29 novembro 2001

A guerra entre os corpos e as burgas



O Taleban tentou inventar uma sociedade em que as mulheres fossem invisíveis. Nós, ao contrário, vivemos numa sociedade que escancara as mulheres. Como notou Boris Fausto em sua coluna de segunda-feira na Folha, entre a burga e o fio-dental abre-se um abismo.

Nas últimas décadas, nós, ocidentais, descobrimos que, para tornar visíveis (e apetitosos) os objetos de nosso mundo, basta mostrá-los na vizinhança de um rosto sedutor ou de um corpo de mulher. Vivemos circundados por imagens que, em conúbios surrealistas, reúnem os objetos do consumo com fragmentos da beleza feminina: sei lá, um grampeador ao lado de costas sinuosas.

Talvez, no começo, o recurso às formas femininas na propaganda tenha sido justificado como um argumento de venda, do tipo: "Se usar este sabão ou esta motocicleta, você, segundo o caso, será ou terá a mulher sedutora que aqui aparece". Mas os corpos e os rostos femininos assíduos e incongruentes nas imagens publicitárias são mais do que a promessa de um brinde. Eles compõem uma espécie de mensagem. Explico. Se você visse a imagem de uma latrina ao lado do anfiteatro do Congresso, entenderia algo desta ordem: a política não é flor que se cheire. Do mesmo jeito, aparecendo ao lado dos objetos de consumo, os rostos e os corpos femininos não prometem um paraíso erótico: sua presença serve para significar que os objetos mostrados são desejáveis.

O corpo e o rosto femininos, em suma, são, para nós, os representantes genéricos do que é desejável. Funcionam, nas mensagens publicitárias, como predicados. As costas sinuosas que acompanham o grampeador não nos garantem uma tórrida noite de paixão. Mas elas afirmam que um grampeador pode ser desejável por contaminação.

O Taleban seguia à risca os preceitos da lei islâmica (ao menos, sua interpretação desses preceitos). E devia querer também construir e defender uma sociedade verdadeiramente antinômica à nossa. As duas intenções eram perfeitamente compatíveis. O Ministério para a Promoção da Virtude e a Prevenção do Vício reprimia e punia qualquer manifestação de desejo erótico que se afastasse do exercício regrado da poligamia islâmica entre as quatro paredes de casa. As mulheres sumiram de qualquer lugar social (trabalho, educação etc.), foram sequestradas para que não inspirassem desejos desviados, ou seja, para que nenhum desejo circulasse fora dos trilhos da estreita privacidade familiar. Com isso, de maneira deliberada ou não, foi estancada a fonte do carburante básico que alimenta nosso tipo de sociedade. Pois, sem a pressão e sem a volubilidade de um desejo sempre desviado, não há modernidade possível: murcha o sonho de mobilidade social, murcham a insatisfação e a vontade de mudar, murcha o anseio de consumo.

O Taleban quis proteger-se contra as seduções de nossa cultura: proibiu a televisão, a música, que leva a fantasiar, o cinema etc. Mas tudo isso seria apenas um paliativo sem a supressão dos corpos que representam o desejo.

Alguém observará que o corpo feminino não é mais o único que pode valer como sinônimo do predicado "desejável". O corpo masculino goza, cada vez mais, da mesma prerrogativa. Abdominais e peitorais "sarados", ao enquadrar um objeto, decretam que ele é desejável.

O Taleban sabia disso. Se as mulheres sumiram da circulação social -a ponto de serem propriamente ameaçadas de extermínio-, o corpo masculino também foi escondido. O código do vestuário, a proibição de praticar esportes e as regras sobre barba, cabelos e turbante tinham essa função. Tudo foi tentado para que nenhum corpo, masculino ou feminino, suscitasse desejos inoportunos. Por exemplo, foram fechados os banhos públicos -tanto pelo que poderia acontecer entre os banhistas reunidos e nus quanto pelo que aconteceria eventualmente na cabeça de quem, caminhando na rua, imaginasse os corpos atrás do muro.

O Taleban reprimiu o erotismo dos corpos, como se quisesse evitar uma contaminação. Com razão. A modernidade ocidental é mesmo uma doença eroticamente transmissível: uma febre agitada de ter, de vir a ser e de seduzir, que começou como uma espécie de epidemia venérea. Pois ela foi contraída quando os humanos decidiram se juntar só por amor e por paixão. Nada de respeitar tradições, castas, etnias etc. Desde então, a atrapalhada primazia do desejo instalou-se em nosso mundo.

Certo, todos reconhecemos que a guerra entre os corpos e as burgas é um episódio da guerra entre as luzes e o obscurantismo -e estamos, imagino, do lado das luzes. Mas, nessa ocasião, é bom lembrar que, para resistir às luzes, o Taleban lutou contra o erotismo dos corpos e contra o desejo. A estratégia era adequada, pois as luzes da razão ocidental são indissociáveis da desordem do nosso querer.

Hoje, as mulheres de Cabul tiram as burgas timidamente. Também timidamente aparecem antenas parabólicas improvisadas, feitas com latas de refrigerante achatadas. Os afegãos poderão extraviar-se na pluralidade do desejável.

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