04 outubro 2001

Escombros do World Trade Center



BABEL
Até a semana passada, das torres do World Trade Center sobrava um esqueleto metálico de sete andares que foi fotografado mil vezes: espécie de triângulo de arcos sobrepostos no meio da fumaça que emanava dos escombros.

A imagem evocava as formas que a iconografia da Renascença atribuiu à torre de Babel: justamente andares de arcos afinando progressivamente na subida -como se a torre fosse um cone. Os restos das torres se assemelhavam, em suma, aos restos da torre de Babel depois da cólera divina.

A similitude era reforçada pela interpretação imediata do enfrentamento que levou à catástrofe. Nas torres trabalhavam (e morreram) pessoas vindas de cada canto da terra. Aparentemente, eles tinham realizado o antigo projeto de Babel: conviviam e, bem ou mal, comunicavam-se (concordando ou discordando) apesar das diferenças étnicas, linguísticas, religiosas e sociais. Esse projeto ambicioso de convivência universal foi abatido, como na história bíblica, por clarões de cólera divina -melhor dito (e para deixar os deuses fora dessa), por sujeitos convencidos de serem os braços da cólera divina.

Mas essa é a impressão imediata. Os escombros sugerem também uma meditação mais complexa e mais desesperada.

As torres acrescentavam uma especificação ao antigo desejo de Babel. A denominação (World Trade Center, que quer dizer Centro Mundial do Comércio) e a função das torres sugeriam o seguinte: o projeto de uma humanidade que ultrapasse suas diferenças está sendo realizado pela modernidade ocidental, mas ao preço da primazia do mercado na vida humana.

Ou seja, se formos todos homens econômicos, seremos suficientemente parecidos para que a comunicação entre nós seja fácil. O comércio será nossa pátria comum. Vamos nos definir como força de trabalho, como poder de compra ou como consumidores. Vamos detalhar nossas ambições em listas de mercadorias. Desde então, por mais que desejemos coisas diferentes e escolhamos estilos de vida distintos, teremos uma língua comum. O risco será que, a esta altura, não tenhamos nada muito interessante para conversar.

Ora, como alternativa à primazia do mercado que nos permitiria sermos cidadãos de um mesmo mundo, os terroristas viriam com um particularismo tribal que nem contempla a possibilidade da convivência com o diferente.

Proporção: a globalização estaria para as torres do World Trade Center como a antiglobalização estaria para o fundamentalismo dos terroristas que as demoliram.

Será que nosso destino está preso entre vivermos juntos como puros agentes econômicos e exaltarmos nossas diferenças como fés irredutíveis e inconciliáveis?

BANDEIRAS
Nestes dias, é banal encontrar nos jornais a imagem de pequenos grupos, nas ruas de algum país islâmico, queimando bandeiras americanas. Todos exultam e olham para a câmara com um ar satisfeito, na esperança de que um espectador americano sofra com esse vitupério que, a seus autores, deve parecer extremo.

Será que eles sabem que, nos EUA, se discute regularmente para defender o direito de queimar a bandeira como forma de protestar? Sabem que esse ato se tornou comum desde as manifestações dos anos 60?

Coloco essa pergunta para um amigo paquistanês-americano. Responde que obviamente eles não sabem. Nem imaginam. Mas, se soubessem que queimar a bandeira americana é permitido nos EUA, não teriam admiração nenhuma por essa forma extrema de democracia. Ao contrário, desprezariam ainda mais uma nação que lhes pareceria indigna por deixar que seus cidadãos ultrajem o símbolo do país.

Impasse da diferença: nossas liberdades aparecem como provas de decadência aos olhos dos fundamentalistas. E as obediências das quais eles se orgulham são, para nós, a assinatura do atraso.

VULNERABILIDADE
Os terroristas frequentaram escolas de pilotagem nos EUA. Outros suspeitos, interrogados recentemente pelo FBI, estavam preparando a carteira especial para dirigir caminhões com carga tóxica ou explosiva. Aqui é fácil estudar, circular, reunir-se sem ter de esconder a diferença. Osama bin Laden - se é, como parece, o mandatário do ataque- deve achar que os ocidentais, e sobretudo os americanos, são perfeitos panacas, pois veneram logo as liberdades, que, de fato, lhe facilitaram o trabalho.

Infelizmente, as coisas podem mudar. O cotidiano americano está sendo transformado pelas necessidades do combate contra a infiltração terrorista. O embarque, nos aeroportos, está cada vez mais lento. Há filas para atravessar as pontes que vão para Manhattan, pois os veículos são revistados. Há blitze na proximidade dos reservatórios de água. Se houver novos atentados, chegará algum tipo de legislação de exceção. O uso de critérios étnicos no trabalho da polícia será tolerado, se não autorizado. Será o primeiro verdadeiro sucesso dos terroristas: levar os EUA, a Europa e, aos poucos, todo o Ocidente a comprometer as liberdades, que são a melhor parte de nossa cultura.

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