13 dezembro 2001

Assanhados ou toxicômanos

Sábado passado, em Nova York, parei no meio da Times Square -o templo do outdoor. Algo parecia inusitado. Com a exceção de uma cueca da Calvin Klein que moldava a protuberância esperada e delimitava abdominais de estátua renascentista, não apareciam corpos (nem fragmentos de corpos).

Fui folhear revistas. Claro, encontrei uma propaganda da Air France em que um avião corta as costas sinuosas de uma mulher -no estilo do atentado contra as torres gêmeas. E havia Água Brava perfumando cenas de praia que estavam entre James-Bond-pegando-a-moça e as fotos que tiramos nas últimas férias, com o jet-ski alugado. Mas eram exceções -pareciam coisas de um outro tempo. A maioria dos anúncios apresentava objetos, produtos e serviços sem conúbios eróticos: os carros na estrada, os aparelhos eletrônicos em cima de mesas quase abstratas.

Quinze dias atrás, nesta coluna, fiz algumas considerações sobre o uso assíduo dos corpos nas imagens com as quais a publicidade colore nosso dia-a-dia. Mas eis que a Times Square e as páginas das revistas parecem indicar uma tendência diferente. Aparentemente, a propaganda que me surpreendeu não está querendo excitar nossa insatisfação e estimular nosso desejo. Nem está nos prometendo que os objetos nos tornarão mais desejáveis do que nossos semelhantes.

Essa "nova" propaganda não cultiva o desejo. Com isso, nas revistas, o mundo do desejo passa a coincidir com o universo tragicômico e vulgar das notícias. Lá imperam as paixões assassinas que decidem os assaltos, os atentados e as guerras. Lá reinam a cobiça dos corruptos e o cabritismo ao redor da gravidez de Gloria Trevi. O desejo é o carburante da feiúra do mundo. Por isso, nas revistas, tantas matérias sobre bem-estar, paz e saúde substituem a sujeira do noticiário -para oferecer aos leitores um pouco do mesmo mundo que se afirma nas páginas da "nova" propaganda: um mundo tranquilo e equilibrado, desinfetado de desejo.

Nesse mundo, o carro, por exemplo, não é mais um instrumento de sedução nem de competição. Ele traz sonhos de segurança mais do que de potência. Ou, então, aparece como o símbolo de uma precisão e de uma harmonia mecânicas que gostaríamos de transferir para nossas vidas e para nossos cérebros. Ou, ainda, ele é o veículo para uma viagem propriamente espiritual. Achei uma única propaganda de carro em que aparecem corpos: a da Peugeot 208, com três jovens nadadoras preparando-se para a largada. Ou seja, nada de sexo: uma imagem de concentração, graça e autocontrole.

O novo tom publicitário triunfa nas propagandas das instituições financeiras. A Investa mostra um esqueleto humano (raios X de perfil), para lembrar que é bom "estar em forma por dentro", e não só por fora. O cliente do cartão Bradesco mantém o poste de sua agência bancária sobre a palma da mão. Juntando os dois, chega-se à formula do momento: o que importa é encontrar o equilíbrio mais íntimo. Uma propaganda do Itaú resume essa exigência: o que o cliente pode querer de uma boa estratégia de investimento não é (como num passado vulgar) o acesso a mais bens, mas uma forma muito especial de felicidade -um momento de meditação, de olhos fechados, na posição do Buda.

A promessa clássica da propaganda dizia que, se soubéssemos desejar coisas sem parar, conseguiríamos ser nós mesmos desejáveis e competitivos. Hoje, ouço uma promessa diferente: vocês não precisam continuar nessa procura insaciável. Encontrem os objetos ou os serviços certos e descansarão em harmonia consigo mesmos e com o mundo.

Se fosse otimista, festejaria. Em vez de venerar os objetos que excitam nossos desejos, procuraremos aqueles que nos apaziguam. Não é uma maneira mais sábia de correr atrás da felicidade?

Pois bem, não sou otimista. Não sei se estamos mudando para melhor. Certo, nossa cultura funciona, mas tem um custo muito alto. Ela exige, por exemplo, a insatisfação crônica de todos nós. Não seria mau, portanto, se nos encaminhássemos para uma época em que estaria na moda acalmar o desejo, suspender a insatisfação. Mas duvido de que o modelo de acalmia proposto pela propaganda destes dias seja mesmo o da meditação zen-budista.

É mais provável que a mudança seja esta: o modelo de nosso consumo está passando do erotismo para a toxicomania. Deixamos de ser consumidores assanhados para nos tornar consumidores toxicômanos. Nosso objeto por excelência não seria mais o corpo desejado em mil fantasias fracassadas e sempre insatisfeitas, mas a droga, em todas as suas formas, legais e ilegais. Ou seja, não um objeto que alimenta (incômodos) anseios, mas um objeto que promete, no mínimo, trégua.

Infelizmente, como acontece com a droga, a trégua é aparente. E o ideal de contentamento e equilíbrio é mais uma maneira de alimentar (e piorar) a frustração de sempre -uma maneira provavelmente menos interessante do que os atrapalhos do desejo.

P.S.: Na semana passada, por um acidente técnico, muitos e-mails de leitores foram perdidos. Peço vênia.

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