Desde o ataque terrorista do 11 de setembro, recebo regularmente e-mails que dizem, em síntese: "Lamento os mortos, mas o que aconteceu é a retribuição de políticas americanas iníquas contra o Terceiro Mundo". Alguns declaram, cinematograficamente, que, ao verem as torres caindo, eles enxergaram, em transparência, os rostos aflitos de crianças famintas pelo mundo afora.
Um amigo, comentando essa substituição de vítima por vítima, evocou suas emoções depois do massacre do Carandiru. Eram parecidas com as minhas: na época, contemplando aqueles cadáveres costurados sumariamente depois da autópsia, não quis pensar nos rostos dos sujeitos assassinados que tinham sido as vítimas diretas de muitos detentos mortos. Preferi pensar no desespero dos últimos instantes dos presos e, sobretudo, imaginar os momentos banais de suas vidas: peladas de vila, amigos, namoradas, brigas de bar, sinucas, esperanças. Por isso pude lamentar suas mortes. Por que fazer menos pelas vítimas de Nova York?
Os e-mails que resumi acima sugerem também que os mortos das torres gêmeas sejam responsáveis pelas injustiças cometidas pelos EUA ou pelo Ocidente nos últimos 50 anos.
Pensei em responder que não via como lava-pratos brasileiros, lava-vidros mexicanos, homens da manutenção, telefonistas, recepcionistas, garçons, garçonetes, secretárias, turistas e tradutores seriam responsáveis pelas culpas do capital financeiro mundial.
Mas logo achei essa resposta abominável. Pois, ao diferenciar os trabalhadores manuais e subordinados, era como se eu aceitasse que os outros, de corretor para cima, tivessem morrido expiando uma culpa. Não quero discutir o fundamento dessa culpa. Espanta-me mais o seguinte: para que a morte desses sujeitos seja, de alguma forma, justificada pelos malfeitos do capital, eles devem ser identificados perfeitamente com suas funções na economia global. Como se diz nos EUA, eles devem ser vistos apenas como "suits", ternos vazios.
Um de meus correspondentes acrescenta que, de qualquer forma, os funcionários do World Trade Center eram "todos alienados", ou seja, eles tinham, num pacto diabólico, entregado suas vidas em troca dos ditos ternos.
Cada vez mais, parece-me que, quando denunciamos a alienação dos outros, quase sempre operamos uma extraordinária violência: negamos suas vidas concretas. É por esse caminho que o terrorista transforma qualquer um em alvo: ele não enxerga nunca as existências, só a funcionalidade de todos no sistema que ele combate. Há uma criança no avião? É apenas mais um expoente do mundo inimigo: quem sabe, um futuro dirigente do FMI. Essa redução é fácil para o terrorista, pois ele já fez o mesmo com sua própria vida: renunciou à existência para se tornar puro instrumento (de destruição).
Tomemos duas frases: "Os marajás do capital financeiro do World Trade Center eram responsáveis pela fome na África". Ou então: "Os fundamentalistas bombardeados no Afeganistão são responsáveis pelo horror repressivo de sua sociedade e pelo terrorismo". Pouco importa aqui que essas implicações de responsabilidade sejam demonstradas ou não. De qualquer forma, as frases desumanizam os sujeitos dos quais elas falam. Para dizermos que foram devorados pela ganância ou pelo extremismo de sua fé, anulamos a lembrança de sua humanidade concreta. Ora, é essa que não quero esquecer.
Não me importa pensar nos corretores das torres gêmeas comprando e vendendo ações e, quem sabe, cinicamente decretando fome e desemprego. Mas me importa lembrar as glórias e misérias de suas vidas cotidianas, as fantasias sexuais frustradas ou não, os pequenos segredos, as indulgências, os prazeres, os ciúmes, as raivas, os gestos banais do dia-a-dia. Do mesmo jeito, estou farto de ver os fundamentalistas rezando ou lendo o Alcorão. Quero pensar neles em casa, quando as mulheres enfim tiram seus véus. Quero imaginar o segredo de suas transgressões inconfessáveis e de suas vergonhas. Ou simplesmente a preparação do chá, enquanto batem papo na frente de casa.
