma perua). Aparentemente, dos anos 50 aos 80, os americanos não precisaram idealizar tanto seus grandes guerreiros.

Hoje o monumento erigido à "grande geração" parece ser o doloroso serviço fúnebre da grande figura mítica americana: uma mistura do homem da milícia que defendeu sua independência contra os ingleses com o homem da fronteira em luta contra os índios, os elementos e a modernização. É "O Patriota" com "Jeremiah Johnson". Esse mito do cidadão soldado acompanhou os combatentes americanos da Segunda Guerra Mundial: os voluntários de 41 e 42 assistiram a "Sergeant York" (1941), que foi filmado para eles. Como Gary Cooper, eram (ou se imaginavam) livres-pensadores rurais, atiradores temíveis, herdeiros de Davy Crockett e Daniel Boone.

Ora, aconteceu que, de 50 a 90, os EUA prosperaram demais. A crítica ou mesmo a irrisão dos ideais e das vidas "simples" da grande geração serviu para que os "baby-boomers" (os que nasceram na explosão populacional posterior à Segunda Guerra Mundial) se autorizassem a perseguir conforto e riqueza, evitando o peso de tributos excessivos ao dever e à comunidade. De repente, hoje, aqueles antigos ideais fazem falta. Os heróis de "Pearl Harbor", como o sargento York, pertencem a uma espécie de americano que está em via de extinção. Descobre-se hoje que talvez eles sejam indispensáveis para dar sentido à nação.

Na sala de cinema, sexta-feira, à minha esquerda, uma moça chora. À direita, um homem chegou pronto para uma orgia de pipoca, chocolate e Coca-Cola, mas deixou tudo no chão, intato. Na saída, adolescentes conversam sobre a possibilidade de entrar para a Marinha e ganhar assim uma bolsa para a universidade. Um deles aponta o dedo para um amigo: "Você não tem colhão para isso". Ninguém no grupo acha graça. É que a questão parece pairar no ar para todos: como Roosevelt diz no filme, o mundo pensava que os americanos fossem uma nação de fracotes e playboys, eles (a grande geração) mostraram o contrário -e nós, agora, o que somos?

Em 66/67, passei um bom tempo em Houston, Texas. Vivia na casa de Bob, que era então meu sogro -numa periferia onde os restos rurais lutavam contra a invasão da caricatura suburbana. Com Bob, conheci a América da grande geração.

Era um universo machista, às vezes (mas nem sempre) racista, com um perfume de lubrificante de armas, de pólvora e de isca viva para pescar, com conversas sobre caça e munições, com óleo de motor e de freios no chão de garagens que pareciam oficinas mecânicas.
Hoje, nas bancas de jornais americanas, a seção de revistas de armas, caça e pesca -que ainda era enorme nos anos 60- é invadida pelas revistas de "fitness", de computação e de investimento.

Nesse contexto, para os americanos, lembrar-se de Pearl Harbor pode ser uma meditação sobre a decadência

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