20 dezembro 2001

O espírito de Natal

Sou facilmente contaminado pelo espírito desta época do ano. Gosto de escutar corais que entoam cantos de Natal. Escolho e empacoto mimos e presentes. Chego a pegar uma ou duas crianças pequenas emprestadas para que faça mais sentido montar a árvore e decorar a casa.

Dou provas inusitadas de gentileza e generosidade. Para mostrar concretamente minha disposição, tento me engajar em serviços comunitários. Com pouco esforço, posso ser convencido a assistir pela quinta ou sexta vez a "Milagre na Rua 42" ou a mais uma produção do "Quebra-Nozes".

Ora, apesar dessa vulnerabilidade complacente, também considero o Natal com o olhar irritado do Grinch. Pergunto: mas o que é esta palhaçada? Por qual hipocrisia oferecemos picolés às crianças pobres só uma vez por ano? O que a generosidade ou a bondade têm a ver com uma orgia de comida e de compras inúteis? Quem inventou essa festa? Não foram os shopping centers?

Em suma, nesta época do ano, entro em contradição. Não sou o único. Ao contrário, parece que estamos quase todos dispostos a viver paixões natalinas que logo nos parecem infantis, do tipo: "Toquem "Jingle Bells" e "Noite Feliz", é quase meia-noite, quem distribui os presentes? Cadê o chapéu de Papai Noel?". Assim como somos quase todos capazes de desconfianças altivas que parecem decididamente adolescentes: "Olha só, esses adultos babacas esbanjam presentes, vinhos e jóias, com a convicção de merecer o paraíso".

Essa ambivalência é a experiência moderna do Natal. Temos entusiasmos festivos, geralmente nostálgicos: "Ah, os brancos Natais do passado!". E temos sarcasmo para sacudir a pieguice: "Brancos Natais? No Brasil?". Então que perda alimenta nossa nostalgia? E qual é a ilusão que é alvo de nosso sarcasmo?

Por ter um irmão mais velho, soube cedo que não eram o Papai Noel e o menino Jesus que traziam presentes. Mas essa descoberta não fez vacilar minha fé no Natal. O abalo veio mais tarde, aos 13 anos, quando, na noite do 24 de dezembro, o pai de Alessandro, meu melhor amigo daqueles tempos, morreu de repente.

Meu próprio pai, cardiologista, acorreu para encontrá-lo já morto -deitado, acredito, como um presente diabólico, embaixo da árvore de Natal. Por contraste, os Natais antes dos meus 13 anos aparecem, na lembrança, como momentos de absoluta certeza do amor e da proteção dos adultos.

Natal é uma festa da infância porque celebra a idéia de que deve haver alguém que nos ama e nos protege: o Papai Noel, o menino Jesus, os pais ou, simplesmente, os amigos que nos mandam seus votos. No Natal, somos generosos com o próximo, para tornar plausível a idéia de que alguém esteja cuidando de nós do mesmo jeito.

Lá no céu, alguém deve amar a gente, assim como nós (nesta semana) amamos os nossos rebentos e até outros quaisquer: essa é a esperança -ou a ilusão- do Natal. Ela inspira nostalgia porque é a síntese de uma fé que nossa cultura teve de descartar. Somos (quisemos ser) livres. Por isso Papai Noel só pode voltar escondido, uma vez por ano, lutando contra o sarcasmo pelo qual reiteramos e protegemos nossa autonomia. Este é nosso orgulho: não precisamos de pais e papais descidos do céu. Agora (aqui, a nostalgia), como seria bom se eles circulassem (ainda) entre nós...

A "Veja" desta semana apresenta uma pesquisa segundo a qual 99% dos brasileiros declaram acreditar em Deus. Não é nenhum triunfo de não sei qual irracionalismo coletivo. Tampouco significa que 99% dos brasileiros sejam propriamente religiosos.

Acontece apenas que a nostalgia da fé é um elemento inevitável de nossa subjetividade. Por isso a experiência do Natal -mistura complexa dessa nostalgia com uma dose de sarcasmo pretensamente libertador- é uma perfeita expressão da modernidade.

No avião que me trazia para São Paulo na quinta-feira passada, duas crianças americanas estavam sentadas na fileira atrás da minha -um menino e uma menina entre sete e nove anos. Já de pijama, a pedido da mãe, ajoelharam-se na frente de seus assentos para recitar a oração da boa noite. A prece foi além dos agradecimentos de praxe. Estendeu-se até incluir os pedidos de presentes, as lembranças de tios e primos e cada tipo de desejo e de propósito, virando quase um jogo que não acabava nunca.

Enquanto era ninado por essas vozes infantis, lembrei-me de uma reza que era recitada coletivamente nos Natais de minha infância. Tinha sido inventada por um avô ateu, mas que, verdadeiro sujeito moderno, acreditava no Natal. A oração pedia que todas as crianças recebessem um carinho, que todos, os ricos e os pobres, tivessem, ao menos, um pouco de descanso e que a noite passasse rápido para os doentes e para todos os que sofrem.

Acrescentei, já quase dormindo, que deveria ter uma cláusula para aqueles que viajam de avião: que para eles também a noite passasse rápido. E, naturalmente, que os aviões, todos, não só o meu, se sustentassem no céu.
Feliz Natal.

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