Muito mais do que a fisiologia comum dos corpos, é a lembrança da vida concreta que nos permite obedecer ao primeiro preceito da cultura ocidental, pelo qual todos os humanos são nossos semelhantes.
Nestes dias de guerra, posso acreditar que haja diferenças e oposições que sejam insolúveis sem um conflito. Escolho meu campo e tomo posição, mas não quero esquecer a vida cotidiana de todos (aliás, escolho meu campo por ser aquele que, a meu ver, menos esquece a vida concreta de seus inimigos).
Por isso também privilegio a interpretação psicológica das motivações. Porque a psicologia acredita na relevância dos percalços da vida concreta. Ou seja, dá importância ao terreno comum, onde imagino que todos os humanos se encontrem -aquela parte da experiência cotidiana que talvez se situe aquém das diferenças: tomar a febre do filho com a mão, preparar a comida do cachorro, desejar aquele ou aquela que não deveríamos, chorar os defuntos.
25 outubro 2001
18 outubro 2001
Al Qaeda conta com o pacifismo incondicional
Na quinta-feira passada, Suleiman Abou-Gheit, porta-voz da organização terrorista Al Qaeda, declarou que, "nas nações islâmicas, há milhares de jovens ansiosos por morrer, enquanto os americanos estão ansiosos por viver".
Se for assim, o terror ganhará a guerra. Como os americanos e, por extensão, nós, ocidentais, resistiríamos a um Exército que deseja sua própria morte, enquanto, mesquinhos, queremos preservar nossas vidas? Os que encararem a morte com desenvoltura serão mestres, os que preferirem minimizar os riscos serão escravos.
É certo que houve, vindos de várias nações islâmicas, muitos jovens ansiosos por morrer. No começo, pensamos que eles fossem animados por uma fé absoluta nas recompensas do além. O espírito crítico de nossa cultura nos torna desconfiados e céticos. Por contraste, a convicção maluca dos assassinos era exótica e podia nos parecer quase invejável, como se fosse uma qualidade moral perdida pela modernidade.
Essa explicação inicial encontrou um paradoxo: os pilotos assassinos não eram homens religiosos. A reconstituição de seus últimos dias incluía bebida e clubes de "go-go girls". Com essa descoberta, a coisa ficou mais familiar. A força de uma fé absoluta constituía para nós um mistério. Mas sabemos do que é capaz o esforço para reprimir desejos que são fortes dentro de nós e, apesar disso, inaceitáveis. Conheci anos atrás um jovem que, perseguido por paixões masturbatórias proibidas, se automutilou. O vôo dos pilotos assassinos podia ser algo parecido: uma maneira de cortar brutalmente seu próprio desejo de "go-go girls", matando, com uma cacetada só, o desejo (ou seja, a si mesmos) e as "go-go girls".
Em suma, milhares (?) de jovens querem morrer matando outros que querem viver e que bebem e se permitem "go-go girls". Para os assassinos suicidas, a matança é um remédio contra sua própria vontade de ser como aqueles que querem viver -vontade de álcool e de "go-go girls". A fé seria uma racionalização. A repressão seria a verdadeira motivação.
Apareceu mais um elemento para explicar a determinação dos terroristas. Na última semana, três mulheres (duas delas americanas) me confessaram que, ao assistirem às falas de Osama bin Laden, sentiram-se atraídas quase fisicamente sem saber por que característica. Nos jornais, as fotografias de paquistaneses e de palestinos acariciando a imagem do terrorista não dizem outra coisa: independentemente de seus planos geopolíticos (obscuros), Osama bin Laden fascina e seduz.
Como? Prometendo uma morte bela. Aliás, é sempre com essa promessa que o terror e os fascismos recrutam: quem morrer por nós e conosco morrerá bonito. As elites quase sempre tentam convencer seus oprimidos de que a miséria é bonita (o Brasil conhece bem essa tática). Ora, o rebento mais famoso da elite saudita melhorou o esquema: achou o jeito de acalmar os oprimidos do islã, prometendo-lhes que sua morte seria bonita. A morte é o mestre absoluto, que ganha de nós todos -sempre. Morrer é a prova de nossos limites. Desagradável, não é? Bom, transformar nossa morte numa apoteose narcisista, numa imagem de grande beleza, é o melhor jeito de negar nossos limites. A nossa morte será o próprio monumento que nos eternizará. Era isso que podia animar os pilotos suicidas e assassinos na hora do impacto: uma imagem de si mesmos enaltecida pelo sacrifício e pelo horror. Lá vou eu, triunfando na morte. Bin Laden seduz por ser um maquiador de cadáveres.
