01 novembro 2001

O que pensam os afegãos?

Sábado, caminhando pelo dédalo de antigas casas normandas que é o centro de Rouen, na França, esbarrei no restaurante Cabul, perto da catedral, na rue de la Chaîne. Prometia cozinha tradicional afegã, que se revelou ótima. O proprietário, Qassim Azimi, afegão, 46, saiu de Cabul em 92 e desde então mantém relações estreitas com o Afeganistão. Ultimamente, fala com seu irmão, em Cabul, quase a cada dia.

Pergunto se, segundo o irmão, os bombardeios americanos estão mesmo errando o alvo e matando muitos civis. "Estão, muitos", ele responde. Os mortos se contam em centenas.

Imagino que Qassim queira que os bombardeios parem. Imagino que ele tenha raiva dessa intervenção cruenta. Mesmo assim, indago: em Cabul, o que eles pensam dos bombardeios americanos? A resposta me surpreende: "Estão decepcionados. Não tanto pelos erros -isso é uma decepção, mas a gente entende. O problema é a incapacidade de enfraquecer o Taleban. Se tivessem bombardeado imediatamente depois do ataque de Nova York, teria sido diferente. Os EUA quiseram reunir uma coalizão. O Taleban e o Exército de Bin Laden tiveram tempo de esconder-se".

Qassim fala como se o Afeganistão fosse uma terra invadida e ele fizesse parte de uma força de resistência que não tem os meios suficientes para liberar o país e, portanto, conta com uma ajuda externa. Comunico-lhe essa minha impressão. Ele confirma e comenta que essa deve ser a visão de "90% dos Afegãos".

O país, a seu ver, libertou-se da invasão soviética para cair nas mãos de dois Exércitos estrangeiros. O Exército do Taleban não só recebia, até ontem, fundos e armas do Paquistão, mas é em grande parte composto por paquistaneses (que continuam chegando). Segundo Qassim, o Paquistão achou assim um jeito (útil) de libertar-se de uma pressão revolucionária interna. Os extremistas que catalisavam a insatisfação popular foram mandados tomar conta do vizinho Afeganistão. Agora, o governo paquistanês receia a perspectiva de que esse pessoal traga seus anseios de volta para casa. Melhor seria que eles fossem exterminados por uma derrota em território afegão. Daí a aliança atual com os EUA.

Ao lado do Taleban, que seria uma espécie de Exército paquistanês, há as forças de Bin Laden. Segundo Qassim, são 25 mil homens -uma tropa duplamente estrangeira, inteiramente composta de árabes-, quase todos de tradição wahabista, ou seja, adeptos do integrismo ensinado na Arábia Saudita. Ora, os afegãos não são árabes e, em sua maioria, são islâmicos de tradição sunita, como os sauditas, mas mais moderados. As elites sauditas mantêm, com esse Exército de fundamentalistas por elas produzido, a mesma relação dos paquistaneses com o Taleban. O fundamentalismo foi uma boa válvula de escape para a insatisfação popular. Agora atrapalha.

Ao escutar Qassim, descubro que, desde o 11 de setembro, eu não tinha escutado a posição de um afegão que não fosse porta-voz oficial do Taleban ou da Aliança do Norte. Será que Qassim expressa mesmo um sentimento difuso no Afeganistão ou em suas classes médias? Algumas entrevistas na imprensa francesa da última semana sugerem que sim.

De qualquer forma, nos restaurantes de Cambridge, de São Paulo ou de Paris, no fundo, poucos se importam com o Afeganistão. É mais interessante ser contra ou a favor dos EUA. A preocupação são nossas escolhas ideológicas e suas consequências políticas em nossos quintais. O drama concreto do país que é teatro da guerra e de seu povo torna-se apenas um pretexto para cada um de nós agitar suas bandeiras. Nos ditos restaurantes, ouço amigos ilustrados afirmarem, por exemplo, que a intervenção ocidental eternizará o círculo do ódio: vítimas inocentes afegãs, dizem, produzirão novas levas de terroristas. Mas, no restaurante de Rouen, ouço outra coisa: os afegãos choram, sem dúvida, as bombas e os mortos, mas não se esquecem de onde vem a opressão.

Difícil de entender? Nem tanto. Milão, onde a minha família morava, foi bombardeada horrivelmente em agosto de 1943 e, assiduamente, até a liberação, em 1945. As bombas nem tentavam ser precisas. Pensava-se, na época, que bombardear as populações civis desmoralizasse os governos oficiais. Em 1944, quando o norte da Itália era, de fato, zona de ocupação alemã, era duvidoso que as bombas, destruindo casas italianas, induzissem os alemães a retirar-se. Apesar disso, os bombardeios continuaram. Conclusão: nos anos 50, brinquei nos escombros.

Mais tarde, perguntei ao meu pai como era receber bombardeios que pareciam ser portadores, ao mesmo tempo, de morte e de esperança. Respondeu que, como era médico, no inverno de 43, quando permaneceram na cidade, saía dos abrigos e da clandestinidade para cuidar dos feridos -era claro que as bombas caíam e machucavam no lugar errado. Mas, quando tocava o alarme no meio da noite, eles rezavam para que os aviões viessem cada vez mais. Pois não esqueciam quem era responsável pelo horror e quem podia, àquela altura, ajudá-los a voltar a viver.

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