Desde o ataque terrorista do 11 de setembro, recebo regularmente e-mails que dizem, em síntese: "Lamento os mortos, mas o que aconteceu é a retribuição de políticas americanas iníquas contra o Terceiro Mundo". Alguns declaram, cinematograficamente, que, ao verem as torres caindo, eles enxergaram, em transparência, os rostos aflitos de crianças famintas pelo mundo afora.
Um amigo, comentando essa substituição de vítima por vítima, evocou suas emoções depois do massacre do Carandiru. Eram parecidas com as minhas: na época, contemplando aqueles cadáveres costurados sumariamente depois da autópsia, não quis pensar nos rostos dos sujeitos assassinados que tinham sido as vítimas diretas de muitos detentos mortos. Preferi pensar no desespero dos últimos instantes dos presos e, sobretudo, imaginar os momentos banais de suas vidas: peladas de vila, amigos, namoradas, brigas de bar, sinucas, esperanças. Por isso pude lamentar suas mortes. Por que fazer menos pelas vítimas de Nova York?
Os e-mails que resumi acima sugerem também que os mortos das torres gêmeas sejam responsáveis pelas injustiças cometidas pelos EUA ou pelo Ocidente nos últimos 50 anos.
Pensei em responder que não via como lava-pratos brasileiros, lava-vidros mexicanos, homens da manutenção, telefonistas, recepcionistas, garçons, garçonetes, secretárias, turistas e tradutores seriam responsáveis pelas culpas do capital financeiro mundial.
Mas logo achei essa resposta abominável. Pois, ao diferenciar os trabalhadores manuais e subordinados, era como se eu aceitasse que os outros, de corretor para cima, tivessem morrido expiando uma culpa. Não quero discutir o fundamento dessa culpa. Espanta-me mais o seguinte: para que a morte desses sujeitos seja, de alguma forma, justificada pelos malfeitos do capital, eles devem ser identificados perfeitamente com suas funções na economia global. Como se diz nos EUA, eles devem ser vistos apenas como "suits", ternos vazios.
Um de meus correspondentes acrescenta que, de qualquer forma, os funcionários do World Trade Center eram "todos alienados", ou seja, eles tinham, num pacto diabólico, entregado suas vidas em troca dos ditos ternos.
Cada vez mais, parece-me que, quando denunciamos a alienação dos outros, quase sempre operamos uma extraordinária violência: negamos suas vidas concretas. É por esse caminho que o terrorista transforma qualquer um em alvo: ele não enxerga nunca as existências, só a funcionalidade de todos no sistema que ele combate. Há uma criança no avião? É apenas mais um expoente do mundo inimigo: quem sabe, um futuro dirigente do FMI. Essa redução é fácil para o terrorista, pois ele já fez o mesmo com sua própria vida: renunciou à existência para se tornar puro instrumento (de destruição).
Tomemos duas frases: "Os marajás do capital financeiro do World Trade Center eram responsáveis pela fome na África". Ou então: "Os fundamentalistas bombardeados no Afeganistão são responsáveis pelo horror repressivo de sua sociedade e pelo terrorismo". Pouco importa aqui que essas implicações de responsabilidade sejam demonstradas ou não. De qualquer forma, as frases desumanizam os sujeitos dos quais elas falam. Para dizermos que foram devorados pela ganância ou pelo extremismo de sua fé, anulamos a lembrança de sua humanidade concreta. Ora, é essa que não quero esquecer.
Não me importa pensar nos corretores das torres gêmeas comprando e vendendo ações e, quem sabe, cinicamente decretando fome e desemprego. Mas me importa lembrar as glórias e misérias de suas vidas cotidianas, as fantasias sexuais frustradas ou não, os pequenos segredos, as indulgências, os prazeres, os ciúmes, as raivas, os gestos banais do dia-a-dia. Do mesmo jeito, estou farto de ver os fundamentalistas rezando ou lendo o Alcorão. Quero pensar neles em casa, quando as mulheres enfim tiram seus véus. Quero imaginar o segredo de suas transgressões inconfessáveis e de suas vergonhas. Ou simplesmente a preparação do chá, enquanto batem papo na frente de casa.
Muito mais do que a fisiologia comum dos corpos, é a lembrança da vida concreta que nos permite obedecer ao primeiro preceito da cultura ocidental, pelo qual todos os humanos são nossos semelhantes.
Nestes dias de guerra, posso acreditar que haja diferenças e oposições que sejam insolúveis sem um conflito. Escolho meu campo e tomo posição, mas não quero esquecer a vida cotidiana de todos (aliás, escolho meu campo por ser aquele que, a meu ver, menos esquece a vida concreta de seus inimigos).
Por isso também privilegio a interpretação psicológica das motivações. Porque a psicologia acredita na relevância dos percalços da vida concreta. Ou seja, dá importância ao terreno comum, onde imagino que todos os humanos se encontrem -aquela parte da experiência cotidiana que talvez se situe aquém das diferenças: tomar a febre do filho com a mão, preparar a comida do cachorro, desejar aquele ou aquela que não deveríamos, chorar os defuntos.
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