Com isso, a determinação dos terroristas dilui-se num meandro de conflitos psíquicos banais.
Mesmo assim, nossa chance de resistir aos apóstolos da morte seria pequena, se fosse verdade que nós e nossos jovens queremos apenas viver. Se garantir nossa sobrevivência for a razão principal de nossa existência, então não haverá como resistir ao terror. Quem quer viver a qualquer custo nunca levanta para lutar. Será que Abou-Gheit tem razão?
É o que me parece quando ouço, nestes dias, a insistência de um discurso pacifista incondicional, que simplesmente pede que ninguém mais seja morto ou ferido. Tudo é aceitável em troca da sobrevivência: baixem as armas, não quero nem saber o porquê da briga, só tomo posição em favor da vida e não respondo à pergunta: "Qual vida?". É um discurso coerente com um traço marcante da cultura contemporânea, segundo o qual o culto ao corpo e à saúde parecem valer como única ética coletiva.
Em contraponto, os passageiros do quarto avião sequestrado no 11 de setembro, quando souberam do destino dos outros aviões, rebelaram-se. Um deles falou no celular com sua mulher, a qual lhe sugeriu que ficasse calmo e, quem sabe, assim salvasse a pele. Antes de desligar e passar à ação, ele disse: "Algo precisa ser feito".
Talvez Abou-Gheit esteja errado em seu entendimento da modernidade ocidental. É verdade que, para nós, a vida é um valor, e a morte nunca nos parece bela. Mas também é verdade que essa "consciência" não nos torna todos necessariamente covardes.
Se for assim, o terror ganhará a guerra. Como os americanos e, por extensão, nós, ocidentais, resistiríamos a um Exército que deseja sua própria morte, enquanto, mesquinhos, queremos preservar nossas vidas? Os que encararem a morte com desenvoltura serão mestres, os que preferirem minimizar os riscos serão escravos.
É certo que houve, vindos de várias nações islâmicas, muitos jovens ansiosos por morrer. No começo, pensamos que eles fossem animados por uma fé absoluta nas recompensas do além. O espírito crítico de nossa cultura nos torna desconfiados e céticos. Por contraste, a convicção maluca dos assassinos era exótica e podia nos parecer quase invejável, como se fosse uma qualidade moral perdida pela modernidade.
Essa explicação inicial encontrou um paradoxo: os pilotos assassinos não eram homens religiosos. A reconstituição de seus últimos dias incluía bebida e clubes de "go-go girls". Com essa descoberta, a coisa ficou mais familiar. A força de uma fé absoluta constituía para nós um mistério. Mas sabemos do que é capaz o esforço para reprimir desejos que são fortes dentro de nós e, apesar disso, inaceitáveis. Conheci anos atrás um jovem que, perseguido por paixões masturbatórias proibidas, se automutilou. O vôo dos pilotos assassinos podia ser algo parecido: uma maneira de cortar brutalmente seu próprio desejo de "go-go girls", matando, com uma cacetada só, o desejo (ou seja, a si mesmos) e as "go-go girls".
Em suma, milhares (?) de jovens querem morrer matando outros que querem viver e que bebem e se permitem "go-go girls". Para os assassinos suicidas, a matança é um remédio contra sua própria vontade de ser como aqueles que querem viver -vontade de álcool e de "go-go girls". A fé seria uma racionalização. A repressão seria a verdadeira motivação.
Apareceu mais um elemento para explicar a determinação dos terroristas. Na última semana, três mulheres (duas delas americanas) me confessaram que, ao assistirem às falas de Osama bin Laden, sentiram-se atraídas quase fisicamente sem saber por que característica. Nos jornais, as fotografias de paquistaneses e de palestinos acariciando a imagem do terrorista não dizem outra coisa: independentemente de seus planos geopolíticos (obscuros), Osama bin Laden fascina e seduz.
