06 dezembro 2001

Um amigo na Alemanha

Na semana passada, capitularam as tropas do Taleban que defendiam Cunduz, no norte do Afeganistão. A reportagem do "The New York Times" (26/11) narrou que, ao penetrar na cidade, os homens da Aliança do Norte encontraram cadáveres e feridos pelas ruas, à-toa.

Um desses soldados do Taleban, Abdul Hadid, estava sentado na calçada, baleado, tremendo de choque, de febre e talvez de medo, com as roupas encharcadas de sangue e urina. Foi circundado pelos vencedores e interrogado aos gritos: "Cadê os outros? De onde você é? (certamente para identificar um eventual voluntário paquistanês, que seria tratado pior) Cadê sua arma?".

No pequeno grupo hostil e vociferante que se adensava ao redor dele, Abdul Hadid percebeu que havia dois jornalistas ocidentais as únicas caras, provavelmente, que mostravam compaixão. Endereçou-se a eles, expressando seu único (e último?) pedido de ajuda da seguinte maneira: "Tenho um amigo na Alemanha". Depois disso, foi levado embora -oficialmente, para um hospital.

É como se Abdul, na hora de perder a vida por fidelidade tribal, dissesse aos que podiam entendê-lo, ou seja, aos ocidentais presentes: não sou "todo" daqui, minha tribo não resume inteiramente minha humanidade. Na hora de morrer por causa de uma diferença étnica, ele invocou um mundo onde, em princípio, tribos e crenças não seriam condições de cidadania.
Não acredito que a frase de Abdul fosse uma artimanha oportunista. É mais provável que ela manifestasse uma dolorosa contradição de fundo. Por um lado, há a vontade de defender o que, desde sempre, constitui uma espécie de essência: a devoção, os costumes, a fidelidade exclusiva à tribo. Por outro lado, há a sedução da Alemanha, para onde já foi o amigo. Qual é a força dessa sedução? Será que está apenas na abundância da bugiganga?

Vários comentadores levantam, ultimamente, o espectro da retomada do conflito entre o Islã e a cristandade. Mas o conflito de hoje não pode ser o mesmo que assolou os primeiros 600 anos do século 20. Pois a cristandade diluiu-se na modernidade. Consequência disso: o conflito de hoje não é entre duas culturas, cada uma exclusiva. Mas entre uma cultura tradicional, que se sustenta na exclusão (dos infiéis, por exemplo), e a modernidade, que idealiza a inclusão de todos. A modernidade é um inimigo excepcionalmente sedutor. Ela facilita a traição por admitir qualquer um como sócio.

Abdul Hadid, dividido entre a fidelidade a sua tribo e a sedução de uma cultura outra, mas que poderia incluí-lo, já é nosso semelhante. Sua contradição não é muito diferente da nossa, cotidiana, entre a nostalgia de algum tipo de pátria e a ambição de reconhecer a humanidade como nossa única tribo.

O Taleban, que receia a contradição de Abdul e sua traição, oferece US$ 50 mil para cada cabeça de jornalista "pró-ocidental" no Afeganistão.

2. Os imigrantes estão numa posição privilegiada para detectar atividades insólitas em suas comunidades. Sobretudo os imigrantes ilegais, que tendem a viver em comunidades étnicas fechadas. Portanto John Ashcroft, o ministro da Justiça dos EUA, anunciou o seguinte: os estrangeiros que fornecessem informações sobre atividades terroristas receberiam estatuto de imigrantes legais e poderiam tornar-se cidadãos dos Estados Unidos num prazo de três anos.

Ashcroft deve apostar que essa recompensa tenha mais valor do que dinheiro. Abdul, na hora da verdade, talvez topasse. Pois, na (astuta) proposta americana, ele encontraria confirmação de seu sonho: lá, naquele Ocidente, seria recebido e reconhecido na base de seus atos. Nada de etnia.

3. Quando ruíram as torres gêmeas, foi banal comentar que elas eram símbolos da potência econômica -americana ou ocidental.

Alguns dizem que a idéia moderna de arranhar o céu surgiu na Itália, na pequena cidade de San Gimignano, perto de Siena, onde, na Renascença, as famílias mais poderosas e abastadas competiam entre si elevando torres mais altas do que as dos vizinhos. Em suma, a coisa teria começado como uma competição em que cada um queria sobrepujar o outro, mostrar e comparar seu tamanho.

Mas, uma vez erguida, uma torre não é só isso. Viver, trabalhar ou simplesmente subir, de vez em quando, nos andares mais altos significa ampliar o horizonte. É uma maneira de constatar, inevitavelmente, que o mundo continua além do bairro e da aldeia. Quem sabe, de lá, Abdul enxergasse a sua Alemanha.

4. O Ocidente declarará vitória quando tiver desarraigado Al-Qaeda e outros grupos ou governos que promovem o terror. Mas será só a conclusão de uma batalha.

O único jeito de conseguir uma vitória final consistiria em fazer que o Ocidente fosse parecido com a Alemanha sonhada por Abdul: um mundo onde as diferenças convivessem em paridade de direitos. E onde as disparidades econômicas não chegassem a substituir as antigas diferenças de tribo ou de casta.

Esse Ocidente seria mesmo irresistível.

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