Como? Prometendo uma morte bela. Aliás, é sempre com essa promessa que o terror e os fascismos recrutam: quem morrer por nós e conosco morrerá bonito. As elites quase sempre tentam convencer seus oprimidos de que a miséria é bonita (o Brasil conhece bem essa tática). Ora, o rebento mais famoso da elite saudita melhorou o esquema: achou o jeito de acalmar os oprimidos do islã, prometendo-lhes que sua morte seria bonita. A morte é o mestre absoluto, que ganha de nós todos -sempre. Morrer é a prova de nossos limites. Desagradável, não é? Bom, transformar nossa morte numa apoteose narcisista, numa imagem de grande beleza, é o melhor jeito de negar nossos limites. A nossa morte será o próprio monumento que nos eternizará. Era isso que podia animar os pilotos suicidas e assassinos na hora do impacto: uma imagem de si mesmos enaltecida pelo sacrifício e pelo horror. Lá vou eu, triunfando na morte. Bin Laden seduz por ser um maquiador de cadáveres.
Com isso, a determinação dos terroristas dilui-se num meandro de conflitos psíquicos banais.
Mesmo assim, nossa chance de resistir aos apóstolos da morte seria pequena, se fosse verdade que nós e nossos jovens queremos apenas viver. Se garantir nossa sobrevivência for a razão principal de nossa existência, então não haverá como resistir ao terror. Quem quer viver a qualquer custo nunca levanta para lutar. Será que Abou-Gheit tem razão?
É o que me parece quando ouço, nestes dias, a insistência de um discurso pacifista incondicional, que simplesmente pede que ninguém mais seja morto ou ferido. Tudo é aceitável em troca da sobrevivência: baixem as armas, não quero nem saber o porquê da briga, só tomo posição em favor da vida e não respondo à pergunta: "Qual vida?". É um discurso coerente com um traço marcante da cultura contemporânea, segundo o qual o culto ao corpo e à saúde parecem valer como única ética coletiva.
Em contraponto, os passageiros do quarto avião sequestrado no 11 de setembro, quando souberam do destino dos outros aviões, rebelaram-se. Um deles falou no celular com sua mulher, a qual lhe sugeriu que ficasse calmo e, quem sabe, assim salvasse a pele. Antes de desligar e passar à ação, ele disse: "Algo precisa ser feito".
Talvez Abou-Gheit esteja errado em seu entendimento da modernidade ocidental. É verdade que, para nós, a vida é um valor, e a morte nunca nos parece bela. Mas também é verdade que essa "consciência" não nos torna todos necessariamente covardes.
11 outubro 2001
Os jovens da Universidade Columbia e a guerra
No fim de semana passado, estive no campus da Universidade Columbia, em Nova York. Havia poucas bandeiras americanas nas janelas -bem menos do que a média da cidade. Também faltavam as bandeiras da paz. A universidade foi, 30 anos atrás, um centro ativo dos protestos contra a Guerra do Vietnã. Mas, no domingo, não encontrei um cartaz que convocasse os estudantes para um debate ou para um desfile sobre ou contra a guerra.
Nos bares do campus, não escutei nenhuma fala espontânea sobre o ataque. Desde 11 de setembro, alguns estudantes sequer foram para a ponta sul de Manhattan. Preferiram ignorar a destruição do World Trade Center.
Lancei uma conversa. Meu jovem interlocutor afirmou que o ataque terrorista foi horrível e que seria certo pegar os culpados, mas reiterou que era contra qualquer guerra: não estava disposto a correr o risco de ser chamado numa leva de recrutas e não queria que morressem civis -nem mesmo por engano.
Entendi assim: "Não queremos nada que possa comprometer o clima agradável no qual nos preparamos para ser a elite norte-americana de amanhã".
Em suma, os jovens que encontrei pareciam cheios de boas intenções, mas interessados sobretudo em seu bem-estar imediato e futuro. Ia resignar-me à idéia de que a juventude crescida na década próspera (os anos 90) fosse propriamente cínica, quando aprendi que um número relativamente alto de ex-alunos da Universidade Columbia morreu no ataque do dia 11 de setembro.
Ou seja, meus interlocutores estudantes são destinados, eventualmente, ao tipo de emprego que poderia levá-los a estar nas torres gêmeas do World Trade Center no dia do ataque.
Apesar disso, eles evitavam pensar nos mortos do dia 11 de setembro e preferiam lamentar as possíveis vítimas dos bombardeios da resposta norte-americana.
Em outras palavras, eles reagiam como se não pudessem tomar partido de seus semelhantes imediatos -como se, por alguma regra implícita, fosse mais fácil e mais justo identificar-se com os afegãos do Taleban do que com aqueles que, convencionalmente, seriam "os seus".
Assim descobri que esses jovens -nata das melhores escolas secundárias dos EUA- não são filhos cínicos do privilégio, querendo apenas preservar seu conforto. Eles são, de fato, os filhos do grande projeto multiculturalista dos EUA. Nas últimas duas décadas, o país tentou levar a sério e realizar um dos corolários da cultura ocidental moderna: a idéia de que o convívio da comunidade humana deve ser possível para a espécie toda, sem depender de etnias, raças e culturas. É assim que continua a antiga ambição norte-americana de apresentar ao mundo uma sociedade exemplar.
Desta vez, é o exemplo da nação em que conviveriam todas as nações. Por consequência, multiplicaram-se as políticas ativas para que, no caso, as salas de aula fossem cultural, étnica e socialmente heterogêneas, diversas.
Surgiram cuidados quase paranóicos para que, nessa diversidade, nenhuma posição fosse privilegiada. O resultado é uma juventude admiravelmente disposta a reconhecer a humanidade dos outros, por diferentes que sejam, e com vergonha de aderir ao seu próprio grupo étnico, social ou mesmo nacional.
Esses jovens foram educados para ser uma elite à altura do novo sonho americano: o de um país em que todas as diferenças seriam respeitadas com harmonia.
À primeira vista, deveríamos festejar a chegada dessa geração, que acredita num mundo de convívios pacíficos. Mas há um problema: a educação que faz desses jovens os campeões do multiculturalismo, pode torná-los ineptos em caso de enfrentamento.
Pelo ensino que receberam, eles acham sempre que o mais urgente é entender as razões dos outros. É uma atitude bonita, mas que os impede de reconhecer os inimigos e, portanto, de defender-se.
Não sei se os bombardeios desses dias são a melhor ou a única estratégia possível contra o terror. Mas concordo com a idéia de Tony Blair -de que a inação pode comportar mais riscos do que a ação. Ora, o que aconteceria se esses jovens tivessem a responsabilidade de enfrentar os projetos geopolíticos de um assassino ambicioso como Osama bin Laden?
Outro problema, em perspectiva: a nova geração multiculturalista não resolve a antiga fratura social americana. Ao contrário. Na América profunda, o multiculturalismo teve certamente o efeito concreto de diminuir as segregações raciais e sociais. Mas ele não veio a ser a ideologia positiva dominante. Os jovens dessa América menos favorecida continuam sabendo reconhecer e determinar seus inimigos.
Eles irão para a guerra. Darão, se for preciso, suas vidas para defender uma elite que preservará não só seus privilégios, mas também sua boa consciência. Pois essa nova elite, assim protegida, dar-se-á o luxo de desaprovar qualquer guerra e de menosprezar seus próprios combatentes, perguntando do alto de seu conforto: afinal, por que eles teimam em ver inimigos onde só há sujeitos diferentes de nós, na espera de nossa benévola compreensão?
Nos bares do campus, não escutei nenhuma fala espontânea sobre o ataque. Desde 11 de setembro, alguns estudantes sequer foram para a ponta sul de Manhattan. Preferiram ignorar a destruição do World Trade Center.
Lancei uma conversa. Meu jovem interlocutor afirmou que o ataque terrorista foi horrível e que seria certo pegar os culpados, mas reiterou que era contra qualquer guerra: não estava disposto a correr o risco de ser chamado numa leva de recrutas e não queria que morressem civis -nem mesmo por engano.
Entendi assim: "Não queremos nada que possa comprometer o clima agradável no qual nos preparamos para ser a elite norte-americana de amanhã".
Em suma, os jovens que encontrei pareciam cheios de boas intenções, mas interessados sobretudo em seu bem-estar imediato e futuro. Ia resignar-me à idéia de que a juventude crescida na década próspera (os anos 90) fosse propriamente cínica, quando aprendi que um número relativamente alto de ex-alunos da Universidade Columbia morreu no ataque do dia 11 de setembro.
Ou seja, meus interlocutores estudantes são destinados, eventualmente, ao tipo de emprego que poderia levá-los a estar nas torres gêmeas do World Trade Center no dia do ataque.
Apesar disso, eles evitavam pensar nos mortos do dia 11 de setembro e preferiam lamentar as possíveis vítimas dos bombardeios da resposta norte-americana.
Em outras palavras, eles reagiam como se não pudessem tomar partido de seus semelhantes imediatos -como se, por alguma regra implícita, fosse mais fácil e mais justo identificar-se com os afegãos do Taleban do que com aqueles que, convencionalmente, seriam "os seus".
Assim descobri que esses jovens -nata das melhores escolas secundárias dos EUA- não são filhos cínicos do privilégio, querendo apenas preservar seu conforto. Eles são, de fato, os filhos do grande projeto multiculturalista dos EUA. Nas últimas duas décadas, o país tentou levar a sério e realizar um dos corolários da cultura ocidental moderna: a idéia de que o convívio da comunidade humana deve ser possível para a espécie toda, sem depender de etnias, raças e culturas. É assim que continua a antiga ambição norte-americana de apresentar ao mundo uma sociedade exemplar.
Desta vez, é o exemplo da nação em que conviveriam todas as nações. Por consequência, multiplicaram-se as políticas ativas para que, no caso, as salas de aula fossem cultural, étnica e socialmente heterogêneas, diversas.
Surgiram cuidados quase paranóicos para que, nessa diversidade, nenhuma posição fosse privilegiada. O resultado é uma juventude admiravelmente disposta a reconhecer a humanidade dos outros, por diferentes que sejam, e com vergonha de aderir ao seu próprio grupo étnico, social ou mesmo nacional.
Esses jovens foram educados para ser uma elite à altura do novo sonho americano: o de um país em que todas as diferenças seriam respeitadas com harmonia.
À primeira vista, deveríamos festejar a chegada dessa geração, que acredita num mundo de convívios pacíficos. Mas há um problema: a educação que faz desses jovens os campeões do multiculturalismo, pode torná-los ineptos em caso de enfrentamento.
Pelo ensino que receberam, eles acham sempre que o mais urgente é entender as razões dos outros. É uma atitude bonita, mas que os impede de reconhecer os inimigos e, portanto, de defender-se.
Não sei se os bombardeios desses dias são a melhor ou a única estratégia possível contra o terror. Mas concordo com a idéia de Tony Blair -de que a inação pode comportar mais riscos do que a ação. Ora, o que aconteceria se esses jovens tivessem a responsabilidade de enfrentar os projetos geopolíticos de um assassino ambicioso como Osama bin Laden?
Outro problema, em perspectiva: a nova geração multiculturalista não resolve a antiga fratura social americana. Ao contrário. Na América profunda, o multiculturalismo teve certamente o efeito concreto de diminuir as segregações raciais e sociais. Mas ele não veio a ser a ideologia positiva dominante. Os jovens dessa América menos favorecida continuam sabendo reconhecer e determinar seus inimigos.
Eles irão para a guerra. Darão, se for preciso, suas vidas para defender uma elite que preservará não só seus privilégios, mas também sua boa consciência. Pois essa nova elite, assim protegida, dar-se-á o luxo de desaprovar qualquer guerra e de menosprezar seus próprios combatentes, perguntando do alto de seu conforto: afinal, por que eles teimam em ver inimigos onde só há sujeitos diferentes de nós, na espera de nossa benévola compreensão?
04 outubro 2001
Escombros do World Trade Center
BABEL
Até a semana passada, das torres do World Trade Center sobrava um esqueleto metálico de sete andares que foi fotografado mil vezes: espécie de triângulo de arcos sobrepostos no meio da fumaça que emanava dos escombros.
A imagem evocava as formas que a iconografia da Renascença atribuiu à torre de Babel: justamente andares de arcos afinando progressivamente na subida -como se a torre fosse um cone. Os restos das torres se assemelhavam, em suma, aos restos da torre de Babel depois da cólera divina.
A similitude era reforçada pela interpretação imediata do enfrentamento que levou à catástrofe. Nas torres trabalhavam (e morreram) pessoas vindas de cada canto da terra. Aparentemente, eles tinham realizado o antigo projeto de Babel: conviviam e, bem ou mal, comunicavam-se (concordando ou discordando) apesar das diferenças étnicas, linguísticas, religiosas e sociais. Esse projeto ambicioso de convivência universal foi abatido, como na história bíblica, por clarões de cólera divina -melhor dito (e para deixar os deuses fora dessa), por sujeitos convencidos de serem os braços da cólera divina.
Mas essa é a impressão imediata. Os escombros sugerem também uma meditação mais complexa e mais desesperada.
As torres acrescentavam uma especificação ao antigo desejo de Babel. A denominação (World Trade Center, que quer dizer Centro Mundial do Comércio) e a função das torres sugeriam o seguinte: o projeto de uma humanidade que ultrapasse suas diferenças está sendo realizado pela modernidade ocidental, mas ao preço da primazia do mercado na vida humana.
Ou seja, se formos todos homens econômicos, seremos suficientemente parecidos para que a comunicação entre nós seja fácil. O comércio será nossa pátria comum. Vamos nos definir como força de trabalho, como poder de compra ou como consumidores. Vamos detalhar nossas ambições em listas de mercadorias. Desde então, por mais que desejemos coisas diferentes e escolhamos estilos de vida distintos, teremos uma língua comum. O risco será que, a esta altura, não tenhamos nada muito interessante para conversar.
Ora, como alternativa à primazia do mercado que nos permitiria sermos cidadãos de um mesmo mundo, os terroristas viriam com um particularismo tribal que nem contempla a possibilidade da convivência com o diferente.
Proporção: a globalização estaria para as torres do World Trade Center como a antiglobalização estaria para o fundamentalismo dos terroristas que as demoliram.
Será que nosso destino está preso entre vivermos juntos como puros agentes econômicos e exaltarmos nossas diferenças como fés irredutíveis e inconciliáveis?
BANDEIRAS
Nestes dias, é banal encontrar nos jornais a imagem de pequenos grupos, nas ruas de algum país islâmico, queimando bandeiras americanas. Todos exultam e olham para a câmara com um ar satisfeito, na esperança de que um espectador americano sofra com esse vitupério que, a seus autores, deve parecer extremo.
Será que eles sabem que, nos EUA, se discute regularmente para defender o direito de queimar a bandeira como forma de protestar? Sabem que esse ato se tornou comum desde as manifestações dos anos 60?
Coloco essa pergunta para um amigo paquistanês-americano. Responde que obviamente eles não sabem. Nem imaginam. Mas, se soubessem que queimar a bandeira americana é permitido nos EUA, não teriam admiração nenhuma por essa forma extrema de democracia. Ao contrário, desprezariam ainda mais uma nação que lhes pareceria indigna por deixar que seus cidadãos ultrajem o símbolo do país.
Impasse da diferença: nossas liberdades aparecem como provas de decadência aos olhos dos fundamentalistas. E as obediências das quais eles se orgulham são, para nós, a assinatura do atraso.
VULNERABILIDADE
Os terroristas frequentaram escolas de pilotagem nos EUA. Outros suspeitos, interrogados recentemente pelo FBI, estavam preparando a carteira especial para dirigir caminhões com carga tóxica ou explosiva. Aqui é fácil estudar, circular, reunir-se sem ter de esconder a diferença. Osama bin Laden - se é, como parece, o mandatário do ataque- deve achar que os ocidentais, e sobretudo os americanos, são perfeitos panacas, pois veneram logo as liberdades, que, de fato, lhe facilitaram o trabalho.
Infelizmente, as coisas podem mudar. O cotidiano americano está sendo transformado pelas necessidades do combate contra a infiltração terrorista. O embarque, nos aeroportos, está cada vez mais lento. Há filas para atravessar as pontes que vão para Manhattan, pois os veículos são revistados. Há blitze na proximidade dos reservatórios de água. Se houver novos atentados, chegará algum tipo de legislação de exceção. O uso de critérios étnicos no trabalho da polícia será tolerado, se não autorizado. Será o primeiro verdadeiro sucesso dos terroristas: levar os EUA, a Europa e, aos poucos, todo o Ocidente a comprometer as liberdades, que são a melhor parte de nossa cultura